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sexta-feira, setembro 13, 2024

Muhammad Yunus: o líder do governo interino de Bangladesh.

Muhammad Yunus foi recentemente escolhido para liderar o governo interino de Bangladesh, em meio a um levante popular em curso no país que derrubou a primeira-ministra Sheikh Hasina, que chegou a fugir de helicóptero para a Índia. O estopim para as lutas foi uma política de cotas nos empregos públicos: um terço das vagas seriam reservadas para parentes de veteranos da guerra de independência do país contra o Paquistão em 1971.

Por: Marcel Wando

Isso foi considerado um privilégio para os militares do país, em meio a um governo que já tem a fama de ser corrupto. O protagonismo dessas lutas é principalmente de estudantes, que demandam mudanças radicais no governo. Vamos apresentar neste artigo quem é Muhammad Yunus, o banqueiro que foi escalado para assumir o poder para frear a heroica revolução de Bangladesh e entender como a ausência de um partido marxista levou a que ele recebesse o apoio dos lutadores.

Esse entusiasmo está relacionado com a própria trajetória de Yunus. Ao mesmo tempo em que é reconhecido mundialmente pelo seu papel no combate à miséria da década de 1970, é também ocultado seu papel na manutenção da exploração da classe operária de hoje, e como seu papel foi fundamental no enriquecimento das multinacionais imperialistas que incidem no país. Nascido em 28 de junho de 1940, na cidade portuária de Chittagong, Bangladesh, Muhammad Yunus se formou em Ciências Econômicas pela Universidade de Dhaka, e pós-graduação nos EUA. Retornou em 1972 a Bangladesh para dirigir o departamento de Economia da Universidade de Chittagong, logo após a independência do país em 71.

Cenário político e econômico

Bangladesh sofria com o legado da colonização britânica: um país muito populoso, essencialmente agrário, cuja formação do proletariado se deu sem a devida criação de empregos. Isso resultou em uma imensa pobreza, fome, entre outros indicadores de mazelas sociais, como analfabetismo, mortalidade infantil, etc. Além disso, os militares deram um golpe em 1975, organizando um regime ditatorial que perdurou até 1990.

Esse contexto interno se dava em meio a Guerra Fria. Países imperialistas, especialmente os EUA, estavam exportando Capitais e apoiando golpes e ditaduras pelo mundo. Em Bangladesh, esse era o cenário ideal para a instalação da indústria têxtil, uma vez que encontrava uma população capacitada para essa tarefa (dada a tradição cultural na produção de roupas e tecidos) e em situação de miséria disposta a aceitar níveis de exploração ainda maiores em relação aos trabalhadores estadunidenses.

A experiência de microcrédito do Grameen Bank

Foi nesse cenário que se deu a experiência do Grameen Bank (Banco da Aldeia, em tradução livre), que se iniciou com pequenos empréstimos no final da década de 70, e se estabeleceu oficialmente em 83. Ele é considerado a primeira instituição financeira a oferecer microcréditos a pessoas de baixa renda, especialmente mulheres, sem exigir garantias, algo inédito na época. Até então, a principal forma de microcrédito era o para consumo, em especial os cartões de crédito, que começaram a se popularizar nessa época, em especial, nos países ricos.

O Grameen Bank oferecia crédito a 8% de juros anuais para a construção de casas, o que é especialmente importante em um país que possui enchentes praticamente todo ano, com a destruição das casas. Essas novas casas, além da moradia em si, também reservavam um espaço para a criação de oficinas, transformando cada residência em uma extensão das fábricas. Para viabilizar o trabalho, como a compra de máquinas e insumos, também era oferecido crédito a 20% de juros anuais.

Os empréstimos eram feitos especialmente para mulheres que correspondiam a mais de 90% das “clientes” do banco até hoje, dando prioridade para as oficinas de costura. Em média, o banco possuía uma taxa de lucro de 15% ao ano, o que está dentro da lucratividade média do Capital do país. Apesar disso, o banco ficou conhecido como ofertando crédito barato, porque os demais bancos cobravam fortunas das trabalhadoras, o que as jogava na inadimplência. Além disso, o banco tinha mais duas peculiaridades: o empréstimo a grupos de 5 mulheres, de modo que elas atuavam em conjunto como uma unidade produtiva; e a cobrança semanal, em que o banco mantinha um contato presencial permanente com essas mulheres.

