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Mundo

As políticas de Trump, a disputa EUA-China e a crise da ordem mundial – Parte 2

julho 25, 2025

Por: Felipe Alegria e Ricardo Ayala

  1. China, o grande inimigo

Como apontamos ao longo do artigo, a política geral de Trump é explicada, em primeiro lugar, pelo desafio que a China representa para a supremacia estadunidense.  Nesse sentido, no referido artigo da revista Marxismo Vivo escrevemos: “Marco Rubio, o novo secretário de Estado de Trump, enfatizou em sua posse que “a China é o adversário mais perigoso e poderoso que os Estados Unidos já enfrentaram”. Em termos semelhantes, dois anos antes, Blinken, secretário de Estado de Biden, falou na Universidade G. Washington: “Continuaremos a nos concentrar no desafio de longo prazo mais sério para a ordem internacional, aquele representado pela China (…) o único país com a intenção de remodelar a ordem internacional e, cada vez mais, com poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para fazê-lo”. (…)

Na verdade, desde o surgimento da China como uma nova potência imperialista a partir de sua resposta à grande crise econômica de 2008, entramos em um período prolongado de conflito entre os dois imperialismos. É um choque que condiciona o funcionamento do organismo econômico mundial, que está globalmente estagnado desde a crise de 2008. Afeta totalmente a divisão mundial do trabalho (DMT) e desequilibra profundamente o Sistema de Estados, realocando o papel dos países e regiões do mundo. Esse antagonismo tornou-se um eixo central da política mundial.

A ascensão de Trump à presidência dos EUA precipita a crise da Ordem Mundial, acentuará os confrontos comerciais, tecnológicos e geopolíticos com a China e alimentará a corrida armamentista global, aumentando as tensões e o próprio risco de choques militares.

E continuamos:

“Poucos dias antes do surgimento do DeepSeek[1], a agência estadunidense Bloomberg apontava que a China era líder mundial em carros elétricos (EVs), drones, painéis solares e trens de alta velocidade e que estava se esforçando para ser líder mundial em robôs e medicamentos. A aeronave comercial chinesa C919 já está competindo na Ásia com a Boeing e a Airbus. Se tudo isso é de grande relevância, a batalha pela liderança em semicondutores (atualmente nas mãos da estadunidense NVIDIA) e em IA é muito mais importante, visto que, se a China superar os EUA nessa área, poderia levar a uma onda sísmica com enormes consequências.”

A China está em óbvia inferioridade diante do imperialismo estadunidense no campo financeiro. Os Estados Unidos são a grande superpotência financeira, que tem o FMI e o BM e é apoiado pelo papel do dólar como moeda universal. A China ainda está longe de ser uma alternativa financeira aos EUA, mas está se esforçando para se tornar, paralelamente aos seus investimentos estrangeiros, comércio e alianças, como os BRICS+, uma potência financeira global e reduzir sua dependência do dólar.

Na negociação tarifária ainda inconclusiva com os EUA, com resultados incertos e sem dúvida temporários, a China, ao contrário da UE, manteve-se firme, dizendo que a negociação deveria ser “entre iguais“. No final, foi Trump quem cedeu, por enquanto, devido à alta dependência dos Estados Unidos de terras raras e suprimentos industriais chineses.

No entanto, essa vitória tática não pode nos fazer esquecer que a China está sofrendo de um sério problema de superprodução (que alimenta uma forte guerra interna de preços de veículos elétricos[2]) que está entrelaçado com uma crise imobiliária sem fim que está perturbando as finanças dos governos locais, juntamente com um significativo desemprego juvenil e consumo que não está decolando. Estima-se que 16 milhões de empregos dependam diretamente das exportações para os EUA, embora na realidade o número aumente significativamente se considerarmos os empregos indiretamente associados. Trump está tentando explorar essa realidade para bloquear o caminho para a ascensão da China e forçar uma recessão. Uma de suas armas importantes são as tarifas sobre os países da ASEAN[3], onde os investimentos chineses estão concentrados para contornar as barreiras comerciais dos EUA.

