África Subsaariana | Nova partilha ou luta pela II Independência – parte I

Por: Cesar Neto e J.G. Hata
Introdução
O atual ciclo de crise do sistema capitalista mundial se reflete de forma intensa no continente africano. As consequências são variadas, tais como: aumento da exploração mineral e natural do continente africano, deslocamento de populações inteiras, degradação do meio ambiente e queda ainda maior da qualidade de vida das massas. Neste texto queremos abrir uma discussão que nos prepare para melhor entender e explicar esses processos e, acima de tudo, ajudar a vanguarda lutadora a elaborar um programa que parta da necessidade da segunda independência rumo a uma sociedade socialista revolucionária. Este texto tem, portanto, a pretensão de explicitar como a atual crise capitalista incide na política interna de cada um dos 54 países africanos.
- Por uma questão pedagógica (e em certo sentido arbitrária), dividimos esta discussão em partes. Dado que a África possui 54 países com grande diversidade histórica, econômica e política, optamos por essa divisão formal para melhor poder explicar e enriquecer com dados os principais elementos sobre a situação africana e seus principais atores, isto é, o imperialismo, as submetrópoles, as burguesias locais e as lutas que aconteceram no último período.
Os quatro grandes ciclos econômicos pós-independência desde os anos 1960
Há muita diversidade no desenvolvimento capitalista dos países africanos. Há economias como a da África do Sul, da Nigéria e de Angola, que são mais avançadas que as demais, apesar do enorme atraso em relação aos países sul-americanos, por exemplo. Há, também, países como Ruanda e Uganda, que atuam como centro de tráfico de ouro e outros materiais e cumprem um papel de gendarme dos interesses imperialistas na região. Os dados do PNUD sobre o Índice de Desenvolvimento Humano, publicados em 2025, trazendo dados de 2023, indicam que dos 193 países listados, entre os dez piores, nove são da África subsaariana.
Os quatro grandes ciclos
De 1960 a 1980, anos de crescimento da economia: Foi um período demarcado pela construção de infraestrutura para poder administrar os países após a independência política, e depois para mostrar força e pujança para a população local. Como exemplo, podemos citar obras em Gana[2] e Costa do Marfim[3].
Entre 1967 e 1980 houve um crescimento importante do PIB, que esteve na ordem de 6%. Um crescimento que poderia ser comparável ao de alguns países asiáticos. As economias de Gana e Costa do Marfim, por exemplo, cresceram mais do que as da Malásia e da Indonésia, respectivamente.
1980 a 2000, a acelerada decadência da economia da África subsaariana: Em função dos fatores externos, como aumento do preço do petróleo, diminuição dos termos de troca e a crise da dívida, o PIB, que chegou a 6%, caiu para 2,1%.
O caráter monoexportador e a queda dos preços internacionais das matérias-primas são dos principais fatores para a decadência da economia subsaariana. Em 1975, um trator novo custava o equivalente a oito toneladas métricas de café africano; em 1990, o mesmo trator custava quarenta toneladas métricas do mesmo café.
Essa queda continuou ocorrendo de tal sorte que, em 2015, uma tonelada de cacau valia US$ 1.300 e uma camioneta 4×4 valia US$ 120.000. Ou seja, são necessárias 92 toneladas de cacau para comprar um 4×4. Uma tonelada de cacau requer oito hectares; como a maioria dos produtores tem um hectare, significa que serão necessários quinhentos anos de trabalho para comprar a 4×4.
2000 a 2007, um novo ciclo de crescimento: Se entre 1967 e 1980 a economia cresceu em média 6% ao ano, de 2000 a 2007 voltou a crescer, mas em um patamar inferior, alcançando uma média de 3,9%. Esse novo ciclo de crescimento se deu em grande parte devido ao aumento significativo dos preços das commodities.
2007 a 2022, fruto da crise econômica mundial: A desaceleração das economias europeia e norte-americana e a redução da economia chinesa provocaram o declínio no consumo de matérias-primas e queda dos preços.
Esses períodos de crescimento do PIB que relatamos acima não corresponderam à elevação do nível de vida das massas, pelo contrário, conforme podemos ver no exemplo da Nigéria:
ANO | Salário Mínimo (Naira, moeda local) | Salário Mínimo (US$) | PIB per capita | Salário Mínimo/PIB per capita % |
1998 | 3.000 | 136 | 2.204 | 75 |
2014 | 18.000 | 109 | 5.443 | 25 |
2024 | 70.000 | 44 | 6.318 | 10 |
O fim do ciclo de expansão e a queda da taxa de lucro na África
Como parte da crise mundial, as corporações transnacionais e as grandes empresas nacionais africanas têm apresentado queda acentuada na taxa de lucro. Os dados publicados em 2023 e 2024 mostram que nesse período acumularam quase 25% de lucro, porém os dados publicados em 2025 apontam uma forte desaceleração. Estamos falando de empresas de mineração, telecomunicações, e-commerce, etc.
