Eletricidade: um bem essencial nas mãos da ganância de empresas privadas

Por: Antonio Rodríguez / Corriente Roja
O recente apagão na Espanha não só se tornou o maior de sua história, mas também está entre os maiores do mundo em população afetada nos últimos anos.
Como apontou o físico e pesquisador do CSIC Antonio Turiel, o apagão seria consequência direta de um modelo energético em que a lógica do lucro de curto prazo prevalece sobre a responsabilidade estrutural. O que aconteceu em 28 de abril foi, na realidade, um acidente anunciado como resultado de uma rede elétrica desequilibrada, vulnerável e, por fim, colapsada. Mas o mais grave não é a falha técnica. É a falta de previsão e responsabilidade das grandes empresas de eletricidade (Iberdrola, Endesa, Naturgy, etc.) em um mercado onde a maximização do lucro é fundamental.
O episódio também revela sua dimensão política. Tanto a ex-ministra Teresa Ribera – agora comissária em Bruxelas – quanto o presidente Pedro Sánchez estão cientes da natureza do problema. As declarações subsequentes de Sánchez apontaram imediatamente que o apagão era, em grande parte, responsabilidade das grandes empresas de energia. Mas, mais uma vez, a covardia do governo e suas decisões políticas subsequentes demonstraram mais que qualquer medida futura passa por não incomodar as empresas que detêm o poder, e muito. Poder para condicionar políticas, silenciar a mídia e moldar o discurso público, se necessário.
O apagão foi real e a ganância também. E se não quisermos que isso aconteça novamente, a solução é acabar com a impunidade daqueles que gerenciam a energia como se fosse sua fazenda particular. Se quisermos que colapsos desta magnitude não voltem a acontecer no futuro, temos de exigir mais investimento e menos especulação, menos opacidade e mais regulamentação.
A evolução do setor elétrico há muito se tornou uma selva onde prevalecem os interesses privados. Em primeiro lugar, devemos começar a quebrar o mito de que o franquismo já controlava o setor durante a ditadura. Longe disso, deve-se notar que as grandes empresas privadas dominavam o mercado com base em um sistema de monopólios regionais onde cada uma delas administrava um território específico. Iberduero, Unión Eléctrica, Hidroeléctrica Española e Sevillana eram as quatro grandes empresas da época. O regime de Franco não só evitou nacionalizar o setor elétrico, mas também fortaleceu a posição dos grandes produtores de eletricidade.
A privatização do setor elétrico na Espanha é um exemplo paradigmático de como a transferência de ativos públicos para mãos privadas pode priorizar o lucro econômico sobre o bem-estar social. Esse processo, promovido pelos governos do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e do Partido Popular (PP) desde a década de 1980, transformou a eletricidade, um serviço básico, em um negócio dominado por um oligopólio de empresas privadas.
O resultado foi um aumento sustentado dos preços, menos soberania energética e a entrada de fundos de investimento e magnatas dos negócios, como Amancio Ortega, que alcançou a posição de maior acionista privado da Red Eléctrica, na gestão de infraestruturas chave.
A Red Eléctrica de España (REE), criada em 1985 como uma empresa pública do Instituto Nacional da Indústria (INI), foi concebida para unificar e gerenciar a rede de transmissão de eletricidade de alta tensão do país. No entanto, num contexto de privatizações impulsionadas pela integração do Estado espanhol na Comunidade Econômica Europeia, o processo de venda a capitais privados iniciou-se na década de 1980 e consolidou-se em 1999, quando a Sociedad Estatal de Participaciones Industriales (SEPI) geriu a venda da maioria do capital da REE. Esse processo acabou marcando uma mudança radical na gestão de um setor estratégico. Desde a sua privatização, o Estado detém 20% das ações da REE através da SEPI, mas os restantes 80% são livremente negociados nos mercados financeiros, o que orientou as prioridades da empresa para a rentabilidade para os acionistas e não para o interesse público.
Dos sete presidentes do Governo que o Estado espanhol teve desde a morte de Francisco Franco, três deles acabaram como funcionários das empresas de eletricidade: Leopoldo Calvo Sotelo, Felipe González e José María Aznar. Mais de 20 ministr@s, tanto do PSOE quanto do PP, e muitos mais secretários de Estado, passaram de desenhar e promover as regras que regem o mercado elétrico para receber salários milionários graças a essas “portas giratórias”. Praticamente todos os principais timoneiros da economia espanhola acabaram trabalhando para os interesses das empresas de eletricidade em detrimento dos do Estado: Miguel Boyer, Pedro Solbes, Luis de Guindos e Elena Salgado. No caso de Rodrigo Rato, ele não o fez na equipe, mas faturou ilegalmente à Endesa 25,8 milhões.
