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segunda-feira, setembro 16, 2024

O Estado, o Partido Comunista chileno e os grandes acordos


Geralmente as correntes políticas dos partidos reformistas afirmam que é essencial conquistar cargos eleitos pelo povo, pois é a única forma de garantir, na “democracia”, mudanças estruturais para limitar os efeitos “selvagens” do capitalismo. Se as organizações operárias ou populares chegassem à direção das instituições do Estado por meio de eleições, isso permitiria mudanças. No Chile, a maioria das correntes políticas de esquerda defende essa política englobando-a no “antineoliberalismo”.

Por: Roberto Monares

O Estado, a democracia e seu caráter de classe.

Como escrevemos em artigos anteriores, as 10 famílias mais ricas do Chile e as transnacionais dominam o Estado chileno. Para fazer isso, elas usam o “sistema legal” e também a força. Esse Estado, que no Chile seria um “Estado de Direito”, tem um caráter de classe, como já escrevemos no artigo anterior e na última edição de La Voz de los Trabajadores. Para manter a dominação desses grandes capitalistas, o Estado conta com Constituições, leis, decretos, Tratados Internacionais e um longo etc. Exemplos, no Chile, são a lei de concessões de mineração, o Decreto 3500 das AFPs (Administradoras de Fundos de Aposentadorias/ Pensões), o Código do Trabalho de José Piñera, etc., e para fazer cumprir essa legalidade, utiliza as Forças Armadas e a Ordem.

O sistema jurídico precisa de sua justificativa e apoio social na “ideologia”. Um discurso que permite que milhões trabalhem em condições adversas e que poucos levem uma vida de luxo e privilégio. Uma realidade de desigualdade e violência que se disfarça de “igualdade” e “bem comum”. A atual Constituição proclama “As pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e “O Estado está a serviço da pessoa humana e tem como finalidade promover o bem comum, para o qual deve contribuir para criar as condições sociais que permitam a todos e a cada um dos membros da comunidade nacional sua maior realização espiritual e material possível, com pleno respeito pelos direitos e garantias que esta Constituição estabelece. Outro exemplo dessa necessidade de “justificar” o Estado são os conteúdos dos currículos das universidades e colégios, os meios de comunicação de massa, ou apelar à “independência do Judiciário” para resolver conflitos e violência.

No entanto, a realidade é diferente do que está escrito nas leis. No mundo real, a apropriação dos recursos naturais e a exploração cotidiana dos trabalhadores geram instabilidade permanente e contradições de várias intensidades, resultando em manifestações, comitês de moradia, greves e até mesmo a crise revolucionária como a de 18 de outubro de 2019. Quando as ideologias falham em conter o descontentamento, o sistema jurídico se sustenta no exercício da violência. Nas origens do Estado do Chile, no século XIX, a violência foi exercida contra os povos originários na chamada “pacificação da Araucanía” 1. E também, no início do século XX, nos massacres de trabalhadores perpetrados pelo Exército chileno, como o massacre da Escola Santa Maria em Iquique em 1907 ou o massacre de camponeses em Ranquil em 1934, perpetrado pelo nascente corpo de Carabineros, para citar dois exemplos.2 As forças policiais e o exército existem para garantir a “eficiência” do Estado. Mas isso não é apenas história, é o presente. O prolongamento dos estados de emergência no Wallmapu, com a militarização da Araucanía pelo governo de Gabriel Boric, ou os recentes despejos de ocupações de terrenos, ou a repressão dos trabalhadores diante de greves que escapam aos esquemas tradicionais do código trabalhista, manifestam a continuidade e a realidade do caráter de classe do Estado em 2024.

O Partido Comunista do Chile nos “grandes acordos da democracia”

A realidade e a continuação do caráter burguês do Estado não podem ser realizadas sem um “pessoal político”. O governo e os parlamentares passam por eleições. O judiciário, promotores, oficiais das Forças Armadas e Carabineros, não. Essas instituições “democráticas”, como escrevemos no artigo anterior, estão conectadas e sujeitas, por meio de diferentes redes e mecanismos, ao poder econômico. Por seu lado, os partidos dos 30 anos, da direita ao PS, criam as suas redes de militância clientelista nos vários serviços da administração estatal, fazendo negócios com empresários “amigos” ou “familiares” com os recursos dos serviços públicos. Os municípios são geralmente o primeiro passo de pequenas coalizões para avançar na escola desse “pessoal” confiável para os interesses da burguesia. Por isso, a corrupção na relação Estado-empresa, longe de ser um problema específico de uma determinada coalizão, é uma expressão de todos os partidos que administram o Estado. Esse processo é dinâmico, com novas gerações, e naturalmente há partidos centenários ou com décadas na administração dos negócios da burguesia, como a UDI, RN. Outros, como o PS, que se integraram nos anos 80 e 90 ou os mais recentes, onde se integraram antigos dirigentes das lutas estudantis, como a Frente Ampla e o Partido Comunista. 3

