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sexta-feira, setembro 27, 2024

Chile | 51 anos após o golpe: é preciso sair do eclipse

Quando falamos de Unidade Popular e do golpe militar de 1973, uma imagem vem à mente: La Moneda em chamas e Allende combatendo. Por cinco décadas esta foi a imagem que eclipsou todas as outras daquele período, a figura de Allende se ergue imensamente no meio do Panteão de heróis de nossa história, eclipsando até mesmo seu governo, o governo da Unidade Popular, aquele governo formado pelo PC e (Partido Comunista) pelo PS (Partido Socialista) do qual cada vez menos se conhece hoje. Qual foi o seu programa, quais foram as suas propostas, o que significou seu governo para esse imenso número de trabalhadores que colocaram sua convicção, seu trabalho, sua energia e sua luta cotidiana para levar a cabo este processo? Para a maioria, embora isso seja importante, é absolutamente secundário ante a imolação de Allende.

Por: Christian Leiva

O golpe de 1973 nos deixou amnésicos como classe, tivemos que esquecer de forma traumática, esquecer a pancadas aquele período, esquecer aquela façanha em que pessoas como você foram protagonistas de uma história de mudanças. Nesse vazio era natural que a figura de Allende no La Moneda atingisse o mais alto nível de dignidade, era puro sentimento, era raiva, era admiração pelo significado. Os discursos de Allende apenas reforçaram essa imagem. Dos vídeos e anos de distância, Allende nos encantou com sua palavra, como deve ter encantado os milhões que viram nele aquele que os levaria ao reino da igualdade, ao socialismo. Allende eclipsa seu tempo e, acima de tudo, eclipsa um povo, o povo chileno que realizou uma das maiores façanhas de nossa história, uma façanha de milhões que caminhavam para o socialismo. Mas não por um “caminho pacífico”. Porque os patrões estavam atacando o povo trabalhador e camponês com tudo, matando-os de fome com a escassez, tornando sua existência ainda mais miserável. As greves patronais foram a principal arma da burguesia, mas não era o governo que o empresariado estava cercando pela fome, era o povo.

Nesta revista, queremos somar-nos aos esforços de muitos historiadores que procuraram trazer à luz a história dessa façanha eclipsada, a do trabalhador e da trabalhadora que tinham consciência de serem explorados/as e de quem os/as explorava. Anos de luta deram frutos, homens e mulheres que deram o seu melhor na luta de classes frontal que ocorreu em 1973. Sustentamos hoje que essa façanha foi uma Revolução, uma verdadeira Revolução feita por nossos pais, mães, avós e avôs. Essa é a história que queremos tirar detrás do eclipse. Em 1973, por detrás de Allende em La Moneda, estavam sendo massacradas as mulheres e homens que haviam realizado um dos maiores processos revolucionários de nossa história, absolutamente invisíveis.

Os Cordões Industriais, os JAP- Juntas de Abastecimento e Controle de Preços-, os Comandos Populares. A classe estava fervilhando de organizações que faziam o máximo esforço para aliviar de forma organizada a carência a que a burguesia os sujeitava. Mercados Populares, autoabastecimento, ocupações de terras agrícolas para abastecer as cidades, requisições e controle operário de centenas de fábricas que mudavam sua produção para atender às necessidades do povo em meio à escassez e à pobreza, eram apenas algumas das características dessas organizações. Organizações com um objetivo, o fim da exploração dos patrões para que as riquezas naturais e os frutos do trabalho fossem em benefício de todos.

Esse processo revolucionário, que teve seu auge e seu fim em 1973, começou muito antes.

Nas décadas anteriores, a situação da classe trabalhadora era muito diferente do que é hoje para nós. Os produtos eram escassos e caros, a maioria deles não tinha muitas das condições que hoje parecem mínimas, faltavam roupas, sapatos, combustível, calefação. Embora os patrões tivessem soltado a correia e as condições de trabalho não fossem as do início do século, continuava a exploração nos locais de trabalho e os salários eram miseráveis. Clotario Blest foi fundamental na criação da Central Única de Trabalhadores em 1952, cujos princípios indicavam “o atual regime capitalista, fundado na propriedade privada da terra, dos instrumentos e meios de produção e na exploração do homem pelo homem, que divide a sociedade em classes antagônicas, explorados e exploradores,  deve ser substituído por um regime econômico-social que liquide a propriedade privada até chegar a uma sociedade sem classes, na qual o homem e a humanidade tenham assegurado seu pleno desenvolvimento”.1

Diante da escassez insustentável, em 1955, a CUT convoca e organiza, num processo ascendente de manifestações e concentrações, uma Greve Geral Indefinida que começa em 7 de julho, que paralisa todo o Chile e tem mais de um milhão de trabalhadores em greve em todo o país.

