Por que o Chile não muda? O Grande empresariado e controle do Estado
Há algumas semanas, a Codelco assinou um acordo com a SQM (Sociedade Química e Mineira do Chile) para explorar lítio no Salar de Atacama. A permanência da SQM na exploração do salar, que deverá terminar em 2030, vai estender-se até 2060 (a partir de 2030 com uma participação majoritária da Codelco), em terrenos que pertencem ao Estado (Corfo). Assim, a empresa de Ponce Lerou, ex-genro de Pinochet, continuará lucrando enormemente com a produção de lítio no Chile. Para se ter uma ideia, só em 2022, a SQM teve mais de US$ 4 bilhões em lucros. Por isso, Ponce Lerou é hoje a quarta pessoa mais rica do Chile.
Por: Otávio Calegari
Além de ser uma das empresas mais lucrativas do Chile, a SQM também tem sido uma das mais controversas. Em 2015, um enorme escândalo de corrupção envolvendo a empresa tornou-se público. Nos meses seguintes, verificou-se que a SQM havia financiado ilegalmente mais de 300 políticos; entre eles, vários candidatos presidenciais “rivais”, como Piñera, Frei, Bachelet e Marco Enríquez-Ominami. O escândalo levou à queda e prisão de seu gerente geral (Patricio Contesse, braço direito de Ponce Lerou) e outros personagens da empresa. Também à proibição de Ponce Lerou e seus filhos de permanecerem no conselho da SQM. No entanto, Ponce Lerou foi salvo e libertado. E não só isso. Permaneceu como o principal acionista da SQM e hoje tem seus netos nos conselhos das empresas que controlam a empresa.
Quase 10 anos após o escândalo, tudo permanece o mesmo. Ponce Lerou está mais rico a cada dia e a cada dia tem mais influência política. Não há dúvida de que continuará a financiar, legal e ilegalmente, diferentes partidos políticos. Um reflexo disso é que ele continuará no negócio de lítio por mais 35 anos!, um presente de Boric. O Estado chileno poderia perfeitamente ter assumido o negócio depois de 2030, mas o governo não quis fazê-lo. O lobby de Ponce Lerou prevaleceu.
Este exemplo, de como um dos homens mais ricos e corruptos do Chile permanece intocável e influenciando as decisões do Estado, é apenas um entre as dezenas que poderíamos citar nas últimas décadas. Em todos os casos de corrupção envolvendo grandes empresários, nenhum deles foi parar na cadeia: caso Penta, conspiração do conforto, conspiração do frango, aprovação fraudulenta da Lei de Pesca, etc. Todos eles ainda estão livres e acumulando enormes fortunas.
O Estado é o comitê de negócios da burguesia
Na edição anterior de La Voz de los Trabajadores, descrevemos o funcionamento da economia chilena e como isso beneficiou algumas famílias, que possuem praticamente todos os ramos da economia. O poder dessas famílias é baseado na propriedade privada de grandes empresas e bancos. Mas essas famílias não governam diretamente o país. Com exceção de Piñera, os grandes empresários não são políticos. Eles permanecem nos bastidores. No entanto, todas as grandes decisões políticas relevantes (acordos de livre comércio, grandes reformas, licitações, candidaturas, etc.) são determinadas pelas grandes empresas.
Esta, entretanto, não é uma particularidade chilena. Em 1848, no Manifesto do Partido Comunista, o revolucionário alemão Karl Marx descreveu o governo estatal moderno como “uma junta que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa”. Assim, desde o surgimento do capitalismo, a burguesia controlou os Estados de diferentes maneiras, às vezes de formas mais “democráticas” (para ela), às vezes de maneiras mais autoritárias. As únicas exceções foram as experiências das revoluções operárias, quando a burguesia perdeu o controle do Estado e da economia, mas estas recuaram após a restauração do capitalismo.
Hoje, muitos ativistas sociais continuam acreditando que o Estado é uma espécie de casca vazia e que basta vencer as eleições para que possamos transformá-lo em uma ferramenta a serviço do povo. Mas isso não é assim.
A divisão de poderes e o controle da burguesia
Os grandes empresários usam vários mecanismos para controlar o Estado. A base desse controle é a chamada “divisão de poderes”. Se perderem a Presidência, controlam o Parlamento. Se eles perderem o Parlamento, eles controlam a Justiça. Se eles perderem o controle de quase tudo, sempre lhes resta a última moeda: as Forças Armadas. Por isso, nenhum governo que se autodenomina “popular” consegue realizar grandes reformas e sustentá-las ao longo do tempo se não romper a estrutura do Estado burguês. Allende foi o maior exemplo disso, acreditando que poderia ir contra a burguesia sem destruir seu Estado. O resultado todos nós conhecemos.
A divisão de poderes também serve ao empresariado para estabelecer regras para suas disputas, para que não tenham que ser resolvidas permanentemente por meio da violência. Isso é o que chamamos de “democracia burguesa”.