As definições centrais do PC do Chile em sua convocação para o XXVII Congresso Nacional ratificam sua estratégia “antineoliberal” no governo de Gabriel Boric: “É necessário olhar para a história, para construir o futuro. Considerando que está plenamente vigente a contradição entre Democracia e Neoliberalismo, e a revolução democrática com uma perspectiva socialista.” 4 . Para o Partido Comunista Chileno, haveria uma contradição principal entre neoliberalismo e democracia. Em defesa do governo de Boric e para justificar sua presença no governo, ele diz: “O resultado do plebiscito derrubou a hegemonia da esquerda para passar para uma etapa de cerco ao governo pela oposição e apoio condicional aos nossos projetos de lei, por parte dos partidos do pêndulo. O boicote no Parlamento se acentua. A permanência dos comunistas no governo tem arestas dramáticas e, ao mesmo tempo, trágicas, tanto durante os governos de Gabriel González Videla e Salvador Allende, quanto com sua própria complexidade agora no governo de Gabriel Boric. Nossos inimigos e adversários sempre tentaram associar a presença dos comunistas no exercício do poder com desordem, insegurança e caos.”5

Mas vamos para a relação das palavras com as ações6.Qual é a perspectiva do socialismo na política do PC do Chile? Quanto o PC incomoda os grandes empresários? Qual foi o seu papel no processo revolucionário no Chile aberto em 18 de outubro e até o presente?

As jornadas de luta de outubro de 2019, que sacudiram o país com milhões nas ruas, exercendo autodefesa e violência revolucionária, foram canalizadas para o Acordo pela Paz Social e a Nova Constituição de 15 de novembro de 2019. Com a pandemia no meio, o acordo conseguiu desviar o processo revolucionário em um Chile que se encontrava em chamas. O Partido Comunista, fiel à sua necessidade de cuidar da democracia, embora não tenha assinado o acordo para manter “o contato com as ruas”, rapidamente saiu em sua defesa, dando posteriormente seus votos no Parlamento, em janeiro de 2020, para “melhorar o acordo”. Também foi responsável por diminuir os apelos à mobilização feitos pela CUT e seus sindicatos exigindo a saída de Piñera. Então, durante a pandemia, o PC deu governabilidade ao governo Piñera com a aprovação de leis de suspensões de trabalho e desemprego (“lei de proteção ao emprego”), e ajudou a promover o segundo processo constituinte, com uma “comissão de especialistas”, que já havia chegado aos acordos da nova constituição antes mesmo do processo constituinte, acordos que mantiveram o país nas mãos das grandes empresas.

Agora, o PC é uma parte central do governo de Boric, que em seus primeiros dois anos aprovou o TPP11, o protocolo CODELCO-SQM que entrega lítio a Somiquich de Ponce Lerou até 2060, mantém Wallampu militarizado e já disse que aprovará leis para reduzir a “permisologia” para projetos “extrativistas”. Embora o PC às vezes vote contra projetos de lei polêmicos, seu único objetivo é manter sua influência entre os ativistas mais críticos (“um pé no governo, um pé na rua”). Como partido, eles são parte fundamental de um governo burguês e neoliberal, ou seja, são o pessoal “substituto” do Estado burguês.

O Partido Comunista, ao contrário do que o marxismo propõe historicamente, defende que o Estado burguês é um “Estado de direito”, que pode mudar de acordo com a política “antineoliberal” daqueles que o administram. A realidade mostra o contrário. Quando chegam ao governo, os velhos e novos partidos “antineoliberais” acabam administrando o capitalismo neoliberal, porque o Estado e suas instituições são controlados pelos grandes capitalistas. O PC hoje é uma ferramenta da grande burguesia, embora tenha que aparecer como um partido crítico e de esquerda para não perder seu eleitorado.

1Bengoa, José (2000 [1985]). História do povo mapuche: séculos XIX e XX. Santiago do Chile: LOM Ediciones.

2 Vitale, Luis (2000). Intervenções militares e poder de fato na política chilena (de 1830 a 2000)

3É relevante identificar esse processo de “escola de governo” da Frente Ampla em municípios como Providencia em 2012 ou o Ministério da Educação no segundo governo de Michelle Bachelet. No caso do Partido Comunista, depois de obter suas primeiras prefeituras e deputados nas regiões por pacto por “omissão” com a Concertación, avançou para senadores e municípios centrais da região metropolitana, como Santiago e Recoleta.

4https://pcchile.cl/2024/04/13/documento-convocatoria-al-xxvii-congreso-nacional-del-partido-comunista-de-chile/?pdf=4051

5idem

6 Seguindo o método do revolucionário Vladimir Lenin, “O problema é provar sua sinceridade, comparar palavras com ações, não se contentar com frases idealistas ou vãs, mas ver a realidade da classe”.

Tradução: Lílian Enck

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