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Opressão

Paris 2024: faltam igualdade de gênero e inclusão

agosto 27, 2024

 Nas últimas décadas, foram feitas tentativas de representar o mundo do esporte como um terreno em que as barreiras de gênero, de classe e etnia tendem a cair mais facilmente, através da promoção de uma competição mais justa e inclusiva, embora com profundas dificuldades. Com Paris 2024, na última edição dos Jogos Olímpicos, a igualdade de gênero e a inclusão foram declaradas “metas alcançadas”, pelo menos no esporte, tanto pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) como por diversas organizações institucionais envolvidas na defesa dos direitos das chamadas categorias “vulneráveis”.

 Por: Laura Sguazzabia

Nem tudo que reluz é ouro

A UN Women (organização das Nações Unidas para a igualdade de gênero), no início dos trabalhos olímpicos, declarou triunfantemente: “Pela primeira vez na história, os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Paris 2024 terão um número igual de homens e mulheres competindo. Essa representação de 50:50 dos atletas torna os Jogos de Verão os primeiros em alcançar a igualdade de gênero. O progresso não para por aí. Com uma audiência global esperada de três bilhões de pessoas, os Jogos deste ano foram deliberadamente programados para permitir uma cobertura mais equilibrada de todos os eventos, colocando todos os atletas sob os holofotes. Os Jogos também contaram com mais eventos mistos e femininos. Entretanto, esse entusiasmo pelo suposto progresso da emancipação feminina não foi acompanhado pela realidade. As Olimpíadas não ficaram imunes ao machismo (assim como ao racismo e à homofobia) que permeia toda a sociedade.

Na comunicação, por exemplo, as novas diretrizes lançadas pelos serviços de transmissão das Olimpíadas não foram suficientes. Como sempre acontece quando se fala dos êxitos esportivos das mulheres, muitos jornais e jornalistas deixaram de contar as façanhas esportivas das atletas olímpicas como elas realmente foram. Em alguns casos, foram relatadas com um caráter de excepcionalidade ou com a explicação de que uma atleta também é mãe, o que quer enfatizar aquilo que se acredita ser seu “verdadeiro” papel na sociedade. Em outros foram enriquecidas com detalhes, muitas vezes relativos à vida privada, definindo assim as atletas antes de tudo como esportistas, como namoradas ou esposas, amigas ou destacando algumas características físicas. Em particular, a sexualização dos corpos femininos durante os comentários e as filmagens das competições foi muito forte, com atenção especial aos aspectos sexuais do gesto atlético, como evidenciado tanto pelas piadas sexistas de alguns comentaristas quanto pelas inúmeras fotografias ou imagens de televisão que circularam nas redes sociais com imagens nas quais as atletas são imortalizadas em posições absolutamente normais em competições esportivas, mas transformadas em piscadelas eróticas dignas apenas dos piores filmes de série B dos anos setenta.

Esse interesse mórbido pelo corpo das atletas atingiu seu ápice no caso que envolveu e arrasou a boxeadora argelina Imane Khelif, cuja aparência física suscitou comentários e inferências de diversos graus e intensidades, ultrapassando em muito os limites do respeito e da inteligência. Basta pensar nas reações desconcertadas diante da recusa da atleta em mostrar seus órgãos genitais para provar seu gênero feminino, reações que sequer consideraram o grau de violência envolvido no pedido.

Sem inclusão!

E se não é possível fazer um balanço positivo sobre a igualdade de gênero, a situação não melhora no aspecto da inclusão, palavra utilizada em várias áreas, mas que no campo social adquire um significado muito particular: indica pertencer a algo e sentir-se bem-vindo. De acordo com o COI, os Jogos Olímpicos de 2024 deveriam ter sido uma ótima ocasião para aumentar a inclusão, porque como afirma o site oficial, “o esporte aumenta a inclusão e a coesão social e, ao mesmo tempo, reduz o isolamento ao unir pessoas com experiências diferentes em torno de uma paixão ou até mesmo de um simples momento no campo de jogo”.