O imperialismo emergente da China está em uma encruzilhada importante. Dado que não cederá a um aumento substancial do consumo interno, o que implicaria reduzir o grau de exploração de sua classe trabalhadora[4], é forçado a dar um salto em sua expansão externa, estabelecendo zonas de influência no que é conhecido como  Sul Global, em confronto aberto com os EUA. Isso afeta as exportações, mas vai além disso.

A esse respeito, o influente economista chinês Huang Yiping[5], membro do Comitê de Política Monetária do Banco Popular da China, defendeu recentemente um “plano Marshall chinês“. Este foi o nome dado ao chamado “Programa Global de Desenvolvimento Verde do Sul”, projetado para “aliviar a pressão do excesso de capacidade da China e tornar o mundo em desenvolvimento mais verde e, a longo prazo, forjar um nexo estratégico de co-desenvolvimento“. Outro economista influente, Yao Yang[6], reconhece o excesso de capacidade da China, que ele define mais precisamente como “excesso de capital“, e também avança a conveniência de acompanhar as exportações conjuntas (joint ventures)em áreas como carros elétricos, energia solar ou energia eólica, em países imperialistas como os da UE, traçando um paralelo com as joint ventures ocidentais que se instalaram na China.

  • A UE numa encruzilhada com difícil saída

A Europa, em particular a União Europeia (UE), aparece neste quadro internacional como uma potência menor em crise, no meio do conflito entre os EUA e a China. Na verdade, a UE não é um bloco imperialista homogêneo, mas um agrupamento de Estados com interesses diferenciados, presidido pela Alemanha e pela França. A UE é impotente para agir como uma “potência imperialista alternativa” e se subordina aos EUA em pontos internacionais essenciais, apesar dos conflitos entre ambas as partes. Por exemplo, as palavras da Relatora Especial da ONU para a Palestina, Francesca Albanese, que acaba de declarar que “os Estados da UE pregam o direito internacional, mas são guiados mais por uma mentalidade colonial do que por princípios, agindo como vassalos do império dos EUA“.

A desarticulação e a subjugação da UE é um dos elementos importantes do plano global dos EUA. A China, por sua vez, está tentando atrair a UE para si e torná-la autônoma dos EUA. A UE encontra-se numa encruzilhada histórica: o que é que a Alemanha e a França vão fazer, com uma UE em crise, sem força para agirem sozinhas em escala global e com interesses que, aliás, não coincidem em aspectos substanciais?

Dificuldades praticamente intransponíveis surgem quando se trata de configurar um centro imperialista europeu autônomo. O projeto da UE está em uma crise profunda: emparedado entre os EUA e a China e com Trump (e Putin) trabalhando ativamente para enfraquecê-lo e quebrá-lo. As propostas pró-europeias de Enrico Letta ou Mario Draghi (que poderiam ser resumidas como “a UE deve funcionar como um Estado único“) carecem de bases sólidas de apoio. Pelo contrário, forças de extrema-direita como Orbán da Hungria, Fico da Eslováquia, os poloneses do PyS, a AfD da Alemanha (apoiada diretamente pelo vice-presidente Vance), bem como o holandês Wilders, Marine Le Pen da França ou Meloni da Itália, todos eles associados a Trump, Putin ou ambos, são contra, com maior ou menor contundência.  às  pretensões europeístas franco-alemãs. Além disso, a França e a Alemanha estão abertamente ameaçadas pela ascensão eleitoral da extrema-direita antieuropeia.

A Alemanha, em pleno retrocesso, sofre uma longa recessão e, na decadente França, o governo Bayrou acaba de anunciar um brutal plano de austeridade (do qual apenas os gastos militares são poupados), sob o argumento de que o país está a um passo da falência. Da mesma forma, as forças militares francesas acabam de ser expulsas de suas últimas bases militares na África. Estamos assistindo, ao mesmo tempo, a uma espécie de metamorfose militarista do plano Draghi[7], a cargo da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leien, e dos governos alemão e francês.