Um império econômico

Com o tempo, foram criadas mais 22 empresas do grupo Grameen, tanto com e sem fins lucrativos. Além das empresas financeiras que endividam as famílias de Bangladesh, ainda atuam na educação e infraestrutura de comunicações e energia privadas, assumindo um papel que poderia ser do Estado. Também possuem parceria com outros ramos de multinacionais imperialistas, como no processamento de alimentos com a Danone e no agronegócio. Além disso, oferecem outras formas de emprego terceirizado e precário, como o desenvolvimento de software e o telemarketing. Isso não significa que o Banco Grameen tenha perdido sua relevância. Hoje, ele atende mais de 9,3 milhões de “clientes”, dos quais 97% são mulheres, e já desembolsou quase 39 bilhões de dólares em empréstimos.

Em geral, as indústrias Grameen buscam prover produtos e serviços para revenda, de modo que a população de Bangladesh possa “gerar seus próprios empregos”. Através dessas iniciativas que Yunus defende dois pilares centrais: a erradicação da pobreza através do desemprego zero e o combate às mudanças climáticas, através do investimento privado em novas fontes de energia verde. Vale mencionar que essa é especialmente impactante em Bangladesh, que já possui milhões de refugiados climáticos e é considerado por especialistas o país com maior potencial de deslocamento da história da humanidade, devido às mudanças climáticas.

A política de auto-emprego foi efetiva. Milhões de famílias de fato saíram da miséria no país. Os índices de impacto social demonstraram uma disparidade entre as famílias das “clientes” do Grameen e a população geral: melhoria na alimentação, educação, saúde, habitação, mortalidade infantil, etc. Mas uma melhora não significa necessariamente que hoje se encontrem em uma situação boa. O maior exemplo disso está na insatisfação que gerou o processo revolucionário de 2024. Falaremos sobre isso mais adiante.

Do ponto de vista geral do país, também parece ter havido uma melhoria. As famílias das costureiras movimentaram o comércio local através de seu poder de consumo, o que gerou um mercado interno e um aumento das importações. O PIB começou a crescer “em ritmo chinês”, de 5,6% ao ano, em média, entre 1990 e 2022. A indústria têxtil se tornou a principal do país: responsável por três quartos da exportação nacional em 2005 e posicionando Bangladesh como o segundo maior exportador do mundo em 2014. O país se tornou um exportador de produtos primários (inclusive de alimentos que ainda faltam à população) e de baixo valor agregado, que não conseguiu desenvolver sua própria indústria nacional.

Yunnus e o Prêmio Nobel da Paz

As migalhas que caem da mesa do imperialismo para o povo pobre e trabalhador de Bangladesh foi o suficiente para que Yunus ganhasse reconhecimento global pelas principais instituições internacionais. Por ser o idealizador do serviço bancário de microcrédito produtivo e ser a face pública do Grameen Bank, Yunus é reconhecido interna e externamente como o principal responsável por todos esses resultados. Isso lhe rendeu o prêmio Nobel da Paz em 2006.

Essa experiência foi utilizada como inspiração para toda uma nova agenda política de criação de “empresas sociais”, “setor 2.5” e de empreendedorismo em geral. Essas políticas foram implementadas em todo o mundo pelos Estados capitalistas, seja por governos de direita ou de esquerda, em países ricos e pobres. O discurso de que é possível para o trabalhador gerar seu próprio emprego foi utilizado para colocar a responsabilidade sobre o desemprego nos próprios trabalhadores, que não estariam empreendendo o suficiente. Também ajuda a desmobilizar as lutas que demandam do Estado políticas públicas porque todo problema social teria, em potência, uma solução a partir do empreendedorismo.

O que explica essa popularidade?

Para a época, o microcrédito para a produção soava como algo inédito, visto que o microcrédito era oferecido pelos bancos somente para o consumo através dos cartões de crédito. Mas o microcrédito para a produção já era algo comum nas cooperativas de crédito desde o século XIX, sendo que a inovação em si somente o fato desse serviço ser oferecido por um banco. Então, o que efetivamente se deu, foi uma boa jogada de marketing pessoal para um novo serviço bancário que viabilizou a entrada de Capitais externos.

Essa é uma situação similar à vivida em diversos outros países pobres durante a segunda metade do século  XX. Dezenas de ditadores são considerados populistas ou populares ou até comunistas por realizarem retóricas semelhantes. Constroem a fama de serem “bons para o povo pobre” ou de serem “nacionalistas” ou até “desenvolvimentistas” porque atuam em parceria com o Capital externo. Com a diferença de que, em geral, essa fama fica com os ditadores, e no caso de Bangladesh, a fama ficou com um empresário que não exercia cargos políticos diretamente.

Não é um fenômeno totalmente inédito, mas por que ele acontece? O dinheiro percebido como o grande motor da atividade produtiva humana no capitalismo. Sem o Capital adiantado, nenhuma empresa nasce, e nem são criados novos empregos. O Capital em sua forma Dinheiro é sempre a primeira percepção de que temos desse processo do Valor que se valoriza. Por mais que centenas ou milhares de ciclos se passem, e até de todo o Capital investido já tenha sido retornado ao primeiro investidor, ele continua sendo visto como o primeiro agente, o proprietário e responsável.

