Daniel Ruiz: «Estou bem porque estou vivo»
Daniel Ruiz é a única pessoa privada da liberdade pelas manifestações populares que ganharam as ruas argentinas durante a discussão pela Reforma da Previdência. Há um ano de sua detenção em uma causa com vários pontos obscuros e sem data de julgamento, Daniel falou com Cítrica na penitenciária de Marcos Paz.
Por: Alejandro Volkind, da Revista Cítrica
Fotos: Nicolás Cardello
A primeira dificuldade com Daniel Ruiz é que poucos o conhecem.
Quem é Daniel Ruiz?
O trabalhador que hoje cumpleta um ano preso por enfrentar a Reforma da Previdencia? O delegado que terminou organizando seus companheiros de pavilhão?
O fanático do River que escreve uma crônica na prisão sobre o Superclássico e cita Marx? O petroleiro de Comodoro Rivadavia que se fortaleceu sob as geadas? O pai que só quer voltar a estar com sua filha?
O moreno que tem sangue mapuche no corpo? O demitido que aprendeu a democracia nas assembleias piqueteiras dos anos 90? O preso que começou há uns dias uma greve de fome na penitenciária de Marcos Paz porque está sem condenação e sem data de julgamento?
A história de Daniel Ruiz é a de uma injustiça que precisa ser conhecida.
«Precisam de mim preso»,disse Daniel Ruiz para explicar porque não está em liberdade em um processo sem data de julgamento.
Uma caçada ampliada pela mídia
A primeira derrota de Macri foi nas ruas. E foi um dezembro. O Governo tinha ganhado confortavelmente as eleições de 2017 e considerou que era o momento adequado para avançar com seus objetivos de fundo: destruir o sistema da previdência e os direitos trabalhistas. “ A mudança custa, mas não há desculpas: é agora ou nunca”, advertiu o Presidente da Nação quando apresentou os projetos das reformas trabalhista e da previdência no Congresso.
Mas a prepotência do “agora” topou com um obstáculo: o povo. Naquele dezembro, milhares e milhares de trabalhadores saíram às ruas e desafiaram os planos do macrismo. Daniel Ruiz foi um deles. Motivos não lhe faltavam: “Os petroleiros – diz agora em uma pequena sala em Marcos Paz, enquanto acontece a conversa com Cítrica– trabalhamos na intempérie, no meio dos campos petrolíferos, em clima hostil. Por isso nos aposentamos aos 50 anos. Com a Reforma da previdência querem que nos aposentemos aos 65 anos”.
A insolência dos trabalhadores foi respondida com balas de borracha. Em 14 de dezembro, a repressão nos arredores do Congresso foi tão escandalosa que tiveram que suspender a sessão. “É agora ou nunca”, havia dito Macri e reprogramou a discussão parlamentar para quatro dias depois.
Em 18 de dezembro, “a melhor equipe dos últimos 50 anos” organizou um operativo de acordo com suas intenções: bloqueou o Congresso com barreiras, colocou em marcha os carros hidrantes e deslocou 1200 policiais da Cidade com seu cães para os arredores do Parlamento.
O dia de luta foi, logicamente, uma caçada
Sete manifestantes receberam balas de borracha em seus olhos (quatro deles perderam a vista), outros receberam rajadas a menos de um metro de distancia, vários aposentados foram atropelados por motos policiais e atingidos com gás pimenta na cara, e até foi necessário evacuar a estação Sáenz Peña do metrô A porque não era possível respirar por causa dos gases. A Reforma da previdência foi aprovada, mas ferida de morte.
Nessa mesma noite, milhares de pessoas autoconvocadas marcharam dos os bairros até o Congresso e se concentraram em diversas praças de todo o país repudiando o ajuste e a repressão.
O espírito de 2001 se fez presente e, nesse contexto, o Governo procurou ocupar o lugar de vítima. A estratégia foi colocar na capa dos jornais Sebastián Romero, um militante do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) que esteve na primeira fila atirando um morteiro pirotécnico, como o verdadeiro perigo para a democracia. E enquanto a mídia reproduzia até à exaustão as imagens do “gordo do morteiro”, a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, começou a caçá-lo como se tratasse de um foragido nazista.