No entanto,  o keynesianismo militar da UE, para ter um impacto no crescimento sustentado do PIB, envolveria a fabricação de armas na Europa e depois a venda a terceiros, caso contrário, o estímulo inicial dos gastos militares acabaria se esgotando rapidamente. E é aqui que surge uma questão fundamental: alguém pensa que os governos europeus unificarão a sua produção de armas, recusarão gastar dinheiro comprando armas dos estadunidenses e entrarão em concorrência aberta com eles no mercado mundial de armas?

O que vimos na reunião da OTAN no final de junho em Haia foi uma demonstração flagrante de subserviência europeia a Trump e suas demandas, expressa na aprovação de um aumento nos gastos militares para 5% do PIB (um trilhão de dólares adicionais por ano). Isso implica um aumento acentuado da dívida do Estado, cortes sérios nos serviços básicos do Estado de Bem-Estar Social e um aumento nos impostos. Além disso, ratifica um alto grau de satelização dos EUA, que se encontrarão com as mãos muito mais livres para concentrar suas forças contra a China no Indo-Pacífico e com uma indústria de armas que se beneficia de uma enorme carteira adicional de encomendas europeias. Coincidindo com a reunião, o chanceler alemão Friedrich Merz, com uma economia caminhando para seu terceiro ano de recessão, anunciou um impressionante programa de compras de armas dos EUA de cerca de 10 bilhões de dólares e, evidentemente! novas compras de Israel em meio à carnificina em Gaza e na Cisjordânia.

Ao mesmo tempo, começam a ressurgir na UE reivindicações territoriais que nos remetem ao tempo da Primeira Guerra Mundial e põem em causa a atual divisão territorial europeia. É o caso da Moldávia, por parte da Romênia, ou da Transcarpetia ucraniana, por parte da Hungria. Essas reivindicações territoriais que começam a surgir são favorecidas pela condescendência de Trump sobre as reivindicações de Putin em relação à Ucrânia, o que, por sua vez, alimenta os riscos de incursões militares russas nos próximos anos nos países que pertenciam à URSS, na Ásia, nos países bálticos, na Moldávia …

O progresso das negociações tarifárias com o governo Trump, ainda em andamento, mostra a mesma fraqueza servil da UE em relação aos EUA. Trump, além disso, considera apenas a balança comercial com a UE e não a de serviços, onde o superávit dos EUA é notável. Também ignora que uma parte significativa do déficit comercial vem das manobras fiscais das multinacionais estadunidenses que tomam a Irlanda como base de exportação para evitar impostos inflacionando artificialmente os preços. Em outras palavras, se considerarmos esses elementos, o déficit é inexistente. Isso, sem contar a repatriação de lucros de bancos e multinacionais estadunidenses. No entanto, Trump enviou uma carta a von der Leien estabelecendo uma tarifa proibitiva de 30%. Como é que a UE, a Alemanha e a França vão responder?

  • O futuro e a luta de classes

Ao longo do artigo, consideramos a disputa entre os EUA e a China. Uma pergunta-chave a ser feita é quem durará mais tempo sem entrar em crise? Trump conseguirá impor um bloqueio à economia chinesa? A superprodução de capital conseguirá encontrar saídas ou acabará causando uma grave crise na China? Os EUA cairão em uma forte recessão econômica primeiro? Como a enorme e crescente dívida pública estadunidense afetará a economia dentro e fora dos EUA? Qual será, no final, a resposta da UE às tarifas de Trump? Como é que estas tarifas afetarão as economias europeias e a própria coesão da UE? Qual será a resposta nos países semicoloniais?

Entretanto, é possível que entre os maiores problemas de Trump esteja a resistência interna, operária e popular às suas medidas. Vimos as mobilizações massivas em Los Angeles e outras cidades contra deportações e incursões do ICE, bem como a grande mobilização nacional “No King Day”  em 14 de junho, na qual mais de cinco milhões de pessoas participaram em 2.100 locais. Vamos ver qual é a continuidade desse movimento, os passos que dá em sua auto-organização e o grau de independência que alcança em relação ao aparato do Partido Democrata.

