Por que Trump suspendeu as sanções contra a Síria ?

Por: Fábio Bosco
No dia 13 de maio, em seu primeiro dia de viagem à Arábia Saudita, o presidente Donald Trump anunciou o fim das sanções à Síria. Quatro dias antes, o próprio Trump afirmara que as sanções seriam mantidas por mais um ano. O que levou o chefe do imperialismo estadunidense a mudar de opinião?
Em primeiro lugar está a rivalidade com o imperialismo chinês. Nos dias 27 e 28 de abril, o ministro de relações exteriores sírio Asaad al-Shaibani se reuniu com diplomatas chineses em Damasco e na ONU e discutiu uma parceria estratégica com o imperialismo chinês nas áreas de petróleo e gás, com possível integração à “Iniciativa Cinturão e Rota”, projeto central do imperialismo chinês que visa integrar as cadeias produtivas de vários países às da China. (1) (2)
Em segundo lugar estão as pressões pelo fim das sanções por parte de três potências regionais aliadas: a Arabia Saudita, a Turquia e o Qatar, em contraposição à Israel que pressionou pela manutenção das sanções. Trump seguiu a orientação que já havia sinalizado um mês antes, em 7 de abril, na Casa Branca, quando contrariou Netanyahu ao anunciar negociações com o Irã sobre a questão nuclear afastando qualquer agressão militar israelense (Israel queria aval para bombardear as instalações militares e nucleares iranianas), e ao impor a Netanyahu negociações com a Turquia sobre sua presença militar na Síria, afastando-se do plano israelense de dividir a Síria em quatro regiões sob tutela de Israel, Estados Unidos, Turquia e Rússia.
Desta forma, Trump separou-se parcialmente dos planos expansionistas da “Grande Israel” através de ações militares permanentes em todo o Oriente Médio, e afirmou os interesses maiores do imperialismo estadunidense quanto aos países do golfo, Turquia, Egito e Irã. Além das negociações com o Irã e o fim das sanções à Síria, Trump contrariou Israel ao negociar diretamente com o Hamas em Doha a libertação de um prisioneiro americano-israelense em troca do ingresso de ajuda humanitária em Gaza; e também ao negociar um cessar-fogo com os iemenitas Houthis, preservando as embarcações comerciais e militares estadunidenses, e deixando os alvos israelenses de fora do acordo.
É importante entender que isto não significa uma ruptura entre os EUA e Israel. Trump manteve o sinal verde para o genocídio em Gaza (sem, a priori, apoiar a expulsão dos palestinos de Gaza), para a anexação da Cisjordânia, para a manutenção da ocupação das colinas de Golã na Síria e para os bombardeios diários contra as cidades libaneses sob pretexto de combate ao Hezbollah e em descumprimento do acordo de cessar-fogo.
Trump pode, em algum momento, obrigar Netanyahu a um cessar-fogo em Gaza, sob pretexto de libertar os presos israelenses, o que poderia ser apresentado como uma façanha de sua administração. Hoje 61% dos americanos preferem uma solução diplomática para a “guerra” em Gaza, e 54% dos americanos com idade inferior a 30 anos entendem que as ações israelenses são crimes de guerra. (3)
Concessões do governo interino sírio
O terceiro motivo para Trump suspender as sanções está relacionado com concessões feitas pelo presidente interino Ahmed al-Sharaa (conhecido pelo codinome de Joulani). Algumas exigências americanas já eram aceitas pelo governo sírio tais como permitir as inspeções internacionais sobre produção de armas químicas, reprimir a organização salafista Daesh (ISIS) e assumir os atuais centros de detenção, e intensificar a busca por desaparecidos de nacionalidade estadunidense.
Outras exigências eram imposições imperialistas contrárias aos interesses do povo sírio tais como reprimir as organizações palestinas, expulsar combatentes estrangeiros de posições de comando no novo exército sírio e permitir ações militares “antiterrorismo” dos EUA em território sírio. Ahmed al-Sharaa não concordou com estas exigências mas fez concessões ao prender dois integrantes da Jihad Islâmica Palestina e Shamel al-Ghazi, um comandante palestino de sua própria organização, o HTS. Ele também reafirmou seu compromisso em manter as fronteiras estabelecidas pelo acordo de cessar-fogo entre Israel e o ditador Hafez al-Assad em 1974, que mantém parte das colinas de Golã sob ocupação israelense . Por fim, al-Sharaa estabeleceu negociações indiretas com os sionistas e, possivelmente, os arquivos do famoso espião israelense Eli Cohen, enforcado em Damasco em 1968, tenham sido enviados a Israel conforme informações da imprensa sionista. (4)
Al-Sharaa ainda mostrou disposição para firmar acordos neo-colonialistas com Trump para a exploração de gás e petróleo, mesma disposição mostrada pelo ministro de relações exteriores iraniano Abbas Araghchi com relação ao petróleo e gás iranianos, ambos inspirados pelo acordo neocolonial firmado entre os EUA e a Ucrânia. (5) (6)
Povo sírio comemora nas ruas
Apesar das concessões, o fim das sanções foi comemorado nas ruas de Damasco, Alepo, Homs, Hama, Latakia, Tartous, Daraa, entre outras. Uma semana depois, a União Europeia, interessada no retorno de parte dos milhões de refugiados sírios, também suspendeu as sanções.
