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Índia | Vitória do protesto dos médicos

Uma cena da manifestação na sede da polícia de Calcutá
outubro 17, 2024

Por: Adhiraj – New Wave

Durante 40 dias, os médicos residentes estiveram em greve, protestando por suas cinco reivindicações:

1) Justiça para a vítima, investigação rápida, descoberta dos motivos do estupro e assassinato e punição justa para os criminosos.

2) Identificação dos envolvidos na adulteração de provas e no encobrimento do assassinato, e garantia de uma punição justa.

3) A demissão do comissário de polícia, VineetGoyal.

4) Garantir a segurança dos profissionais de saúde em todos os hospitais.

5) Garantia de condições de trabalho adequadas nos hospitais do Estado.

Entre as cinco principais reivindicações estão outras dezoito que visam a melhoria das instalações, criação de um sistema de referência[1], desmantelamento de comitês de saúde dominados politicamente, disponibilização de salas de descanso e melhoria das instalações de saúde nos hospitais.

Essas reivindicações representam os requisitos políticos e de infraestrutura mais básicos para oferecer melhor assistência médica à população. Toda a  (região) Bengala, o mundo e o país se manifestaram em solidariedade a eles, e centenas de milhares de pessoas continuam protestando em apoio aos médicos. Depois de muitos atrasos, o governo do Estado, que tentava evitar as negociações com os médicos com uma desculpa esfarrapada atrás da outra, finalmente concordou em dialogar.

E não só isso: a Ministra-Chefe concordou com uma das principais exigências dos manifestantes, a demissão do secretário adjunto de saúde, do chefe adjunto da polícia de Calcutá do Norte e do chefe de polícia VineetGoyal. Ambos estiveram envolvidos no encobrimento do estupro e assassinato de “abhaya”, a jovem médica do hospital R.G.Kar.

É uma vitória para os manifestantes e uma humilhação para o governo arrogante e corrupto do TMC. Desde então, os médicos manifestantes declararam que não interromperão seus protestos com base em meras garantias e só recuarão quando forem tomadas medidas concretas para atender às principais demandas dos médicos.

Isso ocorre em um momento em que os protestos de solidariedade foram reacendidos em outras partes da Índia: os médicos de Deli voltaram à greve em apoio aos médicos de Bengala Ocidental. Ao mesmo tempo, os protestos de solidariedade nas cidades de Bengala Ocidental continuam em curso, com centenas de milhares de pessoas protestando em Calcutá e em outras cidades, realizando vigílias noturnas e ajudando os manifestantes acampados do lado de fora da sede do Departamento de Saúde.

As vitórias dos protestos não teriam sido possíveis sem a solidariedade que receberam de médicos de todo o país, do mundo e de cidadãos de todas as esferas da vida em Calcutá e do Estado de Bengala Ocidental.

Hospital R.G.Kar, onde ocorreu estupro e o assassinato

Pela primeira vez, uma mobilização popular enfrentou a corrupção e a arrogância do governo do TMC – e venceu! O significado político não é menor do que o das agitações dos camponeses em Sinhur e Nandigram, que também suscitaram protestos maciços de solidariedade em Calcutá e apoio generalizado no resto do país.

Cronologia dos fatos:

Em 9 de agosto, uma médica residente que trabalhava no prestigioso hospital R.G. Kar, em Calcutá, foi estuprada e assassinada. O crime ocorreu enquanto ela trabalhava em um turno de 36 horas. É compreensível que a médica, exausta, quisesse descansar durante a noite antes de continuar seu trabalho pela manhã. No entanto, o R.G.Kar não oferece salas de descanso seguras ou banheiros adequados para os médicos usarem, então ela foi forçada a encontrar um espaço na sala de seminários. Foi nesse local que o crime foi cometido.

Depois que o estupro e o assassinato foram cometidos, o encobrimento começou. O incidente foi relatado à família da médica como um ato de suicídio. Foram tomadas providências para eliminar o corpo às pressas, antes que uma autópsia pudesse ser realizada. Foi a intervenção de médicos jovens residentes no local que impediu a ambulância de sair do hospital antes da realização da autópsia. Durante todo o calvário, os pais da médica assassinada foram impedidos de ver sua filha pela última vez. Eles tiveram que esperar três horas, sem saber nada sobre o destino de sua amada filha, antes de descobrirem o que havia acontecido.

