Sobre a situação atual do Chile e as tarefas das e dos trabalhadores/as
Na última edição de A Voz dos Trabalhadores começamos a publicar alguns artigos especiais para responder às perguntas: Por que o Chile não muda? O que precisa ser feito para mudar isso? Partimos de uma análise do poder das 10 famílias mais ricas do país e de algumas empresas transnacionais (mineração, AFPs, bancos), que controlam toda a economia, se beneficiando do capitalismo neoliberal que exporta matérias-primas e produtos de baixo valor agregado. Nesta edição, queremos continuar com essa série de artigos, explicando os mecanismos que estas famílias utilizam para dominar o Estado (poder político) e o papel dos principais partidos do regime como “funcionários” destas famílias. Sem compreender isso, é impossível compreender porque é que os governos vão e vêm, de esquerda e da direita, e nada muda.
Por: Movimento Internacional dos Trabalhadores (MIT) – Chile
Desde 2006, o Chile tem vivido fortes mobilizações sociais (com anos de altos e baixos da luta). A partir da “rebelião dos pinguins”, ficou evidente que o capitalismo chileno estava entrando em crise. Os estudantes foram os primeiros a sair, contra a privatização da educação. Diferentes setores de trabalhadores juntaram-se aos estudantes, cansados dos abusos e da falta de direitos (subcontratantes do cobre a partir de 2007, florestais, trabalhadores portuários, etc.). Várias regiões também foram palco de rebeliões, como Aysén, Punta Arenas e Freirina. Posteriormente, o movimento feminista explodiu, questionando o machismo nas escolas, universidades, ambientes de trabalho e ruas. Soma-se a isso o movimento NO + AFP, com manifestações de mais de 1 milhão de pessoas em todo o país. Por sua vez, os Mapuche reforçaram a sua luta pela recuperação das terras e pelos seus direitos nacionais. Embora algumas destas lutas tenham alcançado vitórias parciais, o capitalismo selvagem chileno continuou a aprofundar-se em todas as áreas da vida.
Mais de uma década de lutas sustentadas culminou na chamada “explosão social”, uma explosão de enormes proporções, que caracterizamos como uma revolução, pelas suas reivindicações, pela sua massividade e pela violência das massas. A revolução chilena de 2019 abalou o regime político. Para salvar a democracia burguesa e o modelo econômico, os partidos do regime uniram-se e fizeram um grande acordo nacional, o Acordo de Paz de 15 de novembro. O Partido Comunista, embora não o tenha assinado, o reconheceu, orientando suas bases a abandonar a luta pela queda de Piñera e priorizar a luta dentro da nova institucionalidade que vinha surgindo, a Assembleia Constituinte [AC].
Na AC, os partidos ditos “antineoliberais” e também os constituintes independentes (Lista Popular e Movimentos Sociais), começaram a redigir uma nova Constituição juntamente com os partidos burgueses, como o Partido Socialista, um dos pilares do capitalismo chileno nas últimas 3 décadas. O resultado dessa Convenção foi uma nova Constituição que reconheceu alguns direitos sociais no papel, mas que não tocou o centro do capitalismo neoliberal: a propriedade privada de grandes grupos econômicos e o Estado burguês. A par disso, os partidos “antineoliberais” conseguiram chegar ao governo, com a Frente Ampla à frente, seguida do PS e do PC. As suas primeiras medidas demonstraram a uma grande parte da classe trabalhadora que seriam apenas mais um governo, muito semelhante à antiga Concertación. Assim, nem o resultado da Assembleia Constituinte nem o governo de Boric conseguiram convencer o povo de que a nova Constituição mudaria o país. A direita aproveitou este cenário, apoiando-se nos sentimentos mais retrógrados de um setor dos trabalhadores para realizar uma enorme campanha contra a nova Constituição.
A vitória da “Rejeição” levou à desmoralização muitos dirigentes operários, estudantis e populares. Muitos pensaram que tudo estava perdido, que não havia o que fazer. A partir disso, os partidos do regime concordaram em realizar um novo processo constituinte. O Partido Comunista integrou-se totalmente no novo acordo. O novo processo constituinte, liderado principalmente pela direita, também foi um fracasso. Mais uma vez a maioria da população rejeitou a proposta constitucional apresentada. O regime, vacilante, sobreviveu, com a sua Constituição de 1980, atualizada em democracia.
Ao mesmo tempo, o governo de Boric provou ser um governo totalmente pró empresarial, como já prevíamos antes da sua vitória. Boric ficará para a história por ter aprovado um dos mais infames Acordos de Livre Comércio das últimas décadas, o TPP11(1), que é um verdadeiro ataque à soberania nacional. Além disso, será responsável por manter a entrega de lítio a grandes empresários corruptos, como Ponce Lerou da SQM.