O primeiro efeito foi o fortalecimento significativo da Lira Sìria frente ao dólar. A expectativa é que o fim das sanções acelere a reconstrução econômica do país. Desde os últimos anos do regime Assad, 90% da população vive na linha da pobreza e as residências têm apenas duas horas de energia elétrica por dia. Além disso, há áreas completamente em ruínas como é o caso do mais importante campo de refugiados palestinos, Al-Yarmouk.
O líder curdo Mazloum Abdi, dirigente das SDF (principal milícia em operação na Síria liderada pelo partido curdo PYD), felicitou o anúncio de Trump assim como o presidente libanês Joseph Aoun, na certeza que a recuperação econômica síria beneficiará a economia libanesa.
Sem dúvida o fim das sanções imperialistas é uma conquista do povo sírio. O problema é que as políticas neoliberais do governo sírio vão concentrar as riquezas nas mãos da burguesia síria em cooperação com empresas internacionais, e impedirão que uma parte significativa da população saia da pobreza.
Ataques israelenses, massacres sectários e desaparecidos
Além da economia, o governo interino liderado por al-Sharaa enfrenta outros três grandes desafios: os ataques militares israelenses ao território sírio, os massacres sectários contra a população alauita e drusa, e a questão dos 136 mil desaparecidos no sistema carcerário do velho regime.
Apesar das negociações em curso, Israel mantém em “stand-by” seu projeto de dividir a Síria em 4 regiões: uma sob tutela israelense ao sul, outra sob tutela estadunidense a nordeste, outra sob tutela russa no litoral e finalmente uma sob tutela turca de Damasco até o norte do país. Apesar desse plano contar com a simpatia dos assadistas e do regime iraniano, além de setores minoritários entre os drusos liderados pelo Sheikh Hikmat al-Hijri, e de dirigentes do partido curdo PYD, ele depende da adesão dos Estados Unidos no momento em que o centro das atenções de Trump estão voltadas para a China, o que pode levá-lo a retirar as tropas estadunidenses do nordeste da Síria.
De qualquer forma, Israel segue trabalhando para o enfraquecimento da Síria. A reconstrução da Síria inevitavelmente levará o país no futuro a lutar pela devolução das colinas de Golã, e pela libertação da Palestina. O enfrentamento à agressão israelense é dificultado pela imensa desigualdade militar. De qualquer forma, o governo interino sírio tem a obrigação de, no mínimo, garantir os meios para a autodefesa da população nas províncias de Deraa e Quneitra, e de buscar acordos de cooperação com outros países sob ataque israelense como é o caso do Líbano, da Palestina e do Iêmen, para fazer frente às agressões sionistas.
Outra questão são os massacres sectários contra a população alauíta nas províncias litorâneas, e contra a população drusa em Jaramana, Sahnaya e na província de Sweida, nos quais houve o envolvimento direto de integrantes das novas forças de segurança e de milícias e indivíduos salafistas aliados ao atual regime. Até o momento, a comissão de inquérito nomeada por al-Sharaa para investigar os massacres no litoral ocorridos no início de março não apresentou seu relatório. Além disso, não houve nenhuma medida para expulsar, das forças de segurança, os segmentos salafistas envolvidos nos ataques, nem para desarmar e prender os envolvidos que não são integrantes das forças de segurança oficiais.
Por fim, a questão dos 136 mil desaparecidos no sistema carcerário sírio segue sendo uma ferida aberta na sociedade síria. No dia 18 de maio, o ministro da cultura Mohammad Saleh anunciou a formação de uma “Autoridade Nacional Independente para os Desaparecidos” nas escadarias do Museu Nacional onde foi aberta uma exposição “Detidos e Desaparecidos”. Foram ouvidas famosas canções árabes por liberdade: “Onde estão eles” de Fayrouz, e “Um pássaro surgiu na janela” do músico esquerdista Marcel Khalife. Até o momento, há poucas informações sobre os desaparecidos e poucos criminosos oficiais assadistas punidos.
A solução para todas essas questões passa pelo fortalecimento da auto-organização independente da classe trabalhadora, a única classe social totalmente interessada em acabar com a pobreza e o desemprego, em ampliar as liberdades democráticas, em superar as divisões sectárias enraizadas pela ação do imperialismo francês e das ditaduras sírias que o sucederam, em garantir uma justiça transicional contra os crimes da ditadura, e em construir solidariedade com o povo palestino.
(1) https://www.sana.sy/en/?p=350634
(2) https://english.alarabiya.net/News/middle-east/2025/04/29/syria-fm-says-wants-to-strengthen-relations-with-china
(3) https://news.gallup.com/poll/657404/less-half-sympathetic-toward-israelis.aspx
https://globalaffairs.org/research/public-opinion-survey/americans-grow-more-divided-us-support-israel
(4) https://www.middleeasteye.net/news/ahmed-al-sharaa-confirms-syria-and-israel-indirect-deconfliction-talks
(5) https://www.newarab.com/news/syria-seeks-us-investment-amid-reports-talks-israel
(6) https://www.newarab.com/news/tehran-says-no-objection-us-investment-iran