Os esforços de encobrimento não terminaram aí. No decorrer da investigação do Bureau Central de Investigação, foi revelado que as provas haviam sido adulteradas. A pedido do desonrado diretor Sandip Ghosh, foram feitos esforços para ocultar a verdade sobre o estupro e o assassinato da médica. O diretor deu ordem para demolir o salão de seminários sob o pretexto de realizar reparos, enquanto as investigações ainda estavam em andamento. As autoridades levaram horas para registrar uma queixa na delegacia de polícia mais próxima, enquanto ocultavam a verdade sobre a morte da médica. Essas ações vieram diretamente da administração. Sem confiança na administração ou na polícia, os médicos residentes do hospital R.G. Kar iniciaram um protesto em 9 de agosto para exigir segurança no local de trabalho.

Logo os protestos se espalharam para além do hospital R.G.Kar, atingindo toda a cidade e, por fim, todo o país. Em 11 de agosto, os protestos dos médicos tornaram-se nacionais, com manifestações de solidariedade nas distantes Mumbai e Deli. Com o passar dos dias, uma investigação apressada da polícia de Calcutá capturou o autor do crime, um lacaio do diretor Sandip Ghosh, que foi descoberto graças a imagens de câmeras de segurança (CCTV) e provas de testemunhas oculares. O autor do crime, Sanjoy Roy, foi pego e usado como bode expiatório para acabar com os protestos. Entretanto, os médicos não recuaram dos protestos, percebendo a estratégia do governo. A greve dos médicos residentes no hospital R.G. Karle foi seguida por outras nos 260 hospitais públicos do Estado de Bengala Ocidental.

A propagação repentina e a magnitude dos protestos colocaram o governo sob pressão. As medidas policiais não conseguiram conter os protestos, as ameaças fracassaram e recorreu-se à violência. O protesto entrou em seu quinto dia e foram feitos apelos para que a noite fosse retomado. Os protestos da meia-noite eclodiram em toda a cidade e, por fim, no resto do Estado, com protestos de solidariedade nas principais cidades da Índia. Os protestos da meia-noite começaram na noite de 14 de agosto e continuaram até o Dia da Independência, 15 de agosto. Foi então que a manifestação pacífica no hospital R.G.Kar foi atacada por uma multidão de capangas apoiados pelo TMC.

Eles não apenas agrediram os médicos, mas também atacaram a polícia e romperam suas barricadas mal protegidas antes de entrar perto da cena do crime para adulterar as provas. O incidente deu à polícia uma desculpa para recorrer a ordens de restrição para evitar o “colapso da lei e da ordem”. A polícia aproveitou para tentar impedir que os protestos ganhassem espaço. As reuniões foram restringidas ao redor do R.G.Kar e em todo o centro de Calcutá.

No dia seguinte, a própria Ministra foi ao protesto em um ato que foi tanto uma farsa quanto uma tentativa de intimidar os médicos. O TMC teve que projetar sua força organizacional, ao mesmo tempo em que fingia apoiar a vítima, ocultando sua cumplicidade no encobrimento maciço que estava ocorrendo. Poucos morderam a isca, e os protestos continuaram a ganhar força e apoio. Os médicos contavam com o apoio e a simpatia de todos no Estado, especialmente daqueles que se sentiram prejudicados pelo partido no poder, o TMC, e sua corrupção institucionalizados.

Posteriormente, o Bureau Central de Investigação assumiu a investigação do caso e o Supremo Tribunal tomou conhecimento do caso por sua própria iniciativa (de oficio). Desde então, o Supremo Tribunal tem ajudado a mitigar a intensidade dos protestos. A greve de solidariedade dos médicos residentes em Deli terminou logo depois que o Supremo Tribunal ordenou a criação de um grupo de trabalho nacional para estudar a segurança dos profissionais de saúde e movimentação da força paramilitar da Força Central de Segurança Industrial no hospital R.G. Kar.

Os protestos:

Os protestos começaram no Hospital R.G.Kar, liderados por médicos residentes, mas rapidamente se espalharam por todos os outros hospitais. No terceiro dia de protestos, a cidade inteira estava envolvida neles. Não se tratava de protestos políticos, nem foram dirigidos por nenhum partido político, embora sindicatos de médicos, sindicatos de estudantes de medicina e órgãos ligados ao CPIM (Partido Comunista da Índia) tenham participado ativamente nos protestos.