Com milhares de pessoas mobilizadas contra a Reforma da previdência, o Governo desatou uma caçada.
Mas os meses passavam e a ministra de ferro começou a mostrar os fios de sua imperícia. Em julho de 2018, enquanto assegurava que Romero estava “cercado”, elevou a um milhão de pesos a recompensa para quem fornecesse informação sobre seu paradeiro, o dobro do oferecido para criminosos de lesa humanidade e narcotraficantes.
Sem dados sobre Romero, Bullrich decidiu deter Daniel, seu companheiro do partido.
“Minha detenção – disse – é uma explícito ataque contra Sebastián Romero, para que o companheiro se entregue”. Ruiz não tem condenação nem data de julgamento. Em meio desse limbo judicial, esta semana começou uma greve de fome para exigir ser recebido nos tribunais, junto a seus advogados e à Promotoria.
Se a justiça não escuta suas palavras, será o estomago que terá que falar.
«Minha detenção é uma arremetida contra Sebastián Romero, para que o companheiro se entregue»
Voce é Ruiz?
Sozinho, na cela, Daniel escutou a pergunta e sem levantar os olhos empunhou com força a garrafa térmica. Recém chegado em Marcos Paz, tudo era um alerta. Compartilhava o pavilhão com presos por homicídio, piratas do asfalto e sequestradores. Sabia que o Serviço Penitenciário tinha colocado no ar que pagariam um milhão de pesos a quem localizasse Sebastián Romero. Era questão de horas para que alguém fisgasse e se aproximasse para perguntar.
-Voce é Ruiz?
Daniel ameaçou com a garrafa térmica, a única coisa que tinha em mãos.
-Não, para – o tranquilizaram – – Você tem contato com as pessoas dos Direitos Humanos?
A pergunta, impensada, lhe devolveu a respiração. Também lhe abriu um novo horizonte no pavilhão: o de porta-voz das reivindicações. Sem procurar, Daniel se deu conta de que, ainda que detido, continuaria na luta porque Marcos Paz «é um lugar atroz para as pessoas presas». A definição não é sua, e sim da própria Justiça, que há dois meses acabou proibindo novas entradas na penitenciária: há 2800 presos, enquanto as vagas são para 1472.
Daniel fala sobre a realidade carcerária: “Aqui havia muita quentura porque, pela superpopulação, impuseram à força a cela para dois, tiraram a ginástica e diminuíram a quadra de futebol para agregar pavilhões”. “No final organizando uma petição”, acrescenta.
O Serviço Penitenciário fez circular nos pavilhões que havia uma recompensa milionária para encontrar o foragido Romero.
A resposta da penitenciária ante a organização dos presos foi o medo. E o castigo. “Em meia hora tem que desalojar o pavilhão”, lhes ordenaram uns dias mais tarde. Os 50 internos foram transferidos para outro pavilhão completamente destruído, com vasos sanitários sem descarga, vidros quebrados e muitas celas sem água.
Os presos chegaram com vontade de ir para o choque. Daniel falou: “No calor do momento nada. Tenho experiência em greves, não em motins. E nunca vi um motim vitorioso”.
No outro dia, pela primeira vez, fizeram uma assembleia. “Na prisão se diz que a pessoa entra sozinha e vai embora sozinha, mas isso é o que eles querem que acreditemos, querem nos dividir”, disse Daniel enquanto os penitenciários apontavam desde cima. “Mas não estamos sós, estão nossas famílias e nossos companheiros. Há muitas coisas pelas quais lutar. O pavilhão tem que se levantar e daqui vamos todos juntos. Não vamos lhes dar esse gosto”.
Daniel conseguiu organizar uma assembleia e entre os detidos organizaram uma petição pelas péssimas condições de detenção.
Comodoro
Na prisão, apelidaram Daniel de «Comodoro» por sua origem chubutense. “Nada daqui é diferente do meu bairro”, explica. Diz Comodoro Rivadavia, sua cidade, «é muito violenta, com profundas desigualdades». Exemplifica: «Pan American Energy fatura 4 bilhões de dólares por ano e a cidade não tem rede de água, nem hospitais de alta complexidade”.
