A unidade da esquerda não se constrói nas urnas
Publicamos este artigo da Revista Crisis de 12 de agosto último. Crisis é uma revista digital que nasceu com o objetivo de apresentar uma nova referência de esquerda no Equador. Com esta publicação concretizamos uma colaboração entre os dois meios de comunicação, através do intercâmbio de artigos.
Nove meses após o início de um dos desastres mais catastróficos para a classe trabalhadora na própria representação da Banana Republic, a burguesia busca a reeleição do empresário mais rico do país. Com uma cortina de fumaça após outra, o governo que supostamente “resolve” – em consonância com a imagem mais misógina possível, o Presidente Noboa vangloriou-se publicamente dos seus “ovos de avestruz” – não resolve outra coisa senão como encher os bolsos à custa do público. Noboa, mais uma vez em campanha, volta à arena das promessas vazias, procurando aprofundar essa imagem distorcida do país no seu slogan do “Novo Equador”.
Parece que a classe parasitária está disposta a embarcar num precipício de radicalização do livre mercado, aprofundando as contradições de classe e levando tudo em seu caminho, se necessário. O negócio da lavagem de dinheiro, celebrado em ambientes fechados pelo empresariado, reflete-se nos carros de luxo que circulam pelas cidades do país – com valores entre 100 mil e 600 mil dólares, segundo a recentemente inaugurada casa de automóveis em Samborondón -, enquanto os mortos pela violência acumulam-se e decompõem-se em câmaras frigoríficas defeituosas em Guayaquil.
Neste contexto, a Ministra do Interior, Mónica Palencia, vangloriou-se de que “o mês de julho foi o mês menos violento do ano”. Em contrapartida, a realidade material contradiz permanentemente os números espúrios do governo: julho foi o segundo mês mais violento com 580 mortes violentas, depois de junho com 592. É mais do que evidente que o tão invocado Plano acabou por ser mais um dos truques de comunicação da Banana Repúblic. A classe política do Equador tem as mãos manchadas de sangue.
Neste sentido e ao contrário de uma suposta priorização do problema da insegurança, os relatórios indicam que até julho de 2024, o Governo Nacional utilizou apenas cerca de 2% do orçamento em segurança, demonstrando a sua falta de intenção de se concentrar num problema com o qual se nutrem e se beneficiam os grupos econômicos de poder.
Um governo burguês após o outro. A classe trabalhadora testemunha o desmantelamento sistemático do Estado, para beneficiar a fração de classe do governante no poder. Atualmente, esta seria formada por importadores, industriais, especuladores privados – ou “empresários” – de energia. No dia 4 de agosto passado chegou o primeiro barco de produção de eletricidade – tecnologia obsoleta, que partiu da Turquia semanas antes da suposta licitação -, coincidindo com a eliminação do Imposto sobre a Saída de Divisas (ISD) na importação de combustíveis. É inegável – como nos casos de Palo Quemado e Olón – que Noboa e sua facção de classe utilizam o Estado a torto e a direito, para acomodar suas empresas em serviços e setores do Estado, flexibilizando os marcos legais quando consideram necessário.
Da mesma forma, em 14 de novembro de 2023, expirou a concessão do Oleoduto de Petróleo Pesado (OCP), que é administrado de forma privada há duas décadas. O Estado deveria ter assumido o comando imediatamente, mas até o momento não houve nenhuma ação nesse sentido. Uma extensão adicional do contrato expirou em 31 de julho. No entanto, o Governo Nacional recusou-se a informar sobre a resolução do OCP, censurando também o conteúdo das negociações em curso e gerando prejuízos adicionais ao Estado equatoriano.
A Associação Nacional dos Trabalhadores das Empresas de Energia e Petróleo, ANTEP, denunciou que o campo de Sacha – bloco 60, um dos maiores em exploração a nível nacional – está sendo privatizado às custas do povo, o que custaria 500 milhões de dólares de receitas anuais ao Estado, que seria redistribuído do público para algumas mãos privadas. Este é o “Novo Equador” de Noboa, onde se realiza a mais sangrenta e encoberta privatização de um setor estratégico e fundamental: o setor energético.