Na maior parte, os protestos permaneceram apolíticos, liderados por cidadãos, sem bandeiras de partidos visíveis nas manifestações, e pessoas de todas as esferas sociais  reuniram-se para protestar contra a violência sexual e a corrupção institucionalizada que a tornou possível. Em seu auge, houve manifestações de protesto, grandes e pequenas, em todos os cantos de Calcutá. Os protestos logo se espalharam para outras cidades e vilas do Estado de Bengala Ocidental e, depois, para o resto do país.

Os protestos repercutiram além das fronteiras da Índia, entre as comunidades bengalis nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Europa. Esses protestos não tiveram precedentes na rapidez com que se espalharam e pela forma como pareciam se intensificar. Mesmo depois dos esforços do governo liderado pelo TMC para esmagar os protestos e apaziguar o povo, os protestos simplesmente continuaram crescendo, alimentados pelos médicos residentes em greve, que se comprometeram a levar os protestos a um bom resultado.

Pelo contrário, as tentativas de frear os protestos apenas reforçaram a determinação dos médicos grevistas e inspiraram mais pessoas a somar-se a eles, participando de passeatas, protestando nas ruas e realizando vigílias à luz de velas ou passeatas com tochas. Vigílias à meia-noite eram realizadas a cada duas noites sob o slogan “vamos recuperar a noite”.

Uma das principais inspirações para o movimento de protesto foi o sucesso dos protestos liderados por jovens em Bangladesh, que derrubaram o governo da Liga Awami, dirigida pelo Sheik Hasina. Em termos de brutalidade e corrupção, a Liga Awami superou o governo de Mamata Bannerji. É bastante apropriado que o Sheik Hasina e a Liga Awami tenham sido os principais investidores no setor imobiliário de Calcutá, investindo na estrutura corrupta de Mamata Bannerji e do TMC em Bengala Ocidental. A questão que pairava na mente de todos era: se os jovens de Bangladesh conseguiram derrubar Sheik Hasina apesar dos assassinatos cometidos pela polícia e pelos paramilitares, por que não poderiam desafiar Mamata Bannerji?

A resposta ficou evidente nas ruas, onde centenas e milhares de jovens saíram para protestar. A intensidade dos protestos irritou Mamata Bannerji e o TMC, e a violência contra manifestantes pacíficos foi uma reação de pânico. Entretanto, não conseguiu esmagar os jovens apenas com cassetetes e balas e foi forçado a se conter quando os protestos chegaram à capital e aos portões do Supremo Tribunal. O tribunal foi obrigado a intervir e ordenar que as forças do Estado parassem de agir com violência e se contivessem.

O pior da repressão policial parou graças à solidariedade que os médicos receberam. O espectro da revolução de Bangladesh assombrava Mamata Bannerji: se um médico fosse ferido ou, Deus nos livre, morto durante o protesto, isso desencadearia uma agitação mais ampla, que ela seria incapaz de conter.

Mamata Bannerji não estava preparada para um movimento de protesto urbano. Seu poder baseava-se em cobertura de terror e chantagem. O poder da TMC no campo era quase absoluto, onde aperfeiçoou suas táticas de terror. Na cidade, utilizou outras táticas para garantir que a apatia e o medo mantivessem as pessoas divididas, isoladas e desmoralizadas. Essa apatia foi quebrada por esses protestos.

A intervenção dos partidos políticos:

Logo após o início dos protestos, o principal partido burguês de oposição em Bengala Ocidental, o BJP (que também é o partido no poder a nível nacional), tentou assumir a liderança dos protestos. Essas tentativas incluíram levar os protestos em uma direção abertamente política, tomando emprestado uma das consignas do movimento de protesto de Bangladesh que depôs Sheik Hasina e direcionando-o contra a Ministra-Chefe Mamata Bannerji, “DofaAk, Dabi Ak, Mamata’rPadatyag” (Um ponto, uma exigência, a renúncia de Mamata Bannerji).