De acordo com os dados publicados em 2025, das 500 maiores empresas, tomando como exemplo as primeiras 387, a margem média de lucro está em 6,3%, isto é, uma queda muito acentuada nos últimos dois anos. As razões dessa queda foram a instabilidade monetária e a queda nos preços das commodities. Nesse último período, apenas algumas poucas empresas vinculadas à exploração de ouro e ferro e também empresas específicas do ramo da aviação conseguiram uma taxa de lucro um pouco maior.
Tomando como referência os dados publicados em 2023, das 351 maiores empresas, a taxa de lucro foi um recorde de 14,9%. Dos dados publicados em 2024, tomando em conta as 377 maiores empresas, a taxa de lucro foi de 11,5%, e os dados publicados em 2025 apontam para 6,3%.
O capital financeiro, por outro lado, tem obtido resultados expressivos. No continente temos um pouco mais de 300 bancos. Analisando a partir de suas origens, concluímos que, dos dez primeiros bancos, cinco são da Nigéria, três do Egito, um de Angola e outro das Ilhas Maurício. A grande maioria se desenvolveu favorecida pelos empréstimos públicos, flutuação da taxa de câmbio e, em alguns casos, ganhos oriundos do serviço da dívida pública. O retorno sobre o patrimônio líquido dos bancos estudados tem estado por cima dos 30%.
Apesar da lucratividade dos bancos, esta se dá dentro da curva descendente da economia mundial, com possibilidade de crescimento curto e frágil. Sem medo de errar, pode-se afirmar que a era de crescimento acelerado dos gigantes corporativos africanos chegou ao fim, com suas margens de lucro despencando cada vez mais rápido.
A crise capitalista de 2008-2009 e as crises subsequentes e seus impactos na economia africana
Os dados econômicos acima demonstram o quanto a crise capitalista, aberta em 2008-2009, impactou e segue impactando o continente africano, em especial a região conhecida como subsaariana. Diversas economias historicamente debilitadas entraram em situação de default frente à dívida externa, vários governos caíram, se intensificaram as explorações dos recursos minerais, e um dado estarrecedor foi o aumento da fome, por conta das questões climáticas e pela redução da ajuda alimentar enviada pelo Programa de Alimentos das Nações Unidas. Essa redução se deve à inflação nos preços e à inadimplência dos países que contribuíam para tal fim.
A nova partilha da África: EUA, China e Rússia à frente das principais iniciativas
EUA: A presença norte-americana na África vem desde muito antes dos processos de independência dos anos 60 do século passado. Há vários exemplos que comprovam essa presença, sendo um dos mais emblemáticos a extração e o transporte de urânio, que foi enviado de forma secreta para os EUA durante a II Guerra Mundial para a fabricação das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Depois da guerra, continuaram extraindo urânio para novas bombas, assim se impondo como potência atômica diante do mundo. Esse processo de extração exigiu uma grande inversão de capitais na construção de estradas, ferrovias e portos.
Durante o governo Obama, foram tentadas diversas iniciativas, que depois foram abandonadas por Trump. No governo Joe Biden, essa política foi retomada por meio da Cúpula de Líderes Estados Unidos-África de 2022 – dos 54 países representados pela União Africana, 49 estiveram presentes. Segundo um comunicado da Casa Branca, “começamos com os países que têm uma boa reputação junto à União Africana. Portanto, há quatro países que tiveram mudanças inconstitucionais no governo e que foram suspensos da União Africana: Guiné, Sudão, Mali e Burkina Faso. E não temos relações diplomáticas plenas com a Eritreia, então eles também não foram convidados”[4]. Sudão, Mali e Burkina Faso, por estarem na órbita dos russos, não foram convidados, obviamente.