Em 1957, diante dos aumentos, ocorre uma nova explosão social, que começa em Valparaíso em 27 de março. As barricadas iluminam o porto e o movimento é fortemente reprimido pela polícia com cargas de fuzil, a CUT de Clotario convoca uma Greve Nacional para os dias 2 e 3 de abril. Diante das manifestações massivas que ocupam a capital nesses dias, o governo declara estado de sítio e o aparato repressivo atira para matar a multidão desarmada nos dias conhecidos como “Batalha de Santiago” com o resultado de mais de 18 mortos e 500 feridos segundo dados oficiais.

A raiva se acumulava no Chile e no continente. No mundo, mais de um terço da humanidade funcionava fora da órbita capitalista. Em 1959, o triunfo da Revolução Cubana abre uma nova etapa na América como uma onda que sacode a vanguarda do continente.

Em 1960, após combativas greves de operários, entre as quais se destaca a “Longa Greve” do Carvão em Lota, as ocupações de terras agrícolas no sul e as ocupações urbanas dos sem-teto, o ano termina com uma grande manifestação na Alameda em 2 e 3 de novembro, onde Clotario Blest se dirige à multidão dizendo “A classe trabalhadora deve acordar dessa letargia … para se levantar em armas e derrubar o governo”.2 A manifestação é violentamente reprimida, o que causa a morte de dois trabalhadores e a CUT convoca uma greve para o dia 7 de novembro, dia do enterro dos mortos. Enquanto Clotario insiste na necessidade de manter a greve, o restante da direção da CUT, nas mãos de socialistas e comunistas, reduz a paralisação sem condições, enquanto o povo permanece nas ruas protestando. A CUT abandona a luta em um momento de ascenso. Clotario Blest, importante líder do processo, é preso.

Diante de um crescente movimento social e para evitar que a situação saísse do controle, em 1965 Eduardo Frei, candidato à presidência da Democracia Cristã, oferece a Revolução em Liberdade. A maioria acredita que as deficiências e a necessidade de justiça social podem ser resolvidas, em favor daqueles que não tinham nada, pelos democratas-cristãos e votam em Frei como presidente. O governo Frei, formado por alguns empresários conhecidos, assume a tarefa de realizar reformas tímidas que não aliviam de forma alguma a situação dos trabalhadores. A calma em que o movimento de massas havia caído rapidamente começa a desaparecer e as mobilizações são retomadas em 1966. As ocupações de terras, fábricas e greves davam conta da crescente agitação da classe popular.

Em janeiro de 1966, ocorre o primeiro evento que marca a traição. A mão de Frei não treme para ordenar a demissão de mineiros em greve em El Salvador, massacrando e assassinando para defender os interesses das mineradoras norte-americanas com as quais negociava a “chilenização da mineração”. As greves em El Salvador foram uma pedra no sapato muito irritante e ele se livra dela com violência desmedida.

O renascimento das lutas operárias de 1966 foi transformado em 1967 em um nítido ascenso, tanto quantitativo quanto qualitativo, expresso em novas formas de luta. De 723 greves em 1965 para 1.142 em 1967, lutas que culminaram na Greve Geral de 3 de novembro de 1967.”3

O massacre em Puerto Montt pelo uso da força pública no despejo de uma ocupação, registrada sob o governo Frei, pôs fim às esperanças de mudança depositadas na Democracia Cristã.

Em 1970, as mobilizações são novamente canalizadas para a via eleitoral. Comitês populares são criados em todas as cidades para promover a eleição do candidato de uma coalizão governamental formada pelo Partido Comunista, o Partido Socialista e o Mapu: a Unidade Popular. Seu candidato, Salvador Allende, fala nas fábricas diante de trabalhadores e patrões, sobre a expropriação das indústrias que serão realizadas em seu governo; seu programa fala de uma nova Constituição e que os trabalhadores serão levados ao poder através do exercício de um conceito um tanto indefinido chamado “poder popular” e que “o uso das Forças Armadas para oprimir o povo será rejeitado“.4

Após o recente uso da força demonstrado por Frei, essas promessas de campanha eram promessas sentidas. A consciência de classe dos trabalhadores era alta e Allende  lhes falava em sua língua.

Allende também não era um político qualquer. Realizou uma série de reformas benéficas, promoveu a nacionalização do cobre, nacionalizou empresas estratégicas fazendo o que nenhum outro presidente chileno fez, afetando o capital estrangeiro e nacionalizando a indústria; medidas que o colocam muito longe daqueles que hoje se dizem socialistas ou dos governantes que fingem ser seus êmulos.

