Os debates sobre a Venezuela
Após as eleições presidenciais de 28 de julho, a situação venezuelana é um dos centros de atenção da imprensa mundial. Nicolás Maduro declarou-se vencedor contra Edmundo González, candidato da oposição burguesa de direita, depois de uma evidente fraude em que o regime nem sequer conseguiu tornar públicas as atas das mesas de votação.
Por: Alejandro Iturbe
A partir do dia seguinte, “a juventude e a população dos bairros populares venezuelanos foram às ruas de Caracas e de diversas cidades do país, para mostrar a sua indignação pela fraude nas eleições presidenciais que mantém o ditador Nicolás Maduro no governo. A resposta da ditadura foi uma repressão brutal contra jovens os desarmados: até agora houve 11 mortos, dezenas de feridos, vários desaparecidos e uma centena de presos.[1]
Diante desta situação, os trabalhadores de todo o mundo são bombardeados por diferentes análises e posicionamentos através da mídia. Duas destas posições parecem nitidamente opostas e polarizam o debate. Uma delas é apresentada por vários governos burgueses latino-americanos (especialmente os de direita e extrema direita, como o de Javier Milei na Argentina) e vários governos de potências imperialistas.
De acordo com esta posição, o que está acontecendo hoje na Venezuela (tanto a fraude eleitoral como a ausência de liberdades democráticas e a deterioração da situação econômico-social das massas que levou milhões de venezuelanos a emigrar para outros países) é o resultado de que no país existe uma “ditadura socialista” no país desde que Hugo Chávez assumiu o poder no final do século XX. Ou seja, o “socialismo” seria a fonte de todos os males na Venezuela.
No outro polo, há quem afirme que, na Venezuela, o processo liderado por Hugo Chávez e continuado por Nicolás Maduro é revolucionário e de conteúdo socialista. Então, o que vemos hoje na Venezuela é a defesa da “revolução bolivariana” contra aqueles que querem liquidá-la. É a posição expressa pelo presidente cubano Miguel Díaz-Canel, um dos mais fortes apoiantes internacionais de Nicolás Maduro.[2]
Embora possa parecer contraditório, ambas as posições têm uma base comum: a Venezuela é “socialista”. Para a direita burguesa, esta é a fonte de todo o mal. Para a posição de Díaz-Canel é o que deve ser defendido a qualquer custo.
A Venezuela de Chávez
Vamos começar esse debate. Desde o início do regime chavista, a LIT-QI sustentou que o processo liderado por Hugo Chávez não tinha nada de socialista nem qualquer intenção de avançar nessa direção. Fizemo-lo mesmo no período de maior prestígio do chavismo e quando grande parte da esquerda mundial aderia à sua proposta do Socialismo do Século XXI. Pelo contrário, sustentámos que se tratava do acesso ao poder de um setor da direção das Forças Armadas burguesas que aspirava reter no país uma maior parcela das receitas do petróleo (principal fonte de recursos) mas sem mudar nada sobre a estrutura do país como capitalista dependente do imperialismo ianque[3].
Durante vários anos, bilhões de dólares entraram na Venezuela provenientes das exportações de petróleo. Graças a esse dinheiro, os quadros chavistas (especialmente os altos comandantes militares) acumularam grandes fortunas e transformaram-se na chamada “boliburguesia”. Seu expoente mais conhecido é Diosdao Cabello, dono do segundo grupo empresarial do país, com bancos, indústrias e empresas de serviços na Venezuela e também com inúmeras propriedades no exterior.
O chavismo também não combateu seriamente a velha burguesia venezuelana. Depois que a mesma tentou derrubá-lo com o golpe de 2002 e o bloqueio patronal de 2003 (derrotado pela ação dos trabalhadores e das massas), fez um grande acordo com o grupo empresarial Polar-Mendoza (o maior do país).
Finalmente, o seu proclamado anti-imperialismo foi mais em palavras do que em atos. Pagou meticulosamente a dívida externa do país (por vezes antecipadamente) e entregou grandes áreas de exploração petrolífera a multinacionais, como a estadunidense Exxon. Finalmente, em 2016, com maduro, o governo anunciou o plano Arco Mineiro do Orinoco, que entregou às multinacionais 12% do território do país, rico em ouro, diamantes, ferro e outros minerais, além de petróleo (neste caso, além de Empresas ianques e canadenses, empresas chinesas também entraram no negócio).