A entrada do Capital externo é, essencialmente, o início dos ciclos capitalistas nesses países. Mas os políticos conseguem convencer a população de que é graças a eles que esse Capital pôde entrar no país, o que é corroborado pelo Estado ser o detentor do padrão monetário nacional. Combina-se a isso que Yunus ainda se apresenta como o responsável pelos empréstimos de microcrédito, que na prática parece ser um “microcapital” que entra na casa das pessoas e permite que elas trabalhem.

Uma velha teoria econômica

A teoria de Yunus é de que, ao oferecer microcrédito, isso viabiliza o trabalho porque permite o consumo de máquinas e matérias primas. A partir desse trabalho realizado, são geradas mercadorias, que são vendidas e geram mais dinheiro. Essa receita permite tanto repor as matérias primas para um novo ciclo de trabalho quanto para pagar os juros dos empréstimos e, o pouco que sobra, ser usado como renda para o consumo pessoal dessas famílias. Essa renda é que iria circular no mercado interno de bens de consumo, aquecendo o mercado do país. Já o dinheiro que é repassado para fornecedores e banco servem, em partes, para ampliar a produção e investir em novos ramos.

Na prática, o que se observa é que esse processo gera uma renda muito baixa para essas famílias, uma das menores do mundo. Então, ainda que funcionasse, seria bastante insuficiente para sustentar a tese de causa humanitária. Tanto é assim, que a fome em Bangladesh ainda é imensa. Mas essa teoria tem um outro furo: nada garante que isso vá se manter funcionando para sempre. Problemas de infraestrutura, como catástrofes climáticas podem interromper o processo de produção. Além disso, as empresas imperialistas podem mudar seu centro de compra para outros países, de modo que a população fique com mercadorias que não são vendidas e não poderão alcançar o mercado interno.

Essa teoria econômica que pressupõe o funcionamento do mercado para concluir que o mercado funciona não é nova. Trata-se da antiga Lei de equilíbrio dos mercados, defendida desde o século XVII e XVIII. Isso já era dito por economistas liberais como Jean-Baptiste Say, James Mill e Adam Smith. É um dogma de correntes econômicas liberais que justificam que o mercado é perfeito e racional, adaptado para uma conjuntura de um país em estado de penúria explorado pelo capital internacional em parceria com empresários locais.

Yunus, sócio menor do Capital imperialista

Se incluímos o Capital internacional na equação, vemos que ele é o principal agente que coloca em movimento as milhões de operárias da indústria têxtil. De todo o trabalho realizado por elas, a maior fatia fica com essas empresas e a menor com elas. Essas empresas não possuem qualquer interesse humanitário, apenas interesses econômicos de exploração dessas milhões de famílias.

O Banco Grameen, portanto, não é o iniciador do processo produtivo, mas um atravessador necessário. Se as multinacionais ficam com a maior parte do trabalho não pago às operárias, o banco fica com uma menor parte dele. Ou seja, a “causa humanitária” é apenas uma retórica de marketing. Ainda mais quando reconhecemos que sequer se trata de um crédito subsidiado, abaixo da média de lucratividade do mercado. Os interesses financeiros das multinacionais são determinantes em relação ao início do processo, sendo o banco apenas um sócio menor.

Mas isso nos faz questionar: porque a indústria têxtil internacional está comprando esses produtos? O objetivo é baratear os custos com mão de obra. A luta econômica dos trabalhadores nos países centrais conferiu uma média salarial muito maior para eles. Migrar esses postos de trabalho para o sudeste asiático foi uma forma de rebaixar os custos de produção com salários de uma só vez. Não existe qualquer interesse em ações humanitárias por parte dessas empresas, somente a exploração implacável das operárias bengali.

Superexploração das operárias

A disputa do protagonismo do processo produtivo entre o investimento externo e interno está dentro da lógica da aparência do Capital-Dinheiro como o motor de arranque do Capital. Mas a manutenção dos ciclos só ocorre devido ao trabalho árduo das operárias, as verdadeiras responsáveis pela prosperidade econômica de Bangladesh, que não podem usufruir nem da menor parte dessa riqueza produzida, e menos ainda influenciar nas decisões de como será reinvestido o valor excedente produzido por elas. O que nos leva a investigar as condições em que se dá esse trabalho.