O atual governo Trump, através do Secretário de Estado Adjunto Interino para Assuntos Africanos, Troy Fitrell, anunciou que os EUA promoverão, em outubro deste ano, nova Cúpula de Líderes EUA-África em Nova York. O objetivo desse novo encontro, segundo o Secretário Troy, será centrado nas questões de comércio e investimento. “Não será uma cúpula para falar apenas de política, guerra e coisas do tipo. Ela priorizará o intercâmbio entre parceiros e as relações entre iguais.” E acrescenta: “aumentar as exportações e os investimentos dos EUA na África, eliminar déficits comerciais e impulsionar a prosperidade mútua (…) Os EUA têm um plano de seis pontos para impulsionar o comércio e o investimento dos EUA na África, em cooperação com a comunidade empresarial, para finalmente reverter décadas de estagnação durante as quais a África foi responsável por menos de 1% do comércio dos EUA”.
Porém, todo esse esforço de realizar a Cúpula de Líderes EUA-África, em plena curva descendente da economia, iniciada com a grande recessão de 2007-2009, ficará muito limitado: i. pela retirada dos EUA do Banco Africano de Desenvolvimento, devido ao fato de essa agência defender uma política climática e esta não ser a prioridade do atual governo dos EUA; ii. pelo Projeto de Lei Orçamentária conhecido como “One Big Beautiful Bill”, que propõe um imposto federal de 3,5% sobre o dinheiro enviado ao exterior por cidadãos não norte-americanos. Sendo aprovada, tal lei terá um impacto imenso nas combalidas economias africanas – no Senegal, por exemplo, essas remessas representam 10% do PIB; iii. pela restrição de ingresso de pessoas de sete países africanos nos EUA – governos como o do Chad já se manifestaram duramente contra essa restrição; iv. e, como se fosse pouco, pelo incremento das tarifas de importação do governo norte-americano, entre outras medidas.
Trocando em miúdos, qual é a prioridade, as decisões da Cúpula de Líderes ou os cortes de Trump? Na verdade, já se foi o tempo em que o imperialismo norte-americano fazia o que queria. Hoje, segue mandando, mas em ritmo de decadência.
China: O país tem relações com a África que remontam a 1970, quando financiou e construiu a estrada de ferro TAZARA (Tanzânia Zâmbia Railway), com 1.860 quilômetros, para transporte de cobre e outros minérios da Zâmbia ao porto tanzaniano de Dar es Salaam, no Oceano Índico. Essa estrada foi muito usada na época do Apartheid, e depois foi sucateada.
Os chineses, em setembro de 2024, realizaram IX Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), com a participação expressiva de 51 países. O FOCAC esteve marcado pela discussão da dívida externa. A China, durante a pandemia, suspendeu o pagamento da dívida, e agora, passados três anos, os países africanos devem começar a pagá-la, e esse fato está estrangulando suas economias, de tal sorte que, por exemplo, o governo angolano anunciou publicamente que atrasaria o pagamento dos funcionários públicos para poder pagar o serviço da dívida!
Diante da crise da dívida, a China prometeu US$ 50,7 bilhões em linhas de crédito e financiamento nos próximos três anos, para investimento em infraestrutura no continente africano. “Os trinta novos projetos de infraestrutura anunciados no FOCAC em setores-chave como transporte e energia fazem parte da mais ampla Iniciativa Cinturão e Rota (BRI). A BRI integra as economias africanas mais firmemente aos mercados e cadeias de suprimentos chineses, solidificando ainda mais a influência e a presença de longo prazo da China no continente.”[5]
A exportação de capitais, segundo Lenin, é uma das principais características do imperialismo, e o presidente chinês Xi Jinping, no FOCAC, foi muito claro nesse quesito: “Juntos construímos estradas, pontes, caminhos-de-ferro, escolas, parques industriais (…), projetos que mudaram a vida de milhões de pessoas”.
Embora a China tenha investimentos em vários países africanos, podemos dizer que os mais importantes se fazem presentes em cinco países: Guiné, Zâmbia, África do Sul, Zimbábue e República Democrática do Congo (RDC). Zâmbia, Zimbábue e República Democrática do Congo são as maiores fontes de energia verde no continente. É o chamado cinturão de cobre da África, e também o maior estoque de lítio, cobre e cobalto.
Mais de 70% do cobalto do mundo é produzido na RDC, sendo que a China é o principal investidor estrangeiro. Ela detém cerca de 72% das minas ativas de cobalto e cobre da RDC, incluindo a Mina Tenke Fungurume, a quinta maior mina de cobre e a segunda maior mina de cobalto do mundo.
O CMOC Group da China é a empresa líder mundial em mineração de cobalto. Ela pode produzir até 70.000 toneladas, graças à nova mina de Kisanfu. Em 2019, a RDC e a China foram responsáveis por cerca de 70% da produção global de cobalto e 60% das terras raras.