Capital nacional do petróleo nos anos’90, Comodoro Rivadavia também foi berço de desempregados, da fome e da luta. Nesse fogo se forjou Daniel: “Minha primeira assembleia foi em 1998 por um corte de luz. Tinham demitido 3 mil trabalhadores e ninguém podia pagar”. Assim surgiu a Coordenação de Trabalhadores Demitidos, emblema do movimento de demitidos em sua província, e Daniel se transformou em um de seus dirigentes.
Passou esses anos entre piquetes e fraldas: “Minha filha nasceu em 2001, quando caiu Lopez Murphy. Me lembro porque tenho uma foto na estrada onde a tenho em meus braços”.
Em 2002 e depois de uma longa luta, Daniel conseguiu entrar na Repsol. “Lá senti mais hostilidade do que ao entrar na prisão”, compara. “Como era piqueteiro me mandaram fazer os piores trabalhos. Estive um ano inteiro cavando com um frio de 17 graus abaixo de zero, mas aguentei por dignidade. Queria ganhar o respeito dos meus companheiros”.
Depois começou a trabalhar no poço e foi eleito delegado. “No petróleo trabalhamos em equipe, com barras que pesam 300 kilos. Quando perfuras, vês somente a mão de teu companheiro. Tens que confiar no nó que fez”. Ressalta : “Quando faz isso em uma greve, não pode perder”.
É a mesma confiança que tem em seu companheiro Sebastián Romero. “Estou muito orgulhoso de ti porque este governo vai sair, e com ele Patricia Bullrich, que gosta de reprimir e matar pelas costas, mas não conseguiram te encontrar”, lhe escreveu em uma carta aberta. “Se tenho que estar preso para que você esteja bem o farei, porque sei que tua liberdade é o pior castigo para o governo capacho e antioperário de Cambiemos”, afirma com convicção.
«Na Repsol senti mais hostilidade que ao entrar na prisão»
Um troféu para o Governo
“A incidência do Poder Executivo no caso é nítida”, disse Martín Alderete, o advogado de Ruiz. Seu defendido está acusado de ter participado no dia 18 de dezembro em “uma espécie de complô” para arrancar barreiras e lesionar policiais utilizando uma arma de “fabricação caseira”. Entretanto , durante a investigação judicial nada disso pôde ser comprovado e terminou sendo processado por intimidação pública, atentado e resistência à autoridade.
“A prova que há contra ele é uma imagem que dura menos de dois minutos onde é visto a 15 metros do cordão policial e utilizando material pirotécnico de venda livre, disparando para cima”, assegura Alderete e proporciona mais detalhes: “Há sete horas de gravação desse dia, entre câmeras da Polícia e dos meios de comunicação, e nesse lapso há um montão de pessoas que são vistas atirando pedras, derrubando as barreiras, enfrentando a Polícia. Só se vê Daniel dois minutos disparando para cima um tipo de pirotecnia que gera ruído e que só é arriscada para quem a está manipulando”.
Para o Governo, em contrapartida, tratou-se de uma arma de fabricação caseira. A Justiça nunca avançou nesse sentido: “Nós solicitamos que um especialista em explosivos explique como é seu funcionamento e os riscos que acarreta – disse Alderete – . Não fugimos da discussão, pelo contrário, queremos ir a fundo. Com as imagens do vídeo, qualquer perito se dá conta que não é uma arma de fabricação caseira, e sim, somente um elemento pirotécnico, mas a perícia nos foi negada sistematicamente”.
Nem as inconsistências da acusação nem a permanência de Daniel na prisão tem explicações coerentes. De fato, o delito pelo qual é acusado é de regime aberto e inclusive poderia receber uma pena provisória.
Seu advogado é claro: não deveria ter passado um só dia detido. Entretanto, o Tribunal Oral Federal N° 3 negou sua libertação em pelo menos duas oportunidades com o argumento de que, ao ser membro do mesmo partido político que Romero, há perigo de fuga.
O juiz Torres recebeu Daniel em sua sala antes de sua detenção, mas o mandou para a prisão por uma possível fuga do país.
