Israel é mesmo um paraíso gay?

Por: Jorge H. Mendoza
Como a propaganda sionista usa a imagem da comunidade LGBTQIA+ para legitimar a ocupação
Um dos argumentos usados pelos defensores de Israel é o de que o país seria um oásis de liberdade para a comunidade LGBTQIA+, em contraste com a intolerância religiosa dos países vizinhos. Tel Aviv é proclamada pelo regime sionista como capital gay do Oriente Médio e sedia uma das maiores Paradas do Orgulho do mundo, atraindo cerca de 200 mil pessoas anualmente.
Essa narrativa é amplamente explorada e difundida pelo Estado sionista e seus apoiadores como propaganda do regime. Mas será mesmo que Israel é esse paraíso todo? Se sim, existe contradição na crítica ao Estado sionista?
Os avanços em direitos LGBTQIA+ em Israel
Não se pode negar que o argumento tem sua base na realidade: Israel tem políticas mais liberais em relação à comunidade LGBTQIA+ do que, em geral, se tem em toda a Ásia e Oriente Médio. A homossexualidade foi descriminalizada no país em 1988 e, desde 1993, casais entre pessoas do mesmo sexo podem formar união estável, com direitos semelhantes aos casais héteros, como herança e pensão.
Os casamentos homoafetivos realizados no exterior só passaram a ser reconhecidos em 2006 (antes do Brasil), e, desde 2021, após uam decisão favorável da Suprema Corte, casais LGBTQIA+ podem ter acesso às barrigas solidárias e à adoção, mas com ressalvas. As próprias Forças Armadas de Israel permitem abertamente que pessoas LGBTQIA+ sirvam, e o sistema público de saúde oferece cirurgias de redesignação sexual.
Nos grandes centros urbanos, como em Haifa e Tel Aviv, há um relativo apoio ao casamento homoafetivo por parte da população. Além disso, é importante dizer, há representações políticas abertamente LGBTQIA+ no Knesset, o parlamento sionista. Com todas as contradições, isso coloca Israel mais próximo das democracias burguesas ocidentais.
Os limites de um regime burguês
Apesar da relativa concessão de direitos, não podemos ser inocentes. A começar pelo simples fato de que essa concessão não resolve o problema da opressão. Não se trata de minimizá-los, mas de encarar a complexidade e as contradições da realidade. Basta constatar que no Brasil, onde o movimento das pessoas LGBTQIA+ conquistou o reconhecimento da união estável, casamento e direito à adoção, não se viu uma redução drástica dos números relativos à violência e à discriminação. Além disso, esses direitos não são um ponto de não retorno. Ao contrário, estão sempre sob ameaças da agenda dos setores conservadores.
Além disso, é preciso notar que, em Israel, não existe o casamento civil, nem homossexual nem hétero, como há em outros países. A única forma de casamento reconhecido pelo Estado é o casamento religioso dentro das religiões reconhecidas. O direito ao casamento está estritamente vinculado ao fortalecimento de uma identidade judaica. O mesmo vale para o direito ao divórcio, que só pode ser religioso. Ou seja, para uma mulher judaica se divorciar, precisa haver explícito consentimento do marido e, mesmo assim, o divórcio precisa ser legitimado por um conselho de rabinos. Ou seja, mesmo reconhecendo uniões homoafetivas, o direito ao casamento como um todo é bem preso à religiosidade.
Mesmo a Parada do Orgulho de Tel Aviv, tão difundida, é uma ação do Estado e não da sociedade civil e dos movimentos sociais, como em geral é em outros países. O município de Tel Aviv, o Ministério do Turismo e o Ministério das Relações Exteriores são os grandes patrocinadores e articuladores da Parada. Um pouco diferente da Parada de Jerusalém, que ainda preserva um tom um pouco mais crítico e enfrenta hostilidade e violência.
Os direitos LGBTQIA+ em Israel estão longe de serem universais. Ficam restritos às bolhas dessas grandes cidades e, em geral, a homofobia persiste em uma sociedade fortemente marcada por uma identidade religiosa e conservadora.