Ao contrário das reivindicações dos médicos, que atacavam os problemas que afetavam os jovens médicos residentes, a reivindicação apresentada pelo BJP era direcionada ao aparato político sem estabelecer qualquer vínculo orgânico com os protestos. Ao mesmo tempo, os protestos eclodiram em Maharashtra, que é governado pelo BJP em coalizão com o ShivSena, ambos partidos de direita. Na cidade de Badlapur, em Maharashtra, veio à tona um incidente chocante de estupro de uma menina de seis anos em uma escola pública. Os autores do crime estavam ligados à administração da escola, que, por sua vez, estava ligada ao BJP.

O BJP mostrou sua dupla face descarada perante os manifestantes: por um lado, alegou apoiar a médica estuprada e assassinada e, por outro lado, em um Estado governado por ele e seus parceiros de coalizão, o BJP usou toda a força da polícia para prender os pais das crianças da escola pública que protestavam, os quais tiveram prisão preventiva de sete dias, enquanto os acusados receberam apenas três dias de prisão.

O partido do Congresso permaneceu quase em silêncio enquanto Calcutá e Bengala Ocidental explodiam em protestos. Eles estavam compromissados com a aliança INDIA, da qual o TMC era a terceira maior força. Logo após o início dos protestos, outro parceiro importante da aliança, o Partido Samajwadi, expressou solidariedade, não com os manifestantes, mas com a Ministra-Chefe Mamata Bannerji. No Congresso foi praticamente eliminado nas eleições nacionais e estaduais anteriores. Essa ação, sem dúvida, acabará com o que restou de sua credibilidade.

Embora a aliança INDIA tenha se solidarizado com o TMC, ou cooperado com seu silêncio, eles marcharam em protesto em Maharashtra. Esse evento mostrou que os dois partidos nacionais são completamente hipócritas. Para eles, só vale a pena falar de opressão quando ela acontece nos estados de seus adversários.

Dos principais partidos políticos de oposição em Bengala Ocidental, apenas o CPIM e suas organizações afiliadas, principalmente a DYFI e a Associação de Médicos Residentes, conseguiram oferecer alguma liderança. O partido só apareceu em cena semanas após o início dos protestos. Nesse caso, os membros do partido participaram dos protestos sem faixas e cartazes. Foi somente depois de 27 de agosto que a duvidosamente chamada “chatrasamaj” (sociedade estudantil) tentou organizar uma passeata até a secretaria estadual.

A passeata até a Secretaria foi um ponto de virada nos protestos porque pôs fim às tentativas do BJP de assumir a liderança dos protestos dos médicos e serviu para distanciar o partido deles. A convocação para a passeata mobilizou, no máximo, sete mil pessoas, com quase nenhuma presença de estudantes. O Estado montou um violento esquema da força policial para lidar com os protestos que resultou bastante decepcionante. A mídia concentrou a atenção no protesto, se revelando nada mais do que um constrangimento para o BJP, que viu seus esforços e os do RSS para controlar os protestos fracassarem.

A forte intervenção policial incluiu canhões de água e barricadas, bem como o uso da força para atacar manifestantes pacíficos. Essas táticas permaneceram moderadas, uma vez que a polícia não estava equipada com armas letais e não foi aplicada força letal. E assim prosseguiu durante todos os protestos.

Nas semanas seguintes, os médicos jovens saíram às ruas para se encontrar com o chefe de polícia e entregar-lhe uma lista de queixas. Os líderes do BJP foram expulsos do local do protesto. A presença ininterrupta dos manifestantes forçou o chefe de polícia a se curvar e finalmente se reunir com eles. Isso marcou o fim do envolvimento do BJP no movimento de protesto.

O Congresso continuou organizando manifestações à margem do protesto, enquanto o CPIM interveio no protesto contra a polícia de Calcutá, comparecendo em massa. Contudo, em nenhum momento o partido disputou a liderança dos protestos e, embora a influência dele pudesse ser vista, ele não assumiu a direção. O mais grave é que o CPIM não mobilizou os profissionais de saúde de todo o país, por meio de suas redes sindicais, em solidariedade. Na maior parte das vezes, as redes sindicais ficaram de fora dos protestos, que continuaram sendo um protesto de jovens, médicos e estudantes.

Intervenção de órgãos centrais

Os protestos obrigaram o Supremo Tribunal a tomar conhecimento do caso e, logo após o assunto chegar ao Tribunal Superior de Calcutá, o CBI (Central de Investigação da Índia) foi instruído a assumir a investigação. O envolvimento da CBI proporcionou ao TMC uma agenda política para desviar a culpa pelo ritmo lento da investigação da CBI e, por extensão, do governo central em Deli. A sede regional da CBI no subúrbio de Salt Lake, em Calcutá, tornou-se um local de protesto. Esse era o local onde os médicos podiam desafiar diretamente as autoridades investigadoras e exigir justiça para a vítima.

