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Equador

Acende-se a luz para a iniciativa privada

outubro 31, 2024

Publicamos este artigo da Revista Crisis de 13 de setembro último. Crisis é uma revista digital que nasceu com o objetivo de apresentar uma nova referência de esquerda no Equador. Com esta publicação concretizamos uma colaboração entre os dois meios de comunicação, através do intercâmbio de artigos.

O Equador está entrando em sua segunda semana de apagões massivos de 14 horas em todo o país e seu segundo mês de emergência energética. Tal é a aparente incerteza e passividade do governo, que Daniel Noboa acha necessário declarar um feriado energético obrigatório para 31 de outubro, com o pretexto de dinamizar o setor do turismo. Como se com tanta precariedade e ainda por cima sem energia elétrica, a população se aventuraria a viajar em um feriado prolongado que, como a própria crise, é autoinduzido.

Em termos econômicos – e sem contabilizar as gigantescas perdas devido aos apagões, que segundo estimativas modestas equivalem a entre US$ 120 e 196 milhões por dia, o próprio Fundo Monetário Internacional projeta o crescimento do Equador como o menor de toda a América do Sul em 2025, com 1,2% do PIB real. Enquanto isso, as perspectivas para todo o ano de 2024 são projetadas em 0,3% de crescimento real do PIB, tornando o Equador o segundo país com menor crescimento, atrás apenas da Argentina, com uma queda de 3,5%. Em contraste, o delírio do presidente – que se orgulha de um aumento de 13% nas exportações – pinta uma imagem completamente oposta à realidade material do país.

Em meio à mais longa crise energética do século, o presidente latifundiário agendou uma entrevista na TC Televisão – sua mídia favorita – na noite de 27 de outubro, em horário nobre, com Rafael Cuesta, um digno servidor da classe burguesa. Na entrevista, Daniel Noboa se apresentou serenamente e com supostas respostas técnicas à crise. Definitivamente, a máquina de geração de consenso afinou seu trabalho para este momento. Sem recorrer ao já desgastado anti-correísmo, Noboa colocou a responsabilidade pela crise nos governos que o precederam. Em tom juvenil, mas sério, o oligarca tentou se reposicionar favoravelmente diante de uma opinião pública que acumula raiva há vários meses de corrupção, repressão e indolência.

Mais uma vez, a crise é primeiro provocada e preparada, e depois instrumentalizada contra as classes populares. Enquanto Noboa pretende fingir insanidade em sua responsabilidade direta pelo atual estado precário da infraestrutura energética do Equador, seu governo provocou um desfinanciamento do setor elétrico, alienando US$ 400 milhões das contas da CELEC em setembro, para o pagamento da dívida. Além disso, não foram feitos pedidos de peças de reposição para manutenção de linhas de transmissão nos últimos sete anos, evidenciando a correlação e preparação intencional da crise energética dos três últimos governos da burguesia empresarial.

Nesse sentido, desde 2021 há um alerta de estagnação na geração de energia elétrica por falta de financiamento, falta de manutenção e investimento, ao mesmo tempo em que se observa um aumento significativo da demanda de energia elétrica, diretamente associada ao setor de mineração, principal indústria consumidora de combustíveis, água e eletricidade em nível nacional. Enquanto isso, Daniel Noboa, um oligarca da banana que “diversifica” sua economia, alimentando-se do Estado com contratos, mas também com ações em projetos de mineração, alimentava as mineradoras até 15 de outubro com eletricidade subsidiada com fundos públicos.

O que ficou evidente e que lhe foi impossível evitar é o crescente descontentamento popular que a gestão, desta crise e do Estado, gerou. O povo e a classe trabalhadora viram como a crise energética tornou ainda mais precárias suas vidas, que já vinham se tornando gradualmente mais precárias desde a pandemia, e a transição para o estado policial e o narcoestado, que imprime extrema violência; ou para a crise de emprego que existe no país e a flexibilização gradual do trabalho. O desfinanciamento de serviços públicos básicos, como saúde, educação e infraestrutura; e outros problemas estruturais que afligem a população.

Nenhum movimento executado pelas corporações de comunicação é aleatório. Na entrevista, Noboa utilizou terminologia específica, como relacionar a geração de energia elétrica ao conceito de bom negócio, no processo de construção de uma opinião pública favorável em grande parcela da população sobre a iminente privatização do setor elétrico no país. Na mesma linha, ele se parabenizou por ter alcançado em tempo recorde o maior montante de investimento internacional da história do país, TLCs-Tratados de Livre Comércio- e cooperações, onde não poderia faltar a menção ao Canadá, país com o qual o governo Noboa estabeleceu boas relações, principalmente em termos de extrativismo. Lembremos que a Atico Mining em Palo Quemado e a Lundin Gold em Fruta del Norte são empresas com capital canadense.