O projeto Brand Israel
Mas que mal pode haver nesse apoio significativo e direto do Estado à Parada? Não seria esse um reconhecimento dos direitos? Não é bem por aí, e os milhões de dólares investidos não são de graça. Entre 2003 e 2005, por iniciativa do Ministério das Relações Exteriores, Ministério das Finanças e o Gabinete do Primeiro-Ministro, Israel fez uma longa consultoria com executivos estadunidenses de marketing. O resultado desse processo foi o projeto Brand Israel.
O objetivo foi lançar uma campanha global de relações públicas para afastar a imagem de Israel da associação com o militarismo, a guerra e a religiosidade, pintando-o como uma nação “moderna e progressista”. Fato é que a imagem do sionismo havia se desgastado muito após a Segunda Intifada, no começo dos anos 2000, e, não por coincidência, quando a internet se popularizou na Palestina ocupada, permitindo a difusão de imagens por fora do controle de Israel.
A estratégia do Brand Israel incluía destacar aspectos culturais, tecnológicos e sociais de Israel, como sua cena tecnológica (“Startup Nation”), festivais de cinema, turismo de praia e, significativamente, sua suposta aceitação da comunidade LGBTQIA+. Em 2010, por exemplo, foram gastos 94 milhões de dólares para promover o turismo gay na região. Essa última faceta tornou-se uma ferramenta central para atrair turistas e melhorar a percepção internacional, especialmente em contraste com países árabes vizinhos, frequentemente retratados em um estereótipo orientalista como homofóbicos e “atrasados”.
A exploração oportunista da pauta pelos sionistas
Por trás dessa imagem de paraíso gay, entretanto, esconde-se uma realidade nada amistosa. Israel utiliza os direitos LGBTQIA+ como uma ferramenta de propaganda para se apresentar como uma democracia liberal, enquanto mantém um regime de apartheid contra os palestinos. A estratégia oportunista de relações públicas é uma velha conhecida: é o pinkwashing – que explicamos melhor nesse texto. Basicamente, trata-se de instrumentalizar cinicamente a pauta de grupos LGBTQIA+ minorizados para desviar a atenção de outras atrocidades deliberadamente cometidas e, assim, colocar grupos oprimidos uns contra os outros. É dividir para conquistar. Alguns pesquisadores e ativistas costumam relacionar o pinkwashing a uma espécie de homonacionalismo. Quer dizer, até faz algumas concessões à comunidade, mas de maneira seletiva – apenas aos LGBTQIA+ nacionais, e os outros que lutem.
O pinkwashing é uma estratégia deliberada para legitimar a ocupação ilegal da Palestina, os assentamentos coloniais, o bloqueio genocida de Gaza e a violência sistemática contra um povo inteiro. Enquanto turistas ocidentais celebram em Tel Aviv, a poucos quilômetros dali palestinos enfrentam checkpoints, demolições de casas e prisões arbitrárias. A liberdade de expressão tão alardeada para a comunidade LGBTQIA+ israelense não se estende aos palestinos, cujas manifestações são reprimidas com violência.
Por exemplo, ao apenas reconhecer o casamento homoafetivo exterior e sem instituí-lo de fato, a alternativa para as pessoas LGBTQIA+ de Israel acaba sendo países próximos como Chipre ou Grécia. Mas, se os palestinos têm mobilidade controlada pelo regime de apartheid, na prática, tal direito existe apenas virtualmente e não se estende a eles.
O mesmo vale para o direito ao alistamento militar. Ora, em que isso, exatamente, representa um avanço para a comunidade LGBTQIA+? As Forças Armadas são o principal braço do projeto de colonização e de limpeza étnica na Palestina, que é, em si, discriminatório. Ser cúmplice de tais crimes não significa progresso nenhum na luta contra a discriminação das pessoas LGBTQIA+.

A dupla opressão dos palestinianos LGBTQIA+
A situação dos palestinos LGBTQIA+ é particularmente reveladora da hipocrisia israelense. Enquanto Israel se gaba de acolher homossexuais palestinos que fogem da perseguição em Gaza ou na Cisjordânia, a realidade é bem diferente. Esses indivíduos enfrentam racismo, precariedade e o constante risco de deportação. Relatos de organizações como Al-Qaws apontam que as autoridades israelenses chantageiam palestinos LGBTQIA+, exigindo que atuem como informantes em troca de proteção. Essa exploração da vulnerabilidade de uma comunidade marginalizada é um exemplo cruel de como Israel transforma até mesmo a luta LGBTQIA+ em uma arma contra o povo palestino.
Já os palestinos LGBTQIA+ vivem uma dupla opressão: o estigma social em suas comunidades de origem, agravado pela destruição causada pela ocupação, e a discriminação em Israel, onde são tratados como cidadãos de segunda classe. A narrativa do pinkwashing ignora essa complexidade, reduzindo a luta LGBTQIA+ palestina a um argumento pró-Israel, enquanto silencia as vozes de ativistas que resistem tanto à ocupação quanto à homofobia.
Não pode haver orgulho no holocausto
A luta pela libertação da Palestina é inseparável da luta contra todas as formas de opressão, incluindo a homofobia e a transfobia. No entanto, não podemos cair na armadilha de endossar a propaganda sionista que usa os direitos LGBTQIA+ como fachada. A verdadeira emancipação da comunidade LGBTQIA+ só será possível em um contexto de justiça social global, que inclua o fim do colonialismo, do imperialismo e do capitalismo que sustenta regimes como o de Israel.
A solidariedade com a Palestina exige apoio ao movimento BDS, que pressiona Israel a respeitar os direitos humanos e encerrar a ocupação. Também exige amplificar as vozes de organizações palestinas que lutam pela autodeterminação palestina sem abrir mão de sua identidade LGBTQIA+. Devemos rejeitar a falsa dicotomia entre direitos LGBTQIA+ e libertação nacional, reconhecendo que ambas as lutas são interconectadas na resistência ao imperialismo sionista e às estruturas de poder que o sustentam, como as ideologias patriarcais e machistas da religiosidade conservadora.
Israel não é um paraíso gay, mas um Estado colonial que usa os direitos LGBTQIA+ como cortina de fumaça para seus crimes. O pinkwashing é uma afronta tanto à comunidade LGBTQIA+ quanto ao povo palestino, pois transforma uma luta por emancipação em uma ferramenta de opressão.
Lutar contra o pinkwashing exige evitar dois erros: não podemos celebrar de forma acrítica as concessões do Estado israelense como se fossem prova de progresso, tampouco desprezar completamente sua importância para quem vive sob opressão. Essas conquistas importam, mas só fazem sentido dentro de um horizonte que questione o sistema que as limita e usa como fachada. Nosso compromisso é com a libertação da Palestina, o fim de toda forma de opressão e com a construção de um mundo onde a igualdade para todas as identidades seja uma realidade, não uma propaganda.