Quando o CBI assumiu o caso, ele também se tornou alvo de protestos. Neste caso, os médicos triunfaram sobre as estratégias políticas do BJP e do TMC, silenciando ambos os lados. Por um lado, eles direcionaram sua raiva contra uma agência do governo central, que se reporta ao governo nacional controlado pelo BJP. Por outro lado, silenciaram uma estratégia padrão do TMC, que era mostrar os protestos como uma conspiração do BJP. O TMC não poderia se apresentar como defensor das minorias contra outra conspiração do BJP. A sinceridade e o espírito dos médicos prevaleceram sobre os cálculos cínicos dos partidos políticos burgueses.

O Supremo Tribunal, que assumiu o caso, ainda preside o assunto. Quando os protestos chegaram à capital e os médicos de Nova Deli entraram em greve em solidariedade a seus colegas de Bengala, o Tribunal não pôde deixar de ser abalado pelos acontecimentos. O Supremo Tribunal ordenou a criação de uma força-tarefa nacional e autorizou a CISF (Força Central de Segurança Industrial) a se encarregar da segurança do Hospital R.G. Kar. Essa medida foi bem recebida pelos médicos e serviu para acabar com a greve em Deli. O Supremo Tribunal contribuiu para apaziguar os protestos e impediu-os de se transformassem em um movimento nacional mais amplo. Essa não é a primeira vez que o judiciário desempenha um papel reacionário em todo esse caso.

Um mês após o início dos protestos, o Supremo Tribunal se colocou contra os médicos manifestantes, estabelecendo um prazo para que eles regressassem ao trabalho. Os médicos não aceitaram um ditame tão arrogante e mantiveram os protestos junto com todas as suas reivindicações. A greve continuou, assim como os grandes protestos de solidariedade. Além disso, a Associação Médica Indiana declarou seu apoio aos médicos em greve e estava se preparando para iniciar protestos em Deli.

A fase final dos protestos

Somente em 9 de setembro, exatamente um mês após o terrível crime, que o governo cedeu e concordou em discutir as exigências dos médicos. A Ministra-Chefe afirmou que não haveria transmissão ao vivo, com o argumento frágil de que o Supremo Tribunal presidia o caso e que isso seria ilegal. O Supremo Tribunal havia  transmitido suas atuações ao vivo, portanto, esse argumento caiu por si só.

A partir daí, houve um teste de vontade entre os médicos que protestavam e a teimosia da Ministra-Chefe em manter a reunião com os médicos em seus termos e com a capacidade de controlar a narrativa. A Ministra-Chefe permaneceu inflexível em sua posição e os médicos não cederam à tentativa dela de controlar o discurso. A primeira reunião para discutir as demandas na Secretaria fracassou. A Ministra-Chefe transmitiu imagens de cadeiras vazias na sala, com uma Mamata Bannerji solitária sentada, esperando, numa evidente tentativa de inclinar a narrativa a seu favor.

Sua aparição repentina no local do protesto dos médicos, em frente à sede da CBI no complexo CGO de Calcutá, foi uma tentativa astuta de virar a narrativa a seu favor e desafiar os médicos. A mídia, em sua neutralidade, acabou servindo ao TMC, com alguns jornais inclinando-se completamente para a versão do governo. A velha e desgastada propaganda contra greves e protestos começou a ressurgir nos principais jornais, como o Times of  India e o Telegraph, todos dirigidos contra os médicos grevistas, embora a simpatia do público permanecesse com eles.

Surpreendentemente, a Ministra-Chefe foi ao local do protesto e se dirigiu diretamente aos médicos, desafiando-os sutilmente a irem à sua casa para conversações, reiterando seu desejo de atender as queixas dos médicos residentes. Os médicos aceitaram o desafio e chegaram à residência particular da Ministra-Chefe, que, mais uma vez, se recusou a recebê-los.