A suspeita resulta, pelo menos, infundada. Entre dezembro de 2017 e setembro de 2018 – momento em que o detém por ordem do juiz federal Sergio Torres-, Ruiz viajou duas vezes ao Brasil para atividades sindicais e depois voltou ao país. Em junho, três meses antes de o prenderem, encabeçou um ato em Comodoro Py para reivindicar o fim da perseguição a Romero e até se viu cara a cara com o juiz que depois disso pediu sua detenção: “Eu subi à sala de Torres para entregar-lhe uma petição e ele próprio o recebeu em pessoa, tenho a cópia com o carimbo”.
“Precisam de mim preso”, disse Daniel. No transcurso deste ano detido em Marcos Paz, fizeram trinta e nove jogos de fichas de impressões digitais, que circularam por todo o país e também no exterior. Querem descobrir algum delito passado: “Não há nada, toda a vida fui trabalhador. Não passei nem uma noite em uma delegacia. Na prisão tenho dez em conduta. Poderiam me dar a prisão domiciliar com a tornozeleira”. A que se deve a negativa? “Precisam de mim preso”, insiste.
A luta se leva no sangue
Sua fama de sindicalista correu rapidamente dentro da penitenciária. “Você é Ruiz?”, voltou a escutar a pergunta, mas desta vez da boca de um agente penitenciário. “Sabe se vamos receber o abono?”, lhe perguntou. Ruiz respondeu o que pôde e então soube que ainda que não quisesse, iria continuar militando dentro da prisão.
Com o pavilhão em plena organização e tendo conseguido várias conquistas, o Diretor da penitenciátria ofereceu transferi-lo para um lugar melhor, “onde tem fogão para esquentar a água”. Daniel recusou a oferta: “ Eu já me fiz aqui, e ainda teria que pagar um favor. Além disso, não seria uma forma elegante de ir-me”.
Desde então, continua esquentando a água de improviso. “São dois cabos e um ferro”, explica. Com isso também se cozinha. Na prisão há o costume de receber as visitas com alguma coisa, o pouco que possa. A primeira vez que a filha veio visitá-lo, Daniel tinha feito uns pãezinhos, mas seus companheiros lhe deram uma pizza: “Aqui dentro vamos construindo laços. Para o Estado, a vida humana não vale nada, mas confio nas pessoas. Aqui há talento desperdiçado. Um estímulo para reduzir a pena é estudar, mas quem te dá uma folha de papel? A prisão não é reabilitação, é um castigo”.
Pela organização dos presos, o Diretor da penitenciária lhe ofereceu uma tranferência para um lugar mais cômodo. Daniel recusou.
Daniel afirma que seu caso é um entre milhares. “57% dos presos deste país estão com prisão preventiva, o que quer dizer que muitos dos que estamos aqui tranquilamente poderíamos estar livres”, afirma. Qual é a medida do ajuste na prisão? “O corte orçamentário que há na educação e na saúde, também se vê aqui: cada vez menos quantidade e qualidade da comida que se entrega aos companheiros dos pavilhões, os insumos da limpeza…a superpopulação carcerária faz com que os esgotos colapsem, que a água não seja suficiente, que haja cortes de luz contínuos porque não há abastecimento”
Esse contexto, ao invés de desanimá-lo, lhe dá novos motivos para defender suas convicções: “Até o último dia da minha vida vou lutar pelos presos, porque este sistema é uma máquina atroz. Quando era piqueteiro lutava para que os piqueteiros desaparecessem. E aqui é o mesmo”.
-Como você está? -lhe pergunto.
– Eu estou bem porque estou vivo.
. A casa onde transcorre a conversa é cinza, úmida, austera e sem janelas do Complexo Penitenciário Federal II de Marcos Paz.
“Já demos muitos mártires para a causa: Teresa Rodríguez, Rafael Nahuel», enumera. Como continua isto? “Tenho a paciencia necessária. Esta promissória não ficará impune: ou a cobro ou outro a cobrará”.
-Quem é Daniel Ruiz?
-Um lutador. Alguém que não cruza os braços.
Fonte: https://revistacitrica.com/libertad-daniel-ruiz-reforma-previsional.html
Tradução: Lilian Enck