Mas nenhuma, absolutamente nenhuma dessas medidas progressistas poderia ter sido realizada sem o imenso apoio do povo. O povo em luta, a classe trabalhadora, as imensas massas mobilizadas o ergueram em sua liderança e pressionaram fortemente pelo cumprimento do Programa de Unidade Popular.

Sem essa mobilização massiva como pano de fundo, é incompreensível que até mesmo a direita tenha votado no Congresso pela nacionalização do cobre. Nós, que vivemos o processo de outubro de 2019, sabemos que o voto dos notáveis muda muito diante da pressão das massas.

Sem esse imenso apoio, Allende não poderia ter feito o que fez. Além disso, esse mesmo apoio popular superou Allende, que queria continuar se movendo dentro das margens cada vez mais estreitas impostas a ele pelo sistema capitalista. As massas, como uma onda gigantesca e tempestuosa, ameaçavam transbordar. A mídia de direita fazia sentir o verdadeiro terror que tinham dessa imensa massa mobilizada. Os operários se enfrentavam com os patrões e suas gangues armadas para passar suas fábricas para o controle do Estado. Houve inúmeras greves e sacrifícios para que a nacionalização da indústria acontecesse.

Enquanto isso, os partidos socialistas e comunistas discutiam como esse “poder popular” poderia ser interpretado e definiam que o que quer que fosse, deveria ser submetido às instituições burguesas. Nos bairros pobres, nos campos e nas fábricas, milhares inventaram na prática o que era o “poder popular”, muitas vezes agindo por necessidade, tentando se antecipar ao ataque a que estavam sendo submetidos. Como veremos, o surgimento dos Cordões Industriais marcou um ponto qualitativo na capacidade organizacional dos trabalhadores.

A direita fez seu chicote ser sentido e parou a produção. Milhões se mobilizaram para se abastecer com o que a burguesia lhes negava. O dinheiro americano corria para parar os caminhões que bloqueavam as rotas de abastecimento para as cidades. As pessoas comuns se organizaram e resistiram organizadas. A máquina do Estado foi colocada a serviço do povo. Enquanto durou o perigo, o povo avançou no autoabastecimento, na produção para as necessidades, na mobilização e distribuição de alimentos por meio da organização popular, em um processo vivo em formação acelerada.

Quando o perigo passa, Allende recua e entrega o controle da situação às Forças Armadas, colocando-as em uma posição que mais tarde seria a ruína do processo. Por outro lado, ele ordenou que as fábricas ocupadas fossem devolvidas a todos os empresários que as tinham paralisado para derrubar o governo. A classe trabalhadora não o entendeu.

Allende avançava movido pelo perigo e pela mobilização revolucionária. Passado o perigo, ele recuaria e voltaria ao curral da institucionalidade.

Diante de cada manobra de desestabilização por parte da burguesia, o povo saía para defender o processo revolucionário que estava realizando e o governo Allende, entendendo que eram o mesmo. Diante do Tanquetazo, uma tentativa de golpe militar, Allende convoca os trabalhadores a tomar as fábricas, para defender o governo. O povo terá armas! ele prometeu na época. Os trabalhadores armados apenas com paus tomaram as fábricas e esperaram para enfrentar o exército golpista com armas que nunca chegaram.

Terminado o perigo de um golpe, Allende colocou as Forças Armadas em uma posição ainda mais alta em seu gabinete; o círculo se fechava. Allende novamente ordenou que as fábricas fossem devolvidas. Chega ao extremo de reprimir uma mobilização dos Cordões Industriais, lembrando-lhes que a organização popular deve ir detrás de seu governo, quebrando a promessa de que as Forças Armadas não seriam utilizadas para “oprimir o povo”.

No Congresso, é aprovada a Lei de Controle de Armas, uma lei feita sob medida para começar a desmantelar o andaime do movimento revolucionário que apoiava Allende. De sua posição elevada, as Forças Armadas: o Exército, a Marinha e a Força Aérea começam a reprimir as fábricas dos Cordões industriais e os bairros mais organizados e revolucionários. A repressão da época, ante a qual o governo Allende nada disse, foi limpando a praça antes do golpe. Enquanto isso, Allende e o coro grego do Partido Comunista e Socialista faziam reverências ao espírito democrático do qual as Forças Armadas manifestavam.

Seis dias antes do golpe, os Cordões Industriais fazem um apelo desesperado a Allende para deixar de lado a institucionalidade e liderar a Revolução pela qual o povo lutava até a vitória.

Talvez a carta nunca tenha chegado às mãos de Allende.

Aqueles que foram eliminados e varridos da face da terra pela ditadura militar foram os seres humanos que encarnaram a luta popular de décadas no Chile, talvez de toda a vida. Os mais organizados, milhares, milhões que enfrentaram a parte mais dura da luta de classes, em meio às contradições, em meio à repressão, em meio à escassez crônica a que foram submetidos, continuaram a sentir como próprio o governo de Allende, que os manteve atados à institucionalidade que acabou por devorá-los.