Uma foto icônica apareceu, com os médicos parados na chuva diante da Ministra-Chefe, rodeada por seus seguranças, com as mãos cruzadas diante dela. As tentativas do TMC de virar a situação a seu favor fracassaram. Entretanto, após mais de um mês de protestos, a determinação dos médicos começou a ceder, o cansaço se instalou e eles estavam prontos para ceder. Os médicos concordaram em se reunir sem transmissão ao vivo ou gravação de vídeo, mas com uma ata da reunião. O governo também estava encurralado: com a temporada de festas se aproximando, o TMC não poderia se dar ao luxo de permitir protestos durante as Pujas (rituais sagrados de adoração Hindu, ndt). A estratégia de usar festivais e shows para apaziguar as massas continuou sendo uma estratégia fundamental do TMC durante esses protestos.

No decorrer das negociações, o governo concordou em atender três quartos das demandas levantadas pelos médicos. O comissário de polícia foi transferido, foram alocados fundos para melhorar a segurança nos hospitais, a infraestrutura seria melhorada e o vice-diretor da zona norte da polícia de Calcutá também foi transferido.

A vitória mais importante pode ter sido a destituição do ex-diretor corrupto do R.G.Kar e a revogação de sua licença. O gângster Sandip Ghosh nunca mais dirigirá outro hospital. Os médicos derrubaram um pilar do nexo de corrupção do TMC e expuseram todo o sistema perante a nação e o mundo. A vitória final, de levar à justiça todos aqueles que ajudaram a encobrir a investigação sobre a morte e o estupro da médica, ainda não foi alcançada.

Em 21 de setembro, os médicos se retiraram de seus locais de protesto e decidiram voltar ao trabalho, mas apenas para serviços de emergência. Isto marca o fim do protesto como o vimos até agora. No entanto, os protestos ainda não terminaram completamente e não terminarão até que todas as demandas sejam atendidas. Isso foi declarado ao vivo na TV pela liderança do grupo médico.

Conclusões

O protesto dos médicos foi um marco na história recente de Bengala Ocidental e Calcutá. Pôs fim a apatia e o status quo reacionário que reinava na região. O protesto surge na esteira da revolução em Bangladesh, que inspirou a juventude e os trabalhadores de Bengala Ocidental. O potencial de luta revolucionária no sul da Ásia está latente nestes protestos. Entretanto, os protestos também revelaram vários desafios que impedem sua realização.

O protesto dos médicos mostrou as falhas na luta de classes em Bengala Ocidental. O Estado ainda está sofrendo os efeitos da desindustrialização após a divisão, e a maior parte dos empregos estáveis só pode ser encontrados no setor de serviços. A maior parte da população depende da agricultura, seja no cultivo e comércio de alimentos, como o arroz, ou de culturas comerciais, como a juta e o chá. Nos últimos cinco anos assistimos a um agravamento da crise no setor agrícola de Bengala Ocidental, especialmente na indústria do chá, uma crise provocada pela mudança climática e pelo quase colapso dos moinhos de arroz.

Em meio à estagnação industrial, o setor de serviços, que inclui os cuidados de saúde, tornou-se uma importante fonte de emprego para jovens instruídos. No que diz respeito à assistência médica, o governo do Estado de Bengala Ocidental segue a mesma política que existe em nível nacional e a maioria dos governos estaduais da Índia dirigidos por partidos burgueses: incentivar a privatização da assistência médica.

Uma das desculpas típicas dadas pelos apologistas dessa política é que o governo simplesmente não pode arcar com os custos da assistência médica para todos e que o setor privado tem que intervir. Este argumento esquece que o direito ao tratamento médico adequado e o acesso aos cuidados de saúde são parte integrante do direito à vida. O governo tem o dever de garantir atendimento de saúde de qualidade para todos os seus cidadãos, portanto, deixar esse serviço essencial à mercê do lucro é a causa principal de um sistema de saúde podre.

O sistema de saúde altamente privatizado de Bengala Ocidental beneficia apenas aqueles que têm acesso a um bom atendimento médico e aos turistas médicos, enquanto a maioria da população, que não tem acesso às instalações que os hospitais privados podem oferecer, é deixada para trás em hospitais públicos sobrecarregados. As 260 Faculdades de Medicina e hospitais públicos, cujos funcionários e médicos residentes estão sobrecarregados e mal pagos, arcam com o ônus do atendimento médico para as massas. De tempos em tempos, médicos recém formados protestam para exigir medidas de segurança e infraestrutura adequadas nos hospitais; o governo geralmente responde com garantias, mas não houve nenhuma mudança concreta na política. O problema se agravou e chegou à terrível situação de 9 de agosto.