No dia 25 de abril, vivemos com espanto porque, de repente, os interruptores não acenderam as luzes de nossas casas, o metrô e os trens não funcionaram, os computadores foram desligados, as geladeiras pararam de refrigerar os alimentos, o WhatsApp parou de ser recebido e foi impossível entrar em contato com nossas famílias e amigos. Quando essas coisas acontecem e o país fica ofuscado por algumas horas, é justo lembrar que no próximo dia 2 de outubro marca cinco anos desde o apagão que abalou os setores 5 e 6 de um dos bairros mais vulneráveis de Madri, a Cañada Real, e deixou mais de 4.500 pessoas sem fornecimento de eletricidade, entre elas 1.800 crianças e adolescentes. Um bairro na periferia da capital, a apenas 15 quilômetros da Puerta del Sol, onde uma manhã, de repente, as baterias dos telefones celulares pararam de carregar, as lâmpadas se apagaram, os aquecedores e geladeiras pararam de funcionar, as crianças começaram a precisar de velas para fazer o dever de casa, os chuveiros começaram a ser de água fria, e o cheiro de lenha permeava tudo. Um bairro inteiro abandonado à sua sorte, no escuro, com seus direitos à intempérie. Vários anos se passaram desde o apagão e vários meses desde que essa decisão foi emitida pelo Conselho da Europa, onde confirmou que o Estado espanhol viola a Carta Social Europeia e, no entanto, nenhuma das administrações envolvidas, nem as Câmaras Municipais, nem a Comunidade, nem o governo central fazem nada para cumpri-la, para frear esta emergência humanitária.
Por fim, é preciso salientar que num momento crítico, suportando cinco, dez, quinze horas sem eletricidade, sem comunicações telefônicas ou pela internet, e com milhares de pessoas bloqueadas em trens parados, a população soube enfrentar a situação com um comportamento absolutamente exemplar.
Seguiram-se episódios de solidariedade e apoio mútuo, enorme maturidade e civilidade foram demonstradas por parte da grande maioria, profissionais de serviços públicos básicos como Saúde e Educação voltaram sua atenção para poder manter os serviços. E nos bairros e cidades, diante dos problemas, a solidariedade surgiu. Vizinhos/as com fogões a gás que foram oferecidos aos outros, com fogões elétricos, para preparar alimentos. Ou que emprestavam aparelhos de rádio “antigos”, movidos a bateria, para serem informados, levando-os para varandas ou praças, para que a vizinhança pudesse ouvi-los. Parentes de idosos/as que não podiam descer para a rua se o elevador não funcionasse, que quando vieram ajudá-los descobriram que já haviam sido ajudados por seus vizinhos/as.
Muitos/as tivemos a prova definitiva de um comportamento coletivo exemplar quando saímos para as ruas onde os semáforos não funcionavam. Se não houve acidentes de trânsito notáveis, foi por causa da civilidade dos/as motoristas, diminuindo a velocidade ou dando passagem permanentemente aos pedestres.
No entanto, não podemos dizer o mesmo do governo e da patronal, que mais uma vez colocam os interesses comerciais acima das necessidades da população. Enormes aglomerações foram geradas, e muitas pessoas foram deixadas na rua com milhares de hotéis vazios e apartamentos turísticos que não foram disponibilizados para as pessoas que precisavam deles. Em muitas estações de trem – como Atocha ou Sants – milhares de pessoas se aglomeraram, com sua viagem de trem cancelada, sem saber onde dormiriam. E uma multidão de cidadãos veio até eles para fornecer comida ou cobertores e oferecer acomodação em suas casas aos mais vulneráveis.
A eletricidade é um serviço essencial. A nacionalização de empresas estratégicas e seu controle pela classe trabalhadora, comunidades e consumidor@s, é essencial para implementar um plano global que reorganize a economia a serviço das necessidades da população e da sustentabilidade ambiental. Uma medida imediata de todo esse plano é a nacionalização da rede elétrica e o restabelecimento do monopólio estatal sobre a produção, distribuição e comercialização da eletricidade. Devemos reverter com pressão e luta nas ruas o deslocamento dos diferentes governos para alocar enormes quantias de dinheiro para o rearmamento, e fazer com que esse dinheiro seja alocado às necessidades sociais: salários, pensões, serviços públicos, moradia e infraestrutura.
Tradução: Lílian Enck