Para tirar esse processo do eclipse, deve se colocar Allende em sua verdadeira altura, deve-se descê-lo do pedestal do mito. O governo Allende foi um governo que tomou medidas anti-imperialistas, que lutou para recuperar as riquezas naturais para o país, mas nem as empresas estatizadas ou nacionalizadas, nem mesmo as mais estratégicas, nunca deixaram de funcionar como uma empresa capitalista. O governo sempre concebeu que a única participação da classe trabalhadora nas empresas estatais era produzir mais e melhor, a chamada batalha da produção. Durante o processo, os trabalhadores e trabalhadoras conquistaram o direito de controlar as fábricas por si mesmos, não lhes foi concedido pela graça. Allende sempre permaneceu dentro das margens do Estado capitalista. Quando a multidão que o colocou na liderança gritou para que ele saísse do círculo e os levasse à vitória, Allende não o fez. Assim, os mais belos frutos do processo revolucionário chileno foram levados ao altar do sacrifício, absolutamente desarmados: os seres humanos que foram a vanguarda desse movimento.

O resultado dessa derrota é o sistema em que vivemos hoje, em meio à pilhagem das riquezas, à custa da nossa saúde e da destruição da terra, do envenenamento das águas e do esvaziamento dos mares. Exploração, escassez e desemprego.

Mas aqui estamos nós de novo. A classe trabalhadora, mulheres e homens lutadores, em um novo ciclo que começa onde termina o anterior. Com multidões que treinaram nos anos 80 em meio ao perigo da ditadura, com a maioria se iludindo com a promessa de democracia da Concertación. Este processo é o dos 30 anos e principalmente o dos 30 pesos. O da explosão social. Testemunhamos a beleza das pessoas mobilizadas, agitadas, organizando-se.

O processo que culminou em 73 nem sempre foi ascendente, teve seus altos e baixos, suas derrotas parciais, seus momentos de calma, seus momentos de se deixar levar pela institucionalidade, seus momentos de traição às esperanças eleitorais da maioria, tal  como acontece hoje. Se conseguirmos ver isso a médio prazo, poderemos ver o processo de ascenso como algo vivo que leva anos, décadas de formação, amadurecimento, experiência. Com avanços e retrocessos.

Devemos aprender com outubro de 2019, que nos mostrou que “as revoluções são impossíveis até que se tornem inevitáveis”, como dizia Leon Trotsky.

Devemos começar a aprender com nossa história, os fatos insistentemente nos mostram; Qualquer confiança nas instituições burguesas sempre nos levará à derrota.

Ficou registrado em entrevistas, jornais, documentários, que a base do movimento revolucionário dos anos 70 era composta por militantes de diferentes partidos: comunistas, socialistas, miristas, trotskistas, maoístas, mapuístas, esquerda cristã e até alguns democratas-cristãos, partido oposto ao governo Allende; todos eles se reconheciam na causa operária, apoiavam-se entre os camaradas. A luta que estava ocorrendo nos bairros pobres, nos campos, nas fábricas irmanava os revolucionários a partir de baixo. Foi isso que fez o golpe militar decapitar todos esses combatentes quase sem distinção de correntes políticas. Honramos a todos e a todas. O golpe sangrento descarregou todo o seu poder contra as e os lutadores daquele movimento, transformando essa história em uma tragédia sangrenta.

Por isso é importante aprender com a história. Tirar as lições dela, para não a repetir, para encontrar as chaves que finalmente levam à vitória. Com esta revista queremos contribuir para isso, tentando mostrar alguns dos elementos que confluíram na história desse movimento revolucionário. Tentando despejar o mito da realidade. Esta revista quer fazer parte de um diálogo honesto que contribua para a análise aprofundada desse período a partir de uma perspectiva de classe, retomando suas principais lições e preparando o caminho atual da luta pelo socialismo, que continua mais viva do que nunca.

1 Clotario Blest na CUT, pela Democracia dos Trabalhadores, Paola Orellana Valenzuela, p. 47. Editorial América en Movimiento, 2018.

2 Os discursos de Clotario Blest e a revolução chilena em Ensaio sobre a história do movimento operário, Luis Vitale, 1961. Disponível em: http://archivochile.com/Homenajes/Clotario_Blest/MShomenajclotario0002.pdf

3 Ver: Perspectivas do Chile após as eleições presidenciais, Luis Vitale, 1970. Disponível em: https://www.archivochile.com/Ideas_Autores/vitalel/6lvc/06lvctextpol0001.pdf

4 A Revolução Chilena, Peter Winn, p. 61-62. LOM, 2016.

Tradução: Lílian Enck

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