No caso do chamado Cinturão Petrolífero do Orinoco (FPO, por suas siglas em espanhol), a entrada de capital chinês se deu por meio de sociedades mistas, formadas por empresas chinesas e PDVSA, que passaram a realizar atividades de prospecção e aproveitamento de hidrocarbonetos. A empresa chinesa National Petroleum Corporation (CNPC), por exemplo, explorou o Bloco Junín 4 e o Bloco Junín 10; através da empresa mista Petrourica. Adicionalmente, a CNPC, em 2008, estabeleceu juntamente com a PDVSA, a empresa Petrosinovensa, para realizar atividades de exploração e produção na área de Carabobo. Em 2013, a SINOPEC fez acordo com a PDVSA para investir na exploração do campo petrolífero Junín 1 por 14 bilhões de dólares. Outra empresa com investimentos nessa região é a China National Offshore Oil Corporation (CNOOC)
As poucas nacionalizações ocorridas, como a da companhia telefônica CANTV, em 2008, foram realizadas com um método capitalista normal: comprando suas ações pelo valor de mercado.
A bonança do petróleo permitiu a Chávez destinar uma parte dos rendimentos que restavam no país para fazer algumas concessões às massas, especialmente através das chamadas Missões com serviços médicos, educação e ajuda alimentar. Significavam um benefício para as massas, mas não têm nada a ver com “socialismo”. São “políticas compensatórias” que são aplicadas em muitos países capitalistas. Por exemplo, no Brasil com o Bolsa Família. Mas foram estas políticas que deram ao chavismo uma base social de massas e, durante vários anos, uma grande maioria eleitoral.
Ao mesmo tempo, a situação salarial e as condições de trabalho dos trabalhadores permaneceram as mesmas de antes do chavismo. O regime construiu e integrou em seu interior uma estrutura sindical burocrática com férreo controle das massas. Quando havia lutas operárias importantes, elas eram duramente reprimidas, como aconteceu com os trabalhadores de Sanitários Maracay em 2007.
A bonança acabou para maduro
Em 2013, quando Nicolás Maduro sucedeu a Hugo Chávez, a “bonança do petróleo” tinha terminado e a entrada de dólares no país diminuía cada vez mais. Neste contexto, o chavismo agiu como todos os regimes burgueses: com ataques cada vez mais duros aos padrões de vida das massas. As Missões foram enfraquecidas ao extremo ou desapareceram, os salários dos trabalhadores venezuelanos tornaram-se os mais baixos do mundo e a pobreza, a miséria e a fome cresceram permanentemente.
A expressão mais aguda desta terrível situação das massas foi que mais de 7.000.000 de venezuelanos tiveram que emigrar (especialmente para trabalhar em outros países latino-americanos) para sobreviver e/ou ajudar as suas famílias que permaneceram no país[4] (uma quantidade que noutros países só ocorreu em situações de guerra ou de terríveis catástrofes naturais).
Por seu lado, a boliburguesia e os altos quadros chavistas exibiam escandalosamente a sua riqueza com carros importados, residências luxuosas, viagens de lazer ao estrangeiro e propriedades noutros países, como vimos com Diosdado Cabello.
Ao mesmo tempo, aprofundou-se a entrega do país. Por um lado, com o Arco do Orinoco e na FPO, a que já nos referimos. Por outro lado, começando a privatizar as poucas empresas estrangeiras que tinha nacionalizado.[5]
O chavismo tinha perdido qualquer traço progressista que pudesse ter tido no seu apogeu, os trabalhadores e as massas romperam com ele em massa, começaram a odiá-lo e a lutar contra maduro, com toda a justiça. A sua base de apoio popular foi reduzida ao extremo.
Então, teve que recorrer a uma repressão muito dura contra as massas (das Forças Armadas ou de gangues armadas) e a fraudes eleitorais cada vez mais evidentes para se manter no poder. Por isso, como expressa a declaração da UST (seção venezuelana da LIT-CI): “Somos categóricos em afirmar que o governo de Nicolás Maduro é uma ditadura capitalista, corrupta, faminta e repressiva…”. Para nós que defendemos os interesses da classe trabalhadora, não há outra forma de caracterizar o regime chavista hoje.
Um crime político
Esta dura realidade é o que explica porque a velha burguesia venezuelana e as suas expressões políticas, que em 2002-2003 estavam totalmente derrotadas e odiadas pelas massas, conseguiram recuperar a sua influência popular e, infelizmente, hoje aparecem como a única alternativa possível para derrotar o regime chavista. É o próprio chavismo o principal responsável por isso.
Aqui é necessário acrescentar outro fator: nos melhores anos do chavismo, a grande maioria das organizações de esquerda venezuelanas “comprou” a falsa narrativa do socialismo do século XXI, integrou-se no aparelho político do PSUV ou o apoiou acriticamente. Também se alinhou a favor do chavismo, uma parte importante da esquerda internacional. Desta forma, impediram que se construísse na Venezuela uma organização política verdadeiramente revolucionária e socialista que pudesse se apresentar como uma alternativa para os trabalhadores e as massas que começavam a romper com o chavismo.
