O governo Lula e os oprimidos: entre as ilusões e a realidade
A demissão de Silvio Almeida do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, após denúncia de assédio contra funcionárias e ministras, entre elas Anielle Franco, caiu como uma bomba no movimento de luta contra as opressões e merece nossa reflexão. Antes de tudo, queremos prestar toda a nossa solidariedade à Ministra da Promoção da Igualdade Racial e demais vítimas.
Por: Hertz Dias
O PT soube, como nenhuma outra organização, capitanear o ódio dos oprimidos contra o governo Bolsonaro, que nunca disfarçou ser contra os negros, as mulheres, os indígenas e as pessoas LGBTI.
No dia 20 de novembro de 2020, Lula gravou um vídeo longo e emocionante sobre questão negra, provavelmente roteirizado por Silvio de Almeida. Ali parecia ser um outro PT, diferente daquele que comandou a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti); que aprovou a Lei das Drogas; que se negou a seguir a orientação do Conselho de Direitos Humanos da ONU para desmilitarizar a PM; que aprovou uma versão desfigurada do Estatuto da Igualdade Racial; que chamou os usineiros de “heróis nacionais”, e se aliou às cúpulas mais reacionárias das igrejas evangélicas contra as pautas dos movimentos de mulheres e das pessoas LGBTI.
Tudo isso parecia ter ficado para trás, prevalecendo falas, gestos e simbologias. Assim, a frente ampla ganhava as eleições com uma votação expressiva dos setores oprimidos, incluindo aí os nordestinos mais pobres.
O auge desse processo aconteceu no dia da posse, em 1° de Janeiro de 2023. Representantes de quase todos os setores oprimidos subiram a rampa do Palácio do Planalto como se estivessem indo em direção a um paraíso sem opressões. A exclusão das pessoas LGBTI foi minimizada. Logo depois, vieram as falas impactantes nas cerimônias de posse das pastas ligadas aos Direitos Humanos e aos setores oprimidos, que turbinaram esse sentimento.
Silvio Almeida conseguiu captar esse sentimento ao lembrar aos setores oprimidos que: “vocês existem e são valiosos para nós!”; e finalizou: “Com esse compromisso quero ser ministro de um país que põe a vida e a dignidade em primeiro lugar!”.
A fala de Sônia Guajajara também reverberou, afinal era a primeira indígena a assumir um cargo importante no Governo Federal, no recém-criado Ministério dos Povos Originários. A posse de Anielle Franco, irmã de Mariele Franco, caminhou na mesma direção, arrancando aplausos e lágrimas. O roteiro das narrativas e as simbologias falavam mais alto que a realidade, apesar de jamais substituí-la, até que a realidade se impôs.
A imposição da realidade e as decepções
Tal como a estrutura de um edifício define todas as demais etapas de sua construção, Lula e Hadad impuseram, logo no início do governo, o arcabouço fiscal para amarrar toda a estrutura econômica do governo na camisa de força do imperialismo, dos bancos e do agronegócio. Depois, Lula inflou as verbas do Plano Safra para o mesmo agronegócio que financiou os atos golpistas do 8 de janeiro de 2023. Ali já estava dito: não vai ter demarcação das terras indígenas, não terá titulação dos territórios quilombolas, muito menos desencarceramento e reparação histórica para negros e negras, e nem tampouco ampliação dos direitos das mulheres e LGBTIs.
Na realidade, esse terceiro governo Lula é muito mais à direita que os outros dois, e não seria menos trágico com os oprimidos. A burguesia, para quem governa a frente ampla, exige mais ataques aos trabalhadores. Sem antolhos colocados no canto dos olhos, qualquer ativista honesto sabe que esses ataques alcançam com muito mais ímpeto os setores oprimidos. Por outro lado, Lula não mediu esforços para se aproximar do Centrão, o bloco parlamentar que mais ataca os oprimidos. Para os oportunistas, essa aproximação é necessária para manter a governabilidade; mas para os oprimidos, esse tipo de governabilidade oprime e mata.
Nessa movimentação, um dos primeiros ataques deste governo contra os oprimidos foi transferir do Ministério dos Povos Indígenas para o Ministério da Justiça o poder de demarcar as terras indígenas. Sônia Guajajara sequer apelou para a mobilização dos povos indígenas e se limitou a declarar: “Neste governo, temos a segurança de que os compromissos serão cumpridos”. Em trecho da Carta dos Povos Indígenas do Brasil publicada recentemente está dito: “Já estamos no segundo ano de Governo e as suas promessas sobre demarcações continuam pendentes”. Parece até que Sônia Guajajara e os movimentos indígenas vivem em mundos completamente distintos.