Também na China, Xi Jinping pode enfrentar conflitos sociais significativos, apesar da ausência de liberdades sindicais e da presença dos sindicatos oficiais, que são aparatos de controle do regime e dos empregadores. Vale a pena notar a recente concentração de protestos[8] que se espalhou, com intensidade variável, por todo o país. Houve conflitos na indústria manufatureira e na construção e também, o que é mais inédito, na educação e na saúde. Os atrasos salariais continuam a ser o denominador comum da grande maioria dos protestos. A manufatura tem se concentrado principalmente em Guangdong e afeta as indústrias voltadas para a exportação. São significativas as de duas fábricas da Foxconn (a maior fornecedora mundial de iPhones) e duas fábricas da ByD, principal fabricante de carros elétricos. O setor da construção foi responsável por mais de metade dos protestos coletivos de 2025, refletindo a persistência da crise imobiliária chinesa.

Estamos vivendo um momento de transição com cenários extremamente complexos e hipóteses alternativas.  A disputa interimperialista é combinada com uma ofensiva generalizada contra a classe trabalhadora em todo o mundo, nos países imperialistas e nos países semicoloniais, e com a continuidade das guerras e conflitos armados.

O curso do genocídio em Gaza e na Cisjordânia e a resistência à barbárie sionista, bem como a marcha da guerra na Ucrânia contra a invasão de Putin, com Trump confraternizando com o agressor, marcarão o próximo período, definido por um aguçamento da luta de classes que está em andamento.

Se algo está evidente nesta situação, é a necessidade vital de dar passos substanciais na auto-organização dos trabalhadores e oprimidos e, no calor disso, na construção de uma alternativa operária independente e revolucionária que mostre que podemos encontrar uma saída socialista para a catástrofe a que a decomposição do capitalismo mundial nos condena. É para isso que queremos contribuir a partir da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI).


[1] O modelo de IA da empresa OpenAI

[2] Enquanto milhões de carros elétricos estão eternamente nos terrenos dos fabricantes chineses, em 23 de maio passado, a ByD, maior fabricante, baixou os preços de seus carros entre 15% e 30%, gerando uma verdadeira explosão na guerra de preços que afetou o setor por muitos meses. O governo chinês teve que intervir e anunciou, entre outras medidas, o desaparecimento de inúmeras marcas de eletricidade que não são lucrativas, incentivando fusões

[3] Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN)

[4] Em termos de condições de trabalho, o jornal de Hong Kong, South China Morning Post (SCMP), relata a existência generalizada do conhecido regime 996, comum entre as empresas de Internet e tecnologia: dias úteis das 9h às 21h durante 6 dias por semana, apesar de a lei trabalhista prescrever 8 horas de trabalho por dia,  44 por semana e um dia de descanso por semana. A situação dos trabalhadores da construção civil (quase todos migrantes do campo) é de semiescravidão, sem sequer um dia de descanso semanal.  Uma situação semelhante é a dos trabalhadores das marcas de moda ultrarrápida Shein ou Temu, também migrantes rurais, com um dia de descanso por mês, 75 horas de trabalho por semana e pagamento por peça.

[5] SCMP de 18-11-24

[6] https://www.scmp.com/economy/global-economy/article/3309715/unswerving-superpowers-meet-unsustainable-tariffs-yao-yang-breaks-down-paradox Postado em 12 de maio de 2025

[7] O Relatório Draghi, apresentado em setembro de 2024 sob o título O Futuro da Competitividade Europeia, defende uma estratégia europeia comum para frear o declínio da UE. Propõe o estabelecimento de uma política econômica externa e de uma estratégia industrial comuns, de uma política tecnológica comum e de um mercado único de capitais, incluindo a emissão conjunta de dívida. Do mesmo modo, estender o mercado único à energia, às telecomunicações e à indústria militar.

[8] https://andreaferrario1.substack.com/p/la-cina-sotto-pressione-mobilitazioni

Tradução: Lílian Enck

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