O Zimbábue é outro país em que a China tem investido no contexto da corrida da energia verde. O país abriga as maiores reservas de lítio da África, um elemento crítico na produção de baterias para veículos elétricos. Em 2023, a Prospect Lithium Zimbabwe, uma subsidiária da empresa chinesa Zhejiang Huayou Cobalt, abriu uma planta de processamento de lítio de US$ 300 milhões. Ela tem capacidade para processar 4,5 milhões de toneladas por ano de lítio de rocha dura em concentrado para exportação, em um cenário global de cerca de 200 milhões de toneladas produzidas anualmente.
Rússia: De 1990 a 2015, a Rússia teve pouca participação na África. Moscou se retirou estrategicamente da região nesse período, porém nos últimos dez anos vem crescendo sua participação. A receita comercial entre a Rússia e os países africanos quase dobrou, de US$ 9,9 bilhões em 2013, para US$ 17,7 bilhões em 2021. As exportações de grãos são de particular importância, já que quase 30% do suprimento de grãos da África vem da Rússia.
Na Cúpula Rússia África de 2023, Putin prometeu enviar grãos gratuitamente para seis países impactados com os efeitos da guerra da Ucrânia. Todos eles (Burkina Faso, Zimbábue, Mali, Somália, Eritreia e República Centro-Africana) aliados de Putin.
Empresas russas estatais ou mistas são a ponta de lança dos negócios russos em continente africano. Rosneft, Tatneft e Gazprom, gigantes petroleiras, participam de grandes projetos de hidrocarbonetos no norte da África; Rosatom, empresa de energia nuclear, também tem vários projetos, entre eles, a construção da primeira usina nuclear no Egito; Alrosa, a principal mineradora de diamantes da Rússia, expandiu suas operações em Angola, Congo e Zimbábue.
Dados publicados em 2023 mostram que os laços comerciais entre Rússia e África ainda são modestos. Esses dados russos são os oficiais, embora haja dúvidas sobre a existência de dados ocultos. A receita comercial entre a Rússia e os países africanos totaliza cerca de US$ 17,7 bilhões, enquanto o valor do comércio da África com a União Europeia, a China e os Estados Unidos é atualmente de US$ 295 bilhões, US$ 254 bilhões e US$ 65 bilhões, respectivamente. A Rússia também investe pouco na África, representando menos de 1% do total do investimento estrangeiro direto (IED) destinado ao continente.
O avanço russo na região também pode ser medido por meio das votações na ONU. Na Assembleia Geral do dia 7 de abril de 2022, por exemplo, votou-se uma resolução pedindo a suspensão da filiação da Rússia no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Nove países africanos votaram contra, 24 se abstiveram e 11 não apareceram para votar. Isso quer dizer que, dos 54 países, 44 não votaram pela resolução.
O imperialismo japonês, o europeu e as submetrópoles
Japão: O país sempre priorizou os investimentos na Ásia e secundarizou os investimentos na África. Por exemplo, em 2020 o investimento estrangeiro direto realizado pelo Japão foi de US$ 6,1 bilhões, atrás de Singapura e Suíça, com US$ 21 bilhões e US$ 17 bilhões, respectivamente. Isso não quer dizer que não haja investimentos japoneses no continente africano. Podemos citar sua participação no financiamento do porto de Mombaça, no Quênia, ou a própria presença da Mizuho Financial Group Inc. na condição de um dos dez maiores acionistas da Black Rocks, essa que, por sua vez, se tomarmos as dez maiores empresas de mineração não chinesas que atuam na África, veremos ser acionista das seguintes mineradoras: Rio Tinto, Vale, BHP Billiton, Freeport-McMoran, Newmont Mining, Alcoa, Anglo American, Barrick Gold e Tech.
França: Dos países imperialistas europeus, o que mais chama atenção pela decadência do seu imperialismo é a França. Derrotada militarmente no Sahel, viu seus governos fantoches irem caindo um por um, e a humilhante retirada de suas tropas da região.