Se nos tempos da ascensão do chavismo esta política estava errada, continuar a defendê-la agora com Nicolás Maduro, e identificá-lo como “socialista”, é um grave crime político. Porque qualquer trabalhador que olhe para a realidade venezuelana diz: “se isto é socialismo, não é o que eu quero. Eu prefiro o capitalismo que também tem fome, mas pelo menos dá alguma democracia.”
É um crime político que suja a verdadeira proposta socialista e revolucionária aos olhos dos trabalhadores e das massas, e os empurra para os braços do imperialismo, da direita burguesa e até da extrema direita, como Bolsonaro ou Milei, que, juntamente com o seu discurso contra o “socialismo” e o “comunismo” têm o luxo de se apresentarem hipocritamente como “democráticos” face à ditadura chavista.
Algumas considerações finais
A realidade venezuelana com Maduro é tão desagradável que algumas figuras muito influentes na política latino-americana, como o brasileiro Lula ou a argentina Cristina Kirchner, que anteriormente defendia o chavismo e Nicolás Maduro, agora se distanciaram e pedem “transparência eleitoral”[6]. Ao mesmo tempo, este distanciamento aproxima a posição destes líderes da posição do imperialismo ianque e europeu.
A LIT-QI também propõe que na Venezuela devemos lutar por eleições verdadeiramente democráticas. Mas, ao mesmo tempo, afirmamos que para alcançá-las, “é necessário unificar, aprofundar e fortalecer de forma independente as mobilizações até que a ditadura seja derrotada” e que, portanto, “é pertinente discutir democraticamente, nos setores populares e nos centros de trabalho as ações a serem tomadas para continuar o processo de enfrentamento à ditadura, manter as mobilizações de rua e construir uma greve geral para derrubar a ditadura”.
É precisamente isso que a oposição burguesa venezuelana, o imperialismo ianque e europeu, o Papa e figuras como Lula ou Cristina Kirchner mais querem evitar. Ou seja, evitar a todo custo que a saída de Maduro e o fim da ditadura chavista sejam resultado da ação revolucionária das massas.
Aspiram que qualquer transição seja realizada através de uma saída negociada com o regime ou, em qualquer caso, através de uma fratura da FFFA e de um golpe de Estado. Nicolás Maduro já negou qualquer possibilidade de negociação e, ao mesmo tempo, a liderança das Forças Armadas continua firmemente a ser uma parte central do regime, na defesa dos seus negócios e do seu enriquecimento.
A ação revolucionária dos trabalhadores e das massas é a única forma possível de se livrar da ditadura chavista. Não acreditamos que isto possa ser alcançado através de uma “via eleitoral”. Nem através de negociações com a ditadura chavista ou com o imperialismo ianque. Propomos a mobilização independente das massas, por fora do quadro da oposição burguesa de direita. A LIT-QI e a sua secção venezuelana promovem a mais ampla unidade de ação com todos aqueles que partilham esta proposta de luta contra a ditadura.
Ao mesmo tempo, no marco desta luta comum, consideramos necessário fazer uma avaliação global de todo o processo chavista e de como o seu carácter burguês conduziu, desde o seu início, a este presente de ditadura capitalista. A luta contra a ditadura deve fazer parte do caminho na estratégia de uma verdadeira revolução socialista. Portanto, nesse caminho, é necessário avançar na construção de uma organização revolucionária de trabalhadores disposta a levá-lo até o fim.
[1] Não à fraude eleitoral! Abaixo a ditadura de Maduro, todo apoio às mobilizações – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)
[2] Díaz-Canel da su “invariable apoyo” a la revolución en Venezuela (efe.com)
[3] Ver, por exemplo, a seleção de materiais do livro “Venezuela depois de Chávez: um balanço necessário” publicado pela Editora Sundermann (Brasil, 2015) e a revista Correio Internacional nº 18 (2017) em https://litci.org/ pt/correio-internacional-18-maduro/
[4] https://www.acnur.org/emergencias/situacion-de-venezuela#:~:text=M%C3%A1s%20de%207%2C7%20millones,Am%C3%A9rica%20Latina%20y%20el%20Caribe.
[5] Gobierno de Maduro avanza en el proceso de reprivatización y entrega de los recursos del país – Liga Internacional de los Trabajadores (litci.org)
[6] La división de la izquierda latinoamericana tras las elecciones de Venezuela: ¿quién reconoce a Maduro como ganador y quién no? (cnn.com)