As condições de trabalho e de vida dessas operárias, seus filhos e toda sua família são melhor observados pelos estudos da indústria da Fast Fashion, e não pelos discursos populistas de Yunus. Os Sweatshops é o termo em inglês correspondente ao local onde se desenvolve o sweating system, um modelo de exploração pelo qual os empregados trabalham sob extrema pressão e os locais de trabalho confundem-se com as residências e não possuem condições de saúde e segurança. Os lares são convertidos em uma extensão do estabelecimento fabril, sem as condições de controle e proteção da planta industrial.

Também chamados de “atelier de miséria”, nos termos franceses, são locais de trabalho em condições muito precárias e socialmente inaceitáveis pelos trabalhadores dos países imperialistas. O trabalho pode ser difícil, perigoso, climaticamente impróprio ou mal pago. Trabalhadores em Sweatshops podem ter de trabalhar longas horas, com baixa remuneração, independentemente de leis que obriguem pagamento de horas extras ou um salário mínimo; leis contra o trabalho infantil também podem ser violadas. Os produtos que geralmente são fabricados nessas fábricas são sapatos, vestuário, brinquedos, chocolate e café.

Multinacionais que foram acusadas de fazer uso dessa forma de trabalho incluem Levi’s, Nike, Tommy Hilfiger, Calvin Klein, Ralph Lauren, Zara, Armani, Gucci, Prada, Dolce & Gabbana, Burberry, entre outras. 

Em parceria com essas empresas, o Banco Grameen extrai ainda mais um pouco da renda dessas famílias, cobrando juros de 20% ao ano para viabilizar o trabalho e 8% ao ano quando elas se veem em uma situação de desamparo com a destruição de seus lares. Além disso, o grupo Grameen de conjunto ainda viabiliza novas formas de exploração em outros ramos produtivos.

O capitalismo trouxe para Bangladesh, em primeiro lugar, a miséria com a colonização, e, em segundo lugar, a super-exploração com as sweatshops. É verdade que essa forma de trabalho aparece nas estatísticas como algo melhor do que morrer de fome, mas não é verdade que isso esteja próximo à liberdade ou algum nível de emancipação. Isso só demonstra que o capitalismo é o sistema que aprisiona a maior parte da população em uma armadilha: a única coisa pior do que ser explorado, é não ser. É uma prisão com aparência de liberdade.

Existe exploração no empreendedorismo?

À primeira vista, tudo se passa como se as trabalhadoras estivessem produzindo mercadorias e as vendendo. Logo, como poderia isso ser uma exploração? Alguns podem pensar até mesmo que o lucro das multinacionais está na esperteza do empresário que resolveu aproveitar a diferença de preços entre os países para se tornar apenas um atacadista, e não mais um produtor. Mas não é bem assim, e vamos explicar o porquê.

O primeiro indício de que isso é uma outra forma de contratação, e não uma atividade empresarial, é de que essa mesma atividade coexiste em modalidade de contratação de salário mensal. De tal modo que o salário que essas operárias ganham se dá por peça produzida, e não pelo tempo. A escolha do mercado por uma ou outra modalidade se dá conforme cada uma é mais ou menos favorável para o desenvolvimento capitalista.

Mas a diferença de valor das mercadorias vendidas entre os países não se dá por índices inflacionários simples de cada local. Nos países onde serão consumidas respeitam a lei do valor dessas mercadorias, na qual seu preço é definido a partir do tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção. Já o preço pago para as operárias para cada uma reflete o custo de vida e de reprodução dessas mercadorias, o mesmo cálculo feito para determinar os preços da força de trabalho.

Portanto, sim, existe exploração no empreendedorismo. Não porque os empresários sejam explorados, mas sim porque essa forma jurídica (e ideológica) foi ressignificada para expressar as contratações por salário por peça. Ou seja, o salário por tempo é fracionado para se expressar em cada peça produzida, dada a produtividade média daquela sociedade. Para uma melhor compreensão do salário por peça, recomendamos a leitura do capítulo 19 do primeiro livro do Capital. Já o debate sobre a lei do equilíbrio do mercado está presente em todo o livro 2.

Localização de Yunus na luta de classes

Com um discurso fortemente pautado pelas questões sociais, o mais comum é identificar Yunus como uma figura de esquerda. Porém, ser de esquerda não significa estar, necessariamente, do lado dos trabalhadores em todas as suas lutas. Pelo contrário, várias dessas lutas se deram contra ele e o grupo Grameen.

Em 2006, dezenas de milhares de trabalhadores se mobilizaram em um dos maiores movimentos grevistas do país, afetando quase todas as 4 000 fábricas. A Bangladesh Garment Manufacturers and Exporters Association (BGMEA) usou as forças policiais para reprimir, resultando em três trabalhadores mortos e mais centenas de feridos por balas ou presos. Em 2010, após um novo movimento de greve, quase mil pessoas foram feridas entre os trabalhadores como resultado da repressão.

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