Os países africanos que anteriormente foram colônias francesas[6], com o processo independentista dos anos 60 do século passado, romperam suas relações políticas com o antigo colonizador, mas mantiveram relações econômicas e comerciais nos moldes da antiga colônia. Assim, os acordos impostos pela França foram: a) As dívidas contraídas pela França em nome das colônias seriam pagas pelos países recém-independentes; b) Os países recém-independentes manteriam obrigatoriamente 65% de suas reservas financeiras depositadas no Banque de France e, além disso, mais 20% para cobrir riscos financeiros, ou seja, mais de 85% das reservas estariam controladas pelos franceses; c) A França teria preferência na exploração de todo recurso natural descoberto no país; d) A França e as empresas francesas teriam prioridade na contratação para construção de obras públicas; e) A França manteria exclusividade no fornecimento de equipamentos militares e treinamentos dos oficiais; f) A França teria direito de intervir militarmente no país para defender seus interesses; g) O país manteria a língua francesa como sua língua oficial; h) Teria obrigatoriedade de utilizar o franco CFA como a única moeda local; i) Obrigatoriedade de enviar anualmente à França relatório sobre a situação das reservas monetárias; j) Qualquer aliança militar com outro país somente se concretizaria com a autorização francesa; k) Teria obrigação de aliar-se à França em caso de guerra ou crise mundial.
A curva descendente da economia mundial e suas consequências para a África provocaram uma enorme onda de mobilizações em vários países africanos, e assim vários governos foram derrubados por golpes militares (Mali, Burkina Faso, Níger), por processos eleitorais (Senegal e Chad) ou se estabilizaram fechando ainda mais o regime (República Centro-Africana e Costa do Marfim).
A primeira grande derrota francesa se deu após as últimas eleições vencidas por Faustin-Archange Touadera, na República Centro-Africana. Touadera ganhou as eleições, mas os diferentes grupos de milícias vinculadas ao contrabando de diamantes controlavam aproximadamente 70% do território e fustigavam o poder central. A ONU aceitou o envio de assessores militares russos e esses enviaram o Wagner Group, que passou a fazer a segurança de Faustin Touadera, negociar e controlar as milícias. Dada a superioridade militar do Wagner, os grupos hostis foram sendo controlados e o governo adquiriu estabilidade. Como parte do negócio, a Rússia passou a controlar a comercialização e o transporte dos diamantes. O modelo aplicado na República Centro-Africana logo foi adotado no Mali, Burkina Faso e Níger.
A França foi se debilitando como país imperialista frente a suas colônias e suas empresas foram perdendo o espaço que ocupavam no passado, sendo o caso mais emblemático o do Grupo Balloré, que atuou no transporte e logística na África e foi vendido para a gigante suíça MSC. Foi uma venda considerada como uma “fuga”, devido aos inúmeros casos de corrupção envolvendo a empresa no Togo, na Guiné, nos Camarões, em Gana, na Costa do Marfim e na República Democrática do Congo.
Em 2018, o governo francês privatizou a empresa Areva, que entre outras atividades explorava o urânio no Níger. Em seu lugar entrou a Orano, supostamente com capitais franceses, mas que na realidade tem capitais japoneses (Japan Nuclear Fuel Limited e a Mitsubishi Heavy Industries). As suas instalações no Níger correm sério risco de serem substituídas por empresas russas, segundo a Bloomberg News. O Níger, em 2022, foi responsável por 4% da produção mundial de urânio. Isso representa 15% do urânio utilizado pela França para abastecer seus reatores nucleares, que garantem 65% da eletricidade do país.
Países como Arábia Saudita e Brasil têm historicamente atuação na exploração petroleira africana, porém estãoavançando também na ocupação de grandes de terras férteis e especiais para o agronegócio.
Arábia Saudita: “O parlamento sudanês aprovou uma lei que permite à Arábia Saudita arrendar por 99 anos um milhão de acres das férteis terras de Setit e Upper Atbara. É um acordo colonial, denunciou a Associação Nubia de Luta Contra Barragens.”[7] Ao mesmo tempo, o país atua com intervenções militares diretas e atividades políticas, financeiras e religiosas que influenciam a região.
Brasil: No dia 23 de maio de 2025, o governo Lula e o ditador angolano João Lourenço assinaram um acordo de cooperação no qual o Brasil terá acesso a 35 milhões de hectares das melhores terras angolanas para agricultura. O Ministro da Agricultura do governo Lula foi categórico: “[há] oportunidades para não só vender os produtos brasileiros, mas também plantarmos, ocuparmos terras férteis, de oportunidades, que, se o Brasil e os brasileiros, que têm a tecnologia e o desenvolvimento tecnológico da agropecuária tropical, não ocuparem, certamente produtores de outros países o farão”[8].