Para enfrentar ao colossal e depravado capitalismo que se aprofunda fortemente no nosso país, como fica evidente não só em gráfico, mas em cada uma das experiências vitais do povo e da classe trabalhadora, de fato, é necessária a unidade da esquerda. Contudo, e mesmo tendo como pano de fundo o lamento da consciência socialdemocrata, deve necessariamente existir um programa mínimo, que deve constituir-se como uma premissa ideológica que funcione a favor, e apenas a favor, dos interesses da classe trabalhadora, na sua imensa diferença e desigualdade.
Uma verdadeira unidade da esquerda tem necessariamente de compreender que a história da humanidade é a história da luta de classes. Portanto, o projeto histórico da classe trabalhadora não pode de forma alguma ser entendido na posição contrarrevolucionária de conciliação; nem neste exato momento nem como estratégia. A dificuldade deste episódio histórico é que a esquerda não foi capaz de elevar suficientemente a luta ideológica contra o sentido comum capitalista. A grande maioria da classe trabalhadora e do povo não está preparada para imaginar a possibilidade de um mundo de justiça e dignidade, livre de classes sociais.
Uma das razões para isto é que na realidade não existe uma compreensão coletiva da proposta marxista como um projeto político. Mesmo entre os militantes de esquerda, não é possível compreender que o estatismo/neokeynesianismo é um projeto capitalista impossível de “radicalizar” em direção à esquerda. Portanto, o programa mínimo que orientaria a unidade da esquerda deve necessariamente reconhecer a luta de classes como a força motriz da história e fazê-la ser compreendida pela imensa massa popular. Resta ver a intensidade e a responsabilidade do trabalho militante que isto exige.
A unidade da esquerda requer um ato de consciência elevado, mais elevado do que o que agora poderia ser expresso. Acima de tudo, para que a oportunidade de construir realmente uma unidade da esquerda não catapulte a lógica do capitalismo na sua versão progressista. Como povo, como classe trabalhadora, merecemos mais. Nós merecemos tudo. No futuro a médio prazo, talvez, quando o conflito ideológico estiver mais maduro, poderiam ser alcançados acordos bastante limitados com esse setor da socialdemocracia, mas agora não é o momento, simplesmente porque a consigna antineoliberal é insuficiente para resolver as muitos necessidades e demandas da classe trabalhadora.
A primeira tarefa é trabalhar a consciência de classe das massas. Como? Organização popular em cada bairro, local de trabalho e centro de estudos. Organizar não é um artifício retórico, mas uma consigna. Sem uma consciência de classe que sirva de alicerce aos sectores populares, nunca conseguiremos dar o salto da emergência para a luta pela dignidade e pela justiça, com uma massa operária, camponesa, de mulheres e dissidentes, de estudantes e jovens que se reconheçam como classe trabalhadora.
Outro elemento fundamental do programa mínimo de unidade da esquerda é necessariamente a bandeira do antiextrativismo. Primeiro, denunciando o extrativismo como um projeto imperialista, e não como a vontade das pessoas que habitam este Estado-território. O projeto político da classe trabalhadora suplanta as lutas pela soberania alimentar, pelo direito à autonomia dos povos e das nacionalidades e, em última análise, coloca a vida, acima da acumulação privada e o capital. A luta antiextrativista condensa todas as reivindicações: é anticolonial, antipatriarcal, antirracista, anticapitalista, antiespecista e, sobretudo, na luta antiextrativista está consagrada a possibilidade de autodeterminação.
A unidade da esquerda é definitivamente urgente, mas não passa pelas urnas. Nestes próximos anos, é responsabilidade de cada marxista e de cada organização construir um programa militante implacável, com esperança e alegria. Vemo-nos no futuro.