Os mecanismos utilizados pelo grande capital para controlar e influenciar as decisões políticas são muitos e variados. Aqui vamos listar 5 dos principais no Chile:
1 – Financiamento de partidos e candidatos. Os partidos mais importantes do país recebem financiamento direto de grandes empresas e empresários. Os donos do país como Luksic, Matte, Angelini, a família Piñera, Ponce Lerou, Von Appen, Solari, e também as transnacionais (Enel, Santander, etc.) doam muito dinheiro para os partidos. Às vezes, doam para dois ou três partidos, que para a população parecem diferentes, mas que defendem os mesmos interesses. Os maiores partidos burgueses do Chile são a UDI, RN, o Partido Socialista, a DC e depois vêm outros menores: PPD, Evópoli, etc. Os partidos pequeno-burgueses, como a Frente Ampla ou o Partido Comunista-PC, embora não tenham recebido grandes somas diretamente dos donos do país até agora, também são controlados por esses empresários, através das alianças que fazem com os partidos burgueses. Como têm um programa baseado em acordos e pactos para conseguir reformas, têm que se limitar ao que os empresários estabelecem. Hoje isso é evidente com Boric e o PC aprovando os estados de emergência na Araucanía para beneficiar as famílias Matte e Angelini ou fechando o acordo SQM-Codelco para beneficiar Ponce Lerou.
2 – Corrupção de funcionários públicos. Outra forma muito comum e difundida de controle do empresariado sobre o Estado é a corrupção de funcionários públicos. O recente caso de Luis Hermosilla demonstra graficamente como um advogado relacionado a grandes empresários e autoridades políticas coloca um preço na cabeça dos funcionários da Receita Federal. Existem inúmeros outros exemplos nos últimos anos. Promotores, juízes, policiais, oficiais das Forças Armadas, funcionários da alfândega, prefeitos e um longo etc.
3 – Centros de estudo e lobby. Os grandes empresários são donos de importantes Centros de Estudos (think tanks ou grupos de especialistas) queinfluenciam diariamente nos projetos em discussão no Parlamento. Alguns exemplos são o Centro de Estudos Públicos (CEP) (ligado à família Matte, com a participação de outros grandes empresários), Libertad y Desarrollo (UDI/RN), Chile 21 (PS/PPD) e vários outros. Há também lobistas profissionais, ou seja, pessoas que trabalham como articuladores entre os diferentes partidos e empresários, como Pablo Zalaquett, que recentemente convidou ministros de Boric e grandes empresários para jantares em sua casa, tudo por fora da legalidade.
4 – Privilégios e formação ideológica para os oficiais das Forças Armadas e da Ordem. Os donos do país e o imperialismo sabem que a garantia da ordem, no limite, está na polícia e nas Forças Armadas. Por isso, mantêm estas instituições sob o mais estrito controle e sem qualquer democracia interna. Luksic, o maior empresário do país, “doa” bolsas de estudo para oficiais das Forças Armadas para que possam ir aos Estados Unidos formarem-se. Além disso, os oficiais recebem salários muito bons, têm acesso a boas casas, clubes e muitos outros privilégios. A polícia e as forças armadas têm seu próprio sistema de aposentadorias/pensões, diferente das AFPs. Essas instituições também carecem de democracia interna e mantêm uma disciplina rígida, determinada pelo alto comando. Assim, o questionamento interno é quase impossível, exceto em períodos revolucionários;
5 – Ameaças de boicote e desinvestimento. Por último, os capitalistas estão constantemente ameaçando os políticos de retirar seu dinheiro do país se certas reformas forem aprovadas. Eles sabem que são capazes de gerar caos econômico e pouco se importam que a população possa sofrer com a escassez, inflação, etc. Fizeram isso nos anos 70 e poderiam fazer de novo. Por outro lado, os grupos empresariais costumam “retirar” dinheiro do país para investir em outros países com leis e mercados diferentes, porque é assim que o capitalismo funciona. O grande empresariado está organizado em grandes associações que têm enorme poder de barganha e chantagem, como a Associação de Bancos, Associação de AFPs, Conselho de Mineração, Sociedade Chilena do Cobre, Câmara Chilena de Construção, Confederação de Produção e Comércio. As primeiras associações empresariais são do início da República, por exemplo, a Sociedade Nacional de Agricultura de 1838 ou a Sociedade de Desenvolvimento Industrial desde 1883. Essas organizações são as que, em última análise, determinam o que os partidos do partido fazem.
Conclusão
O Estado chileno, como os outros Estados capitalistas do mundo, não pode ser mudado “por dentro”. No Chile, os interesses das grandes empresas e seu rígido controle sobre o Estado não permitem grandes reformas ou transformações. Se nos anos 70 eles permitiram que Allende fosse muito longe nacionalizando o cobre, os bancos e muitas indústrias, hoje eles já não permitirão nem um décimo disso. Seu aparato estatal está pronto para desviar, derrotar e reprimir qualquer tentativa profunda de mudança social, seja através da própria legalidade burguesa e de suas instituições (Supremo Tribunal, Tribunal Constitucional, Parlamento, etc.), ou pela força, através das Forças Armadas e da Ordem. Todas as organizações políticas que queiram transformar o capitalismo chileno sem romper com a estrutura do Estado burguês chegarão exatamente onde o Partido Comunista e a Frente Ampla chegaram hoje.
*Este artigo foi publicado em La Voz de los Trabajadores n° 33. Imprensa do Movimento Internacional dos Trabalhadores, seção chilena da LITci. Faz parte de uma série de artigos programáticos que buscam responder às perguntas: Por que o Chile não muda? O que devemos fazer para mudar isso?
Tradução: Lílian Enck