Emirados Árabes Unidos: Faz investimentos vultosos em vários países africanos nos setores de mineração, petróleo, infraestrutura, logística e agricultura, ganhando controle de parcelas significativas de suas economias nacionais. Os EAU tiveram atuações decisivas no controle dos protestos da chamada Primavera Árabe e estão diretamente envolvidos na Guerra do Sudão, apoiando a milícia Forças de Apoio Rápido (RSF). Incentivaram e apoiaram milícias que se utilizam de mercenários em vários conflitos do continente. O apoio às RSF está vinculado ao contrabando de ouro para os EAU.
Irã: Falecido em 2024, o ex-presidente do Irã, Ebrahim Raisi, esteve em três países africanos (Quênia, Uganda e Zimbábue) levando consigo projetos comerciais e de infraestrutura. O Quênia continua sendo o segundo maior parceiro comercial do Irã na África, depois apenas da África do Sul. O comércio bilateral se concentra nas exportações de chá do Quênia e no petróleo e produtos químicos iranianos. Além da importância econômica, esses três países votaram contra sanções ao Irã na Agência Internacional de Energia Atômica. Cyril Ramaphosa, atual presidente da África do Sul, quando era vice-presidente, esteve em Teerã por três dias para assinar o Programa de Ação Abrangente Conjunto para remover as sanções ao Irã.
Outros países também investem de maneira intensiva na África, como é o caso da Malásia, de Singapura e da Turquia. Porém, não detalharemos essas participações, devido à desproporcional importância dos EUA, da China e da Rússia.
O conflito maior se dá entre EUA e China, porém cada vez mais a Rússia vai ganhando protagonismo. Esses três atores merecem um estudo melhor sobre como se dão essas disputas.
Guerra comercial ou disputa interimperialista entre os EUA e a China?
Os grandes meios de comunicação da burguesia e intelectuais de diferentes matizes reduzem todo o problema dos EUA e da China a uma guerra comercial. A burguesia obviamente não vai reconhecer nunca que existe imperialismo, e os intelectuais, por caminhos diferentes, acabam reduzindo tudo a uma disputa meramente comercial, sendo que as taxas que Trump tentou impor à China e não conseguiu são, para eles, expressão dessa disputa comercial.
A verdade não é essa e, no caso africano, temos inúmeros exemplos que demonstram que se trata de uma disputa interimperialista.
Um caso emblemático é o da Ferrovia TAZARA, de 1.860 km, ligando a Zâmbia ao porto de Dar es Salaam, na Tanzânia, com ramificação para a República Democrática do Congo. Essa estrada foi construída pelos chineses em 1970 e muito usada na época do Apartheid. Terminado o regime de segregação e normalizada a situação na África do Sul, as mercadorias passaram a sair do continente pelo porto sul-africano da Cidade do Cabo. A partir desse momento, a ferrovia foi sucateada. Porém, hoje a ferrovia volta a ter muita importância e se articula com a Rota da Seda, transportando o cobre da Zâmbia e outros minerais da República Democrática do Congo para o Oceano Índico, e daí para a China. Os EUA pressentiram o que isso representava e se propuseram a construir e financiar uma outra ferrovia com saída pelo Atlântico: a Ferrovia Atlântica do Lobito será construída com capitais dos EUA e da União Europeia. Construir essa ferrovia visa a ampliar o acesso de minerais essenciais controlados pela China e reduzir a dependência de cadeias de suprimentos controladas pelo país asiático. Na disputa interimperialista envolvendo EUA e China, o chamado Corredor do Lobito ganhou tal importância que Joe Biden foi a Angola para assinar o acordo.
A disputa pelo petróleo passa pela busca de novos campos, mas também pela desestatização e desnacionalização da produção petroleira nos dois principais produtores da região, Nigéria e Angola.
Angola é um dos maiores produtores de petróleo do continente africano, mas, contraditoriamente, a produção de combustível é estrangeira. Desde os tempos de Eduardo Santos, a estatal Sonangol sofreu um processo de falta de investimentos e sucateamento. Dessa maneira, abriu-se a possibilidade de privatização com a construção da refinaria em Cabinda, controlada pelo capital inglês através da Gemcorp Capital LLP, que controla 80% de suas ações; 10% são da Sonaref (subsidiária da Sonangol) e os outros 10% pulverizados entre acionistas privados. E a refinaria Soyo, essencialmente privada, sem a Sonangol, deverá ser controlado pelo Consórcio Quanten, integrado por quatro empresas, sendo três norte-americanas (Quanten LLC, TGT INC e Aurum & Sharp LLC) e uma angolana (ATIS Nebest). Assim, o petróleo, que custava 160 kwanzas, pulou para 300, isto para que se aproxime dos preços internacionais. Na verdade, tem que chegar a acima de 500 kwanzas.
