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8M 2025

Andrée Blouin, mulher africana, independentista e exemplo de internacionalismo

Andrée Blouin, discursa em um comício pela independência do Congo Belga (1960)
março 16, 2025

Por: César Neto e J.G. Hata

As lutas de pelos menos dezesseis países pela independência na África nos anos 60 do século passado ficaram marcadas em nossas memórias, e os respectivos nomes dos dirigentes maiores, entre eles, Kwame Nkrumah, Jomo Kenyatta, Hastings  Banda, Tom Mboya, Partrice Lumumba, Sékou Touré e Ahmed Ben Bella, e outros. Este texto não é para discutir as posições assumidas por esses dirigentes. Este texto é para fazer uma pergunta instigante: e não havia mulheres? Era um espaço só para homens? Não responda essas perguntas antes de ler este texto e talvez assistir ao documentário indicado ao Oscar 2024 denominado: Trilha Sonora de um Golpe de Estado.

Mulheres africanas e guerreiras na luta pela soberania nacional

Desde a partilha da África em 1885 temos muitos casos de mulheres protagonistas na luta pela soberania nacional e quase todas esquecidas. Neste oito de março precisamos resgatá-las como forma de encorajar as mulheres a participarem das lutas e dizer aos homens: não impeçam a passagem delas, pois no mínimo, representam cinquenta por cento de nossas forças.

Esther Muinjangue, dirigente da organização Ovaherero Genocide Foundation, em uma emocionante entrevista  nos conta sobre o genocídio praticado pelo exercito alemão que resultou na morte de 80 mil pessoas do povo Ovaherero, entre os anos 1904 e 1908. Esse genocídio empregou métodos que trinta anos mais tarde seria aplicado na Europa pelo nazistas de Hitler. Nessa entrevista, Esther nos conta do papel da mulheres na preparação da resistência. Vale a pena ver o vídeo[1], emocionar-se e aprender com as mulheres Ovaherero.

Recentemente no Sudão, um país extremamente conservador, onde as mulheres só podem ir a reuniões acompanhadas pelo marido, nos casos de estupro a policia só aceita denuncia se a mulher levar junto o estuprador e duas testemunhas…. homens, pois as mulheres são parte interessada! No Sudão a prática da mutilação genital feminino é uma repugnante tradição. Pois bem na luta pela derrubada no ditador Omar al-Bashir as mulheres jogaram um papel de destaque na heroica resistência e derrubada do ditador. Ashura Nassor[2], descreve com muitos detalhes a força dessas mulheres no processo revolucionário sudanês.

Não poderíamos nos esquecer entre tantas heroínas das angolanas Deolinda Rodrigues e Sita Valles.

Deolinda Rodrigues, também chamada de “mãe da revolução”, foi escritora, socióloga e nacionalista. Tendo iniciado a sua militância política ainda em 1950 no Partido da Luta Unida dos Africanos em Angola (PLUAA), um dos partidos que se fundiu no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Teve passagens pelo Brasil, no Instituto Metodista de Ensino Superior, em São Bernardo do Campo. Posteriormente emigrou para os EUA, em Illinois, tendo frequentado a Universidade de Drew. Regressa para África, instala-se primeiro em Conacri e depois em Kinshassa, quando foi parte do Corpo de Voluntários para os Refugiados. Ainda no Congo é raptada em Março de 1967 pelos guerrilheiros da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), morta em circunstâncias estranhas, e relatos dizem que foi esquartejada.

Sita Valles, médica, comunista desde jovem, faz parte das brigadas de saúde pós independência. Critica dos rumos que Agostinho Neto estava dando ao país, em junho de 1977 foi presa junto com o seu marido José Van Dunen que a época era membro do Comitê Central do MPLA. Ambos entraram de mãos dadas no Ministério da Defesa para serem presos.Na prisão foi torturada, violada e assassinada[3]. Estava gravida do segundo filho. Esperaram que ela desse a luz e depois foi assassinada. O filho nunca foi entregue a família. Quando lhe ofereciam comida ela dizia: “a um comunista não se dá leite, dá-se porrada”

As mulheres Ovaherero foram vítimas da luta contra o genocídio praticado pelo Exercito alemão. As mulheres sudanesas vítimas da ditadura de al-Bashir. Sita Valles foi vítima do estalinismo do MPLA naquilo que ficou conhecido como o massacre de maio de 1977[4] .

Andrée Blouin, a guerreira esquecida. A guerreira a ser relembrada

Andrée Blouin nasceu na Republica Centro Africana esteve diretamente vinculada as lutas independentistas na Guiné, Republica Democrática do Congo, Angola e Argélia.

O pai de Andrée era um comerciante francês de 40 anos que vendia nas vilas do interior. Em uma dessas visitas conheceu Joséphine. Dessa união com cara de violência sexual nasceu Andrée,  Joséhpine foi mãe aos 14 anos.  Essa criança mestiça, como ela conta em suas memórias não tinha espaço no mundo negro e nem no mundo branco. Aos três anos de idade foi enviada pelo pai a um orfanato dirigido por freiras que recebiam crianças mestiças, localizado no Congo Brazzaville, “onde elas foram ensinadas que eram a encarnação do pecado entre um homem branco e uma mulher negra.”

A vida no orfanato era indigna e ditatorial, Blouin resistiu ao isolamento, fome, abuso físico e a humilhação por sua condição de mulher mestiça.  Fugiu do orfanato aos quinze anos.