O protesto dos médicos ocorreu em um momento de crescente descontentamento contra o governo do TMC e seu sistema de administração altamente criminalizado. Há greves e protestos regulares nas regiões produtoras de chá do norte de Bengala contra uma administração que praticamente se esqueceu de sua existência; houve protestos de aspirantes a professores a quem foram negados empregos em escolas públicas por causa da fraude do SSC; houve grandes protestos antes das eleições na cidade de Sandeshkhali, onde a tirania dos políticos gangsteres alinhados ao TMC é desenfreada. Todo esse descontentamento foi concentrado em uma explosão geral de raiva em torno do protesto dos médicos residentes.

Grande parte do descontentamento se concentrou entre a juventude educada e urbana de Bengala Ocidental, cujas perspectivas no Estado são cada vez mais sombrias, graças à crise do capitalismo e às políticas do governo do TMC no Estado. As condições não são diferentes das de Bangladesh, onde a juventude e a classe trabalhadora, em sua maioria urbana, derrubaram o regime de Sheik Hasina. Em Bengala Ocidental, a classe trabalhadora industrial foi enfraquecida pela desindustrialização, e foi no setor de serviços, como saúde e educação, onde a classe trabalhadora contra-atacou.

O amplo apoio que os médicos receberam abrangeu todas as classes sociais e a maior parte da população urbana de todo o Estado. Isto não significa que a população rural apoiasse o TMC, mas também simpatizava com os médicos em protesto. O TMC tem sua principal base de apoio entre a população rural nos vilarejos mais prósperos do sul de Bengala Ocidental. Pela primeira vez, o partido enfrenta a perspectiva de perder este apoio! Este impacto político não pode ser subestimado.

Os limites dos protestos apolíticos

Nos últimos anos, assistimos a duas mobilizações bem-sucedidas na Índia. Em 2020, vimos a agitação dos agricultores contra as três leis agrícolas; este protesto foi obteve sucesso graças à determinação dos agricultores e ao amplo apoio e solidariedade que recebeu de agricultores e não agricultores de todo o país.

A disciplina e a organização dos agricultores que protestavam permitiram sustentar o protesto face a mão pesada da polícia e de um governo obstinado que preferia vê-los morrer de Covid a negociar. Centenas de agricultores morreram durante o protesto prolongado, mas o governo de Narendra Modi foi forçado a ceder no final, retirando as leis agrícolas. As consequências políticas da agitação dos agricultores fizeram com que o BJP sofresse um grande revés nas eleições nacionais. Em sua maioria absoluta desapareceu e agora ele depende de aliados para se manter no poder.

Uma característica fundamental da agitação dos agricultores foi o fato de terem conseguido manter os partidos políticos da oposição à distância. Os agricultores não acusaram nenhum apoio que receberam, mas não cederam a agitação a nenhum partido político. Nesse sentido, a agitação dos agricultores era apolítica. Isso dificultou o partido governista a acusasse e facilitou para as pessoas simpatizassem com os agricultores e seus problemas. No entanto, as organizações de camponeses não permaneceram apolíticas, e embora se mantivessem independentes do controle dos principais partidos burgueses e stalinistas, tomaram uma decisão política consciente de se opor ao BJP nas eleições nacionais.

No caso do protesto dos médicos, vimos mais uma vez  um pouco desta dinâmica. Os médicos mantiveram-se firmes em sua decisão de permanecer independentes de qualquer partido político. Qualquer estratégia do BJP para assumir o controle do protesto e levá-lo na direção que eles queriam falhou. Os médicos permaneceram concentrados e determinados, e seus protestos nunca descambaram para a violência ou tumultos, demonstrando disciplina. Ao mesmo tempo, seria um erro considerar o protesto dos médicos como puramente apolítico. O fato de terem como alvo a administração do Estado e terem ido até a porta da Ministra-Chefe mostra um certo grau de consciência política. Logo após os protestos retrocederem parcialmente, os médicos se dirigiram aos distritos afetados pelas enchentes do Estado para abrir acampamentos médicos.