Quanto à aprovação do PL 3045/2022, a Lei das PM’s, cujo relatório é de autoria do senador Fabiano Contarato, do PT, e que dá mais poder para a PM matar, e o decreto que regulamentou a privatização dos presídios, assinado por Geraldo Alckmin e Fernando Haddad, tanto o Ministério do Direitos Humanos e Cidadania, como a SEPIR (Seção de Promoção da Igualdade Racial) mantiveram um silêncio ensurdecedor. Somente depois de muitas denúncias é que Silvio Almeida resolveu se pronunciar, no entanto fazendo uma separação absurda entre o Silvio ministro e o Silvio cidadão.
O governo Lula não só atacou nossas pautas, como tratou com um desdém meritocrático a reivindicação de várias organizações negras para que nomeasse a primeira-Ministra negra da história do Brasil para o STF, depois da aposentadoria da Ministra Rosa Weber. “O critério não será mais esse [raça ou gênero]. (…) eu vou escolher uma pessoa que possa atender aos interesses e expectativas do Brasil, uma pessoa que possa servir o Brasil. Uma pessoa que tenha respeito com a sociedade brasileira”, disse na ocasião.
Foi com esse mesmo desdém que tratou a polêmica em torno do PL 1904/24 que equipararia o aborto ao crime de homicídio. Disse ele que “pautas de costumes não têm nada a ver com a realidade que vivemos”. Dizer que um projeto mediavalesco como esse que previa punição para mulheres e crianças estupradas “não tem nada a ver com a realidade” expressa o nível de submissão deste governo a grupos reacionários. Ao contrário dos demais ataques, aqui houve mobilização e esse “PL do Estuprador” foi engavetado.
E agora, o que fazer?
A queda de Silvio Almeida, ainda mais sob a acusação de assediar sexualmente uma ministra negra, tem gerado inúmeras reações. Existem os oportunistas que antes estavam juntos com Almeida na defesa do vergonhoso Comitê Antirracista do Carrefour, e agora o chamam de “símbolo do academicismo bem-sucedido, não do movimento negro”. Porém há aqueles mais realistas, que resolveram não minimizar a dimensão do estrago.
Em carta aberta em seu Instagram, o ator Lázaro Ramos declarou: “Em 24 horas, retrocedemos alguns anos. Vivemos um capítulo triste e devastador na luta pelo direito das mulheres, na luta antirracista, no campo político e na luta dos direitos humanos”. Luka Franca, do MNU, também frisou que “É uma derrota para o movimento negro a gente ver duas figuras importantes do primeiro escalão do governo, negras, expostas desse jeito”.
Essa caracterização é compreensível, ainda mais quando a ultradireita tenta utilizar esse caso de maneira hipócrita e oportunista. Quem não se lembra da declaração de Bolsonaro que “pintou um clima”, referindo-se às crianças e adolescentes venezuelanas, ou o caso de assédio sexual praticado pelo presidente da Caixa Econômica do governo Bolsonaro, Pedro Guimarães, contra funcionárias daquela instituição?
É importante, porém, considerar uma lição: todo governo de conciliação de classes, ao incorporar representantes da classe trabalhadora e dos oprimidos ao Estado burguês, o faz não para resolver os problemas dos oprimidos e dos trabalhadores, mas para desmobilizar, desmoralizar e derrotar esses movimentos. Essa máxima histórica está em curso e, mais uma vez, de maneira trágica.
Diante dessa constatação, em nossa opinião, existem duas alternativas aos movimentos de luta contra as opressões: seguir apoiando esse governo liberal e arcar com mais decepções e desmoralização, ou organizar as mobilizações com independência de classe e com um programa de oposição pela esquerda e socialista, tanto para enfrentar os ataques deste governo, quanto os da ultradireita.
Não nos cabe a tarefa de esperar que as paixões se apaziguem e que as ilusões desapareçam de maneira trágica para mostrar que tipo de governo está no poder, mas mostrar às massas que o seu caráter de classe se mede pelo conteúdo do seu programa, pelos acordos e alianças estabelecidas com os poderosos e não, meramente, por fraseologias e simbologias. As aparências podem ser um ponto de apoio para que possamos chegar à essência das coisas, porém jamais sobrepor-se a ela.