É uma pena que a própria França, anfitriã desta edição dos Jogos Olímpicos, tenha se revelado a menos inclusiva de todas. Prova disso é a proibição, em vigor há muito tempo, de qualquer tipo de véu religioso [Hijab] nos diversos esportes, o que para as mulheres muçulmanas significa a exclusão não apenas da participação, mas também das oportunidades de treinamento e competição necessárias para alcançar o nível olímpico. Muitas mulheres e meninas muçulmanas na França foram forçadas a abandonar os esportes que amam ou a buscar oportunidades em outros países. E o COI, apesar das proclamações iniciais e dos apelos de várias ONGs em defesa dos direitos das atletas francesas, não tomou posição.

Além disso, como sempre acontece por ocasião dos grandes eventos esportivos internacionais, em Paris se adotaram políticas de limpeza e exclusão social, despejos e aumento do preço dos imóveis, resultando na expulsão e marginalização de milhares de pessoas das categorias sociais mais vulneráveis, com o objetivo de melhorar a imagem da cidade aos olhos das câmeras. Barracas, casas ocupadas (prédios abandonados ocupados) e alojamentos estudantis foram evacuados em uma demonstração de força muito violenta que resultou em pelo menos 10.000 pessoas colocadas nas ruas – de acordo com estimativas baixas – entre elas muitas mulheres (pelo menos uma  centena delas grávidas) e crianças.

Além disso, os trabalhos de preparação para as Olimpíadas provocaram aumentos acentuados na banlieue norte [subúrbio periférico, mais social do que geográfico de Paris], onde o mercado imobiliário entre 2019 e 2023 aumentou o metro quadrado de 3.780 para 4.616 euros, e o custo das passagens para toda a rede metropolitana subiu de 2,15 para 4 euros.

E embora os comitês olímpicos internacionais e franceses, ou seja, os organizadores de Paris 2024 continuem a dizer que as Olimpíadas são socialmente úteis porque pelo menos 10% dos apartamentos a serem construídos na Vila Olímpica após os Jogos serão reservados para habitação social, sabemos que a característica dos grandes eventos esportivos é que eles provocam uma devastação social que afeta os setores mais débeis da população sem depois reparar esses danos.

Precisamos de uma mudança de sistema

Ainda que seja importante que o número de atletas do sexo feminino nesses Jogos Olímpicos tenha sido igual ao número de participantes do sexo masculino, como mulheres proletárias, não consideramos isso suficiente. As conquistas são importantes e, por isso, lutamos muito, mas são insuficientes enquanto continuarmos a viver em um mundo capitalista. Igualdade de gênero, inclusão, igualdade de oportunidades são termos que pertencem a uma retórica burguesa que tenta nos iludir sobre a possibilidade de melhorar as condições das mulheres nesse sistema, que tenta incutir confiança nos governos e nas instituições burguesas. Mas são os próprios governos e instituições que recorrem aos planos de austeridade, realizam reformas trabalhistas regressivas, deixando de aumentar os orçamentos para saúde e educação gratuitas, priorizando os lucros em detrimento de nossas vidas e nos condenando ao desemprego, à fome e à violência.

Precisamos de uma revolução socialista para pôr fim a este sistema assassino, que utiliza as opressões das mulheres para nos dividir como classe e nos explorar ainda mais, para nos pagar salários mais baixos do que os dos homens, para nos transformar no exército de reserva de mão de obra necessário para rebaixar as conquistas trabalhistas da classe operária como um todo.

Para levar adiante uma luta coerente contra nossa opressão, nós, mulheres proletárias, queremos e precisamos do apoio dos homens trabalhadores, porque o machismo que oprime, humilha e explora as mulheres serve tanto para dividir e enfraquecer a classe quanto para aumentar a exploração de todos os trabalhadores. A luta não é separada, mas conjunta dentro da nossa classe.

Artigo publicado em www.partitodialternativacomunista.it, 20/08/2024

Tradução italiano/espanhol: Natalia Estrada

Tradução espanhol/português: Rosangela Botelho

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