Na realidade, a entrevista de Noboa mostra a profundidade da política extrativista.  Apresentou, sem maiores elaborações, a proposta de explorar o gás natural em território nacional. Isso aprofunda ainda mais o alerta da reabertura do cadastro mineiro em novembro deste ano. Mais uma vez fica evidente que o Narco-Estado reforça com seus aparatos estatais e paraestatais um novo processo de reacumulação primitiva, no qual os povos e nacionalidades, camponeses/as, enfrentam um novo processo de expulsão da terra, despovoamento e deslocamento forçado. O extrativismo é uma política neocolonial, que também ameaça a soberania do país, em vários aspectos, como territorial, aquífero, alimentar, etc.

Noboa e companhia avançam com o marco legal que permite a concessão dos principais campos petrolíferos, denúncia exposta pela Associação Nacional dos Petroleiros (ANTEP) relativamente ao campo de Sacha, que produz 80 mil barris por dia. A essa estratégia de depredação e parasitismo às custas do público se soma à privatização do sistema elétrico que está bem próxima. De acordo com o manual neoliberal de usurpação dos recursos públicos, Noboa poderia muito bem propor a privatização como uma “solução” na próxima campanha eleitoral, o que representaria um lucro exorbitante para a burguesia, equivalente a US $ 7 bilhões.

Atualmente, e graças à Lei “Não Mais Apagões”, o governo permite a geração privada de energia, inicialmente era de 10 MW e atualmente é de até 100 MW, preparando uma privatização encoberta e por etapas. A Lei Orgânica de Promoção da Iniciativa Privada na Transição para as Energias Renováveis foi aprovada por unanimidade na Assembleia Nacional, na tarde de 27 de outubro.

Em momentos de grande crise energética, a República das Bananas coloca as fichas políticas fundamentais em espaços como o Ministério do Meio Ambiente, que facilitam e desvirtuam as instituições burguesas, de tal forma que projetos ou concessões são justificados. “Inés Manzano acelerou e saiu”, foram as palavras do presidente Noboa, sobre as licenças ambientais supostamente “paralisadas” em governos anteriores. Não há dúvida de que a mesma “aceleração” pode impor licenças ambientais para projetos de mineração, petróleo e projetos imobiliários.

No que diz respeito ao apoio internacional, o lacaio estrela do imperialismo ocidental na América Latina também levantou a necessidade do retorno das bases militares internacionais ao país. Com a aprovação do Tribunal Constitucional, a proposta do Executivo está sendo preparada na Assembleia Nacional. Sobre este ponto, Noboa insistiu na suposta urgência do apoio internacional em matéria de segurança e inteligência, bem como afirmou que “a guerra” – o Conflito Armado Interno – custa ao país 1,2 bilhões de dólares por ano. Noboa aproveitou para mais uma vez usar o medo e a angústia da população, para tentar justificar o estado policial nas cidades e a militarização nos territórios. Isso acaba sendo subserviente ao extrativismo, que usa as Forças Armadas como um exército privado para controlar a organização popular em sua luta antimineração.

Por outro lado, foram cerca de 4.000 demissões desde o início dos apagões em massa há dois meses, além de 1.000 denúncias por demissão repentina no mesmo período de tempo. Nesse contexto, propõe-se o “rodízio elétrico” ou Acordo Ministerial MDT-2024-200, que instrumentaliza a crise autoinduzida para impor e legalizar a flexibilização da jornada de trabalho de 8 a 10 horas por dia de trabalho, além da supressão de horas extras ou noturnas. O Acordo 200 do Ministério do Trabalho representa uma medida inconstitucional que ameaça os direitos trabalhistas, ao ser regressivo em direitos -Artigo 11- e atentar diretamente contra a dignidade da classe trabalhadora -Artigo 33- da Constituição da República.

De uma perspectiva ampla, a crise energética bem poderia resumir o projeto político da classe empresarial vinculada ao “Novo Equador”, um plano mestre de megaprivatização, extrativismo e superexploração contra a classe trabalhadora, enquanto o mundo da vida é militarizado, e a organização popular e o protesto são criminalizados. Tudo no duplo marco da legalidade e paralegalidade típico do Narco-Estado.

Tradução: Lílian Enck

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