Fora do orfanato tentou organizar sua vida, começou a desenvolver a sua compreensão  da necessidade de acabar com o colonialismo e suas sequelas. Essa compreensão deu uma salto de qualidade quando seu filho de dois anos, René, faleceu porque lhe foi negado quinino para seus ataques de malária. O quinino, um remédio escasso à época era reservado apenas para as crianças brancas, e seu filho René, filho de mãe mestiça e pai negro não tinha o direito pois tinha apenas um quarto de sangue branco.

“A morte do meu filho me politizou rapidamente. Eu finalmente entendi que não era mais uma questão do meu próprio destino maligno, mas um sistema do mal cujos tentáculos alcançavam todas as fases da vida africana”[5]. conta Andrée em seu livro de memórias.

Após esse episódio Andrée mudou para Guiné, que segundo ela vivia “uma tempestade política”. A França estava disposta a aceitar a independência, porém seria uma independência restrita ao campo político e sem estender para o campo econômico. Para dirimir essa questão foi chamado um referendo e o movimento Rassemblement Démocratique Africain (RDA) indicou o vota “não” e exigia liberdade total.  No ano de 1958, Blouin se incorporou a campanha do “não” e participou de comícios por todo o país.  O “não” saiu vitorioso e Sékou Touré, líder do RDA da Guiné, tornou-se o primeiro presidente do país.

Andrée ganhou muita influência nos círculos de luta contra o colonialismo. Em Conakry, capital da Guiné, ela conheceu um grupo de ativistas que viriam a ser figuras proeminentes na República Democrática do Congo. Esses ativistas pediram a ajuda dela para  mobilizar mulheres congolesas na luta contra o domínio colonial belga.

Em 1960, incentivada por Nkrumah foi para a futura República Democrática do Congo. Lá junto com Pierre Mulele e Antoine Gizenga viajaram todo o país fazendo campanha pela independência. Em Kahemba, na fronteira com Angola, Blouin e sua equipe reservaram um tempo para ajudar na construção de uma base para os combatentes da independência angolana que haviam fugido das autoridades coloniais portuguesas.

Nos seus comícios com grande multidão, ela falava da opressão da mulheres e da necessidade da independência. Os países imperialistas e a imprensa começaram a ver o perigo que ela representava e na tentativa de desqualificá-la politicamente partiram para os ataques morais. As acusações eram as mais baixas o possível. Desde que era amante de Nkrumah, agente de Sékou Touré e “a cortesã de todos os chefes de estado africanos”.

Quando o Congo conquistou sua independência em 1960,  Lumumba se tornou  primeiro primeiro-ministro e escolheu Andrée como sua principal assessora. A interação política de ambos era tão intensa que a imprensa os chamava de dupla  “Lumum-Blouin”. A revista TIME a descrevia como  uma “bela mulher de 41 anos” cuja “vontade de ferro e energia e rapidez de raciocínio fazem dela uma assessora política inestimável”.

Em seu livro de memória descreveu Lumumba como “verdadeiro herói dos tempos modernos”, mas também admitiu que o achava ingênuo e, às vezes, muito mole. “É verdade que aqueles que têm a melhor fé são frequentemente os mais cruelmente enganados”, disse ela.

Alguns meses após assumir o poder, Lumumba foi preso e assassinado. Os EUA preocupados com a possibilidade de perder sua principal fonte de urânio e a Bélgica preocupada de perder suas empresas de mineração estiveram por trás do golpe e assassinato de Lumumba.

Depois do golpe a família Blouin foi morar na Argélia onde receberam asilo do presidente  Ahmed Ben Bella. Depois mudaram para Paris e Andrée seguiu escrevendo artigos e se reunindo com a diáspora africana.

Andrée ficou profundamente decepcionada quando descobriu que seu velho amigo Sékou Touré tinha  estabelecido um estado de partido único e estava reprimindo implacavelmente a liberdade de expressão.

O golpe de Estado no Congo, a repressão aplicada por Sékou Touré a deixaram desanimada pois a África não tinha se tornado “tão livre” como ela esperava. “Não foram os estrangeiros que mais causaram danos à África, mas a vontade mutilada do povo e o egoísmo de alguns dos nossos próprios líderes”, escreveu ela.

A destruição do sonho de construir uma África independente a afetou tanto que mesmo estando com câncer se negou a tomar remédios. Blouin faleceu em Paris em 9 de abril de 1986, aos 65 anos. Com tantos desafetos que um dia foram seus companheiros de armas, estes trataram a sua morte com indiferença.

Resgatar a memória de Andrée Blouin, significa resgatar o papel de uma mulher guerreira, internacionalista e que soube se por contra o processo de desmonte do ascenso revolucionário e  a transformação de seus velhos companheiros (Sékou Touré, Nkrumah, Jomo Kenyatta, Hastings  Banda) em ditadores.

Viva a luta das mulheres Ovoherero

Viva a luta das mulheres sudanesas

Viva a luta de Deolinda Rodrigues e Sita Valles

Viva a luta de Andrée Blouin

Viva a luta das mulheres em todo mundo


[1] Genocídio na Namíbia – https://www.youtube.com/watch?v=hWNIUglwo1A&t=452s

[2] Sudão: A luta das mulheres em uma revolução inacabada – https://www.pstu.org.br/sudao-a-luta-das-mulheres-em-uma-revolucao-inacabada/

[3] Cabrita Mateus, Dalila e Mateus, Alvaro – Purga em Angola – Texto Editores. Lisboa, 2007

[4] Stalinismo em Angola: O massacre do 27 de maio de 1977 – Parte I e II – https://litci.org/pt/2024/06/06/stalinismo-em-angola-o-massacre-do-27-de-maio-de-1977-parte-i/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

[5] Blouin, Andrée.  My Country, Africa: Autobiography of the Black Pasionaria. Verso Books. Londres, 2024

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