Os protestos diminuíram parcialmente, mas ainda não se chegou a um acordo sobre algumas reivindicações, e a maioria delas embora acordadas ainda não foi colocada em prática. O Estado ainda não tomou medidas para melhorar as condições de trabalho nos hospitais públicos, a segurança continua praticamente inexistente e, embora um importante pilar do sindicato do TMC tenha sido quebrado com a prisão de Sandip Ghosh, o sistema de chantagem nos hospitais públicos, mais popularmente conhecido como “cultura da ameaça”, segue vigente. O sistema que os médicos desafiaram ainda não mudou, e é provável que eles voltem à greve total ou protestem nas ruas. No momento em que este artigo foi escrito, os médicos declararam que farão um protesto durante o dia sagrado de Mahalaya, que marca o início das festividades de Durga Puja.

Nesse momento, a maioria dos partidos políticos de oposição desistiu de apoiar os médicos, e apensa o CPIM e a Frente de Esquerda continuam a apoiá-los, de forma expressa. Os médicos residentes estão na mesma situação política que os agricultores em 2021. Eles obtiveram uma vitória significativa sem precisar da liderança de nenhum partido político ou se render a qualquer agenda política dos principais partidos. Os agricultores não fizeram um protesto político, mas optaram por se tornar políticos para as eleições. Os médicos estão lutando por uma mudança consequente, mas essa mudança não pode ser alcançada sem uma mudança política, esse é um fato incontornável. Resta saber se os médicos seguirão esse caminho.

Por enquanto, a energia dos médicos manifestantes permanece, juntamente com a ampla simpatia da população no Estado e fora dele. A força dos jovens médicos para continuar lutando vem da solidariedade inabalável que receberam. Enquanto a solidariedade permanecer forte, os protestos continuarão até que uma mudança consequente real seja alcançada.

Uma agenda para a mudança consequente

“Abhaya” é o nome dado pelo protesto dos médicos à médica que foi estuprada e assassinada em R.G. Kar. O nome significa literalmente “corajosa”. Os médicos mostraram sua corajosa determinação face a um inimigo tenaz como Mamata Bannerji e o TMC. Seu programa ataca uma parte essencial do governo da TMC no Estado de Bengala Ocidental, apelando ao fim do sistema de intimidação e corrupção nos hospitais públicos, melhorando a infraestrutura e exigindo justiça para as vítimas.

A luta expôs a corrupção no sistema, expôs as políticas do TMC e da Ministra-Chefe em particular, e expôs o estado caótico dos hospitais públicos de Bengala Ocidental. Agora, seria necessário lutar por uma mudança consequente.

Os médicos que protestaram perceberam, com razão, que não se pode confiar em nenhum dos principais partidos para promover a mudança consequente necessária. Entretanto, sem essa mudança consequente, haverá mais abhayas, haverá mais sofrimento e injustiça. A raiz da podridão deve ser identificada no sistema que tolera e até incentiva a medicina privatizada. A assistência médica se torna um serviço e não um direito, deixando os hospitais públicos sobrecarregados e com poucos recursos para cuidar das massas que não tem acesso a hospitais particulares ou médicos particulares caros.

O primeiro passo para enfrentar esta situação é exigir maior investimento na saúde pública, criando condições para que o serviço e a infraestrutura dos hospitais públicos sejam tão bons ou melhores do que os dos hospitais privados. Esta é a base sobre a qual um bom sistema de saúde pode ser construído. Para chegar a esse ponto, a agitação deve ser ampliada. Essa agitação requer uma liderança revolucionária consciente dos limites do sistema capitalista e do que pode ser alcançado dentro dele. Tal agitação, reunindo todos os setores dos trabalhadores da saúde, desde médicos residentes, enfermeiros, funcionários, trabalhadores da ASHA e até mesmo médicos em exercício, seria imparável!

Nosso objetivo final é que todos tenham acesso à assistência médica como um direito, não como um serviço com fins lucrativos, onde os pacientes não sejam assediados e os médicos sejam respeitados.

JUSTIÇA PARA R.G. KAR!

FORA O TMC!

FIM DA CULTURA DA AMEAÇA!

FIM DOS SINDICATOS! SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE PARA TODOS!


[1] O modelo de atenção do sistema de saúde pública  baseado em redes integradas de saúde com o objetivo de promover a continuidade do cuidado aos usuários do sistema, ndt;

Tradução: Rosangela Botelho

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