A refinaria do Lobito, segundo o site norte-americano VoA, seria construída em sociedade com a China, mas o governo angolano não aceitou as imposições chinesas, na medida em que toda a produção deveria ser enviada para a China. Após distanciar-se dos chineses, Angola votou pela condenação da Rússia na Assembleia Geral da ONU e, no site da presidência da República, João Lourenço publicou uma longa carta onde afirma que a parceria com os EUA está em marcha para “patamares cada vez mais altos”, em “circunstâncias iguais” e com uma “colaboração direta florescente a todos os níveis e em todos os domínios”. A refinaria do Lobito já não será uma sociedade com a China, e tudo leva a crer que será com os EUA e participação marginal dos governos da Zâmbia e da Namíbia.
Não se pode subestimar a Rússia
Há um clima de festa entre os pan-africanistas e a esquerda reformista com a saída da França dos principais países do Sahel. A saída da França e suas tropas e a ruptura de diversos acordos são importantes vitórias, mas são vitórias parciais, na medida em que o espaço foi sendo tomado por governos militares e pela Rússia.
A ocupação do Sahel começou pela República Centro-Africana. Na verdade, a RCA não é exatamente parte do Sahel, mas faz parte do mesmo processo histórico e econômico. Já descrevemos acima o processo de consolidação da presença russa no país, e, sendo ”vitoriosa” essa alternativa, outros governos começaram a reivindicar essa possibilidade.
Depois da RCA, o Mali, que vive um período de lutas de professores, ferroviários e funcionários públicos, encontrou no golpe de Estado a saída para o controle do movimento de massas. Assim, o governo aliado dos franceses, IBK (Ibrahim Boubacar Këita), foi derrubado por um golpe militar amplamente festejado nas ruas. O novo governo, encabeçado pelo coronel Assimi Goïta, tratou de vincular as desgraças do país ao colonialismo francês e trouxe os russos do Wagner Group para lhe dar a mesma proteção que dão ao governo de Faustin-Archange Touadéra (República Centro-Africana). Em troca, os russos passaram a controlar parte da extração de ouro do país e contrabandear o minério para a Rússia ou para os Emirados Árabes Unidos.
Depois do Mali, veio Burkina Faso. Abalado pelos ataques de milícias islâmicas, o país viu os quase 10% da população refugiada na linha de frente para derrubar o então presidente Roch Marc Christian Kaboré, depois substituí-lo por Paul-Henri Damiba, que acabou sendo derrubado por um novo golpe militar, agora liderado por Ibrahim Traoré.
Encorajados pelos sucessos da República Centro-Africana, Mali e Burkina Faso, os militares do Níger deram um golpe de Estado com claro conteúdo antifrancês e bandeiras russas. As massas saíram às ruas durante vários dias para festejar a retirada dos franceses e a chegada dos russos.
Assimi Goïta, Abdourahamane Tchiani e Ibrahim Traoré representam governos nacionalistas burgueses, com características de bonapartismo sui generis, como foi Hugo Chávez em seu momento na Venezuela. As arbitrariedades desses governos vão desde a repressão por meio da proscrição dos partidos oposicionistas, à extensão de seus próprios mandatos governamentais e repressão direta, como se deu na Université Joseph Ki Zerbo, em Ouagadougou, Burkina Faso.
A comparação com Chávez é válida e pedagógica, embora, como toda comparação, seja em si mesma abusiva, mas podemos verificar que a política de controle do movimento de massas segue o modelito do bonapartismo sui generis. Em relação à economia, tal qual Chávez, que “nacionalizou” as quatro empresas do Complejo de Jose, também o mesmo está se dando no Mali.
O caso da canadense Barrick Gold merece atenção. O governo do Mali exige que a Barrick respeite o Novo Código de Mineração (2023). A empresa, obviamente, não aceitou, e foi aberto um processo público de denúncias contra a empresa, que resultou na detenção de quatro funcionários da Barrick em novembro de 2024, e na emissão de um mandado de prisão contra seu CEO, Mark Bristow, em dezembro do mesmo ano. A Barrick Gold acaba de anunciar (12 de junho de 2025) que vai retirar de seu planejamento a possível produção nas minas do Complexo Extrativo de ouro Loulo-Gounkoto. Essa medida significa uma redução de 15 a 20% da produção mundial da Barrick. Tal complexo é compartilhado entre a empresa canadense e o Estado do Mali e os meios de comunicação falam em novas empresas na exploração de ouro no país. Chávez, apoiado pelos sindicatos e comitês de base, impôs, na Venezuela, a nacionalização da Chevron, Conoco Philips, Total, Statoil e da chinesa CNPC, da qual o Estado venezuelano passou de minoria acionária a maioria, sem grandes conflitos com as multinacionais e sem transparência do negócio. Esse é o modelo que está sendo aplicado no Mali a serviço do imperialismo, inclusive com a ajuda de ex-assessores de Hugo Chávez.
O Sahel é uma larga região que separa a África árabe ou do Norte da África subsaariana, com as florestas úmidas subsaarianas, se estendendo do oceano Atlântico ao Mar Vermelho. A Rússia vem se instalando nessa região controlando diretamente Mali, Burkina Faso e Níger, passando pela República Centro-Africana. O Chade, que foi o principal parceiro militar francês, nesse processo de ruptura com a França ordenou que os europeus retirassem suas tropas militares do país. A guerra no Sudão também está vinculada com os russos, por meio da aliança Putin-Hemedti, do grupo de milicianos das Forças de Intervenção Rápida. Hemedti e suas milícias controlam a região de Darfur, que faz fronteira com o Chade, e pressionam este também a se aproximar dos russos. O governo sudanês, que se enfrenta com as milícias de Hemedti, autorizou a Rússia a construir um porto no Mar Vermelho. Assim, desde a proximidade do Oceano Atlântico, por todo o Sahel, a Rússia tem livre trânsito de mercadorias, que serão escoados pelo porto no Mar Vermelho.
Lutar pela II Independência e construir a revolução socialista
Já vimos acima que o processo de independência dos anos 60 do século passado ficou restrito às questões políticas, sem afetar os interesses dos grandes grupos econômicos estrangeiros e dos poucos grupos econômicos nacionais daquele período. Ao não expropriar os grandes grupos econômicos, esses seguiram a dominação, então com um novo formato colonial. Os acordos impostos pela França, por exemplo, expressam essa continuidade colonial. Hoje, com a luta contra o imperialismo francês, a esquerda pan-africanista e as organizações reformistas batem palmas para a China e para a Rússia e não denunciam esses países como parte do sistema imperialista. Não temos imperialismo predileto, lutamos pela II Independência, rumo à construção de uma sociedade sem classes, socialista e com democracia operária.
Os desafios que estão e estarão colocados na luta pela II Independência vamos desenvolver na parte II deste artigo, que será publicada em curto espaço de tempo.
[1] Por uma questão pedagógica (e em certo sentido arbitrária), dividimos esta discussão em partes. Dado que a África possui 54 países com grande diversidade histórica, econômica e política, optamos por essa divisão formal para melhor poder explicar e enriquecer com dados os principais elementos sobre a situação africana e seus principais atores, isto é, o imperialismo, as submetrópoles, as burguesias locais e as lutas que aconteceram no último período.
[2] Em Gana, Kwame Nkrumah construiu um suntuoso edifício para o instituto que leva seu próprio nome.
[3] Félix Houphouët-Boigny, o primeiro presidente da Costa do Marfim, construiu o Hotel Ivoire, que entre outras coisas tinha pista de patinação no gelo. Para o jornal inglês The Economist, “O vasto complexo faz um hotel de Las Vegas parecer um Holiday Inn” – edição digital 13.05.2025.
[4] Background Press Call on the U.S.-África Leaders Summit. Disponível em: https://bidenwhitehouse.archives.gov/briefing-room/press-briefings/2022/12/08/background-press-call-on-the-u-s-africa-leaders-summit/.
[5] China-Africa summit: Why the continent has more options than ever. Disponível em: https://www.chathamhouse.org/2024/09/china-africa-summit-why-continent-has-more-options-ever.
[6] Camarões, Costa do Marfim, Burquina Fasso, Gabão, Benim, Congo, Mali, República Centro-Africana, Togo, Níger, Chade e Senegal.
[7] Sudão: o jogo de interesses do grande capital e do imperialismo americano em particular. Disponível em: https://litci.org/pt/2023/06/12/sudao-o-jogo-de-interesses-do-grande-capital-e-do-imperialismo-americano-em-particular/?utm_source=copylink&utm_medium=browser.
[8] Acordo Brasil Angola: Desenvolvimento para o agronegócio brasileiro ou para o povo angolano? Disponível em: https://cspconlutas.org.br/n/19463/acordo-brasil-angola-desenvolvimento-para-o-agronegocio-brasileiro-ou-para-o-povo-angolano.