Por privilegiar a “governabilidade” para os donos do país, Boric não conseguiu resolver nem um dos grandes problemas sociais. Assim, a sua resposta às novas e antigas exigências populares tem sido aumentar a repressão e criminalizar as leis. Boric chegou a tal ponto ao adotar o programa “de direita” que hoje os partidos de direita têm grande dificuldade em se diferenciar do governo. Os grandes empresários e os seus partidos aprenderam, com a revolução, que têm que fortalecer o aparato repressivo para enfrentar um novo ascenso das massas que sem dúvida virá, mais cedo ou mais tarde.
Nova situação, velhos problemas
Os problemas sociais que deram origem à “explosão social” continuam e alguns, após a pandemia, aprofundaram-se. Isto gerou, nos últimos meses, diferentes lutas sociais: operários de Huachipato, estivadores de diferentes regiões, estudantes do ensino médio, professores de Antofagasta, funcionários/as da saúde, etc. O genocídio palestino também provocou uma mobilização significativa entre a juventude. Voltamos a uma dinâmica semelhante à anterior a 2019, onde as fissuras do capitalismo chileno se expressam mais uma vez.
Devido aos ataques do governo de Boric e ao fortalecimento da direita, muitos companheiros/as acreditam que estamos numa situação reacionária ou numa “onda conservadora”. Não acreditamos que isso seja correto. Hoje há lutas em diversas frentes devido às reais condições de vida da população. Muitos ativistas que ficaram desmoralizados após a vitória da “Rejeição” voltam a retomar a dianteira da luta e outros novos ativistas estão surgindo. Por outro lado, embora o governo tenha aprovado medidas mais duras contra os movimentos sociais, estas ainda não se materializaram em perseguições sistemáticas contra aqueles que lutam, com exceção dos dirigentes Mapuche autonomistas, como Héctor Llaitul. O governo Boric mistura repressão com tentativas de cooptação (mesas de negociação, promessas, cooptação de dirigentes sociais para cargos governamentais, etc.).
Hoje estamos numa situação nova. A revolução de 2019 foi desviada, mas o regime político só conseguiu uma relativa estabilidade, incorporando a Frente Ampla e o Partido Comunista na direção do Estado, para que ajudem a burguesia a controlar os movimentos de massas. Contudo, as lutas sociais reaparecem, devido aos problemas que permanecem vigentes. Surgem novos partidos de esquerda: Partido Popular, Partido Solidariedade para Chile e outros. No entanto, nenhum deles faz uma avaliação profunda da revolução chilena e tende a seguir os mesmos passos do Partido Comunista e da Frente Ampla, buscando alcançar reformas no interior da democracia burguesa chilena, cada vez mais restritiva devido ao peso dos grandes monopólios. Alguns partidos que se apresentam como revolucionários estão cada vez mais tomando como centro o caminho da disputa institucional, como o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PTR).
Do MIT apontamos em outra direção. Estamos convencidos de que mais cedo ou mais tarde surgirão novamente mobilizações de massas e que os revolucionários devem preparar-se para isso. O que as últimas duas décadas de luta nos ensinaram é que é impossível conseguir mudanças sociais profundas neste regime político fazendo acordos com o grande capital e os seus partidos. Nossa tarefa é construir um movimento independente da classe trabalhadora, a partir do local de trabalho e a partir dos interesses imediatos de cada setor, mas com o objetivo de unificar todas as lutas num programa de transformação social. Este programa deve atender às reivindicações históricas do movimento social chileno, como o fim das AFPs, a educação e a saúde públicas gratuitas, o direito à moradia digna, a devolução das terras Mapuche, o fim da subcontratação, etc., conectando-o com a luta pela recuperação de todas as riquezas do país, com a nacionalização do cobre, do lítio e a nacionalização das terras e das grandes empresas portuárias e siderúrgicas, etc., tudo sob o controle dos trabalhadores.
A luta por esta transformação social só pode ocorrer através das organizações da classe trabalhadora e do povo, com o objetivo de fazer uma revolução social que destrua este regime político e o Estado burguês, colocando o poder nas mãos da classe trabalhadora organizada. Para fazer isso, é necessário remover as organizações operárias e populares das suas lideranças tradicionais e burocráticas. Devemos fazer uma verdadeira revolução nos sindicatos para que deixem de ser braços das empresas e passem a discutir os interesses imediatos e históricos da classe trabalhadora com democracia e mobilização tomando como exemplo a CUT de Clotário Blest de 1953 e a longa experiência dos Recabarren no movimento sindical. A fragmentação sindical é outro grande problema, tanto para a luta imediata como para a luta a longo prazo, uma vez que enfraquece a nossa classe. Também entre estudantes e população pobre devemos procurar unificar as lutas, encontrando pontos comuns que possam mobilizar. A experiência das Assembleias territoriais surgidas durante a revolução e também da articulação de sindicatos e organizações populares através de espaços como a Mesa de Unidade Social (que naquele momento era dirigida por uma direção traidora) deveria servir de guia para as próximas lutas.
Para levar este programa aos sindicatos, associações de bairro e organizações sociais, devemos construir um partido revolucionário da classe trabalhadora, que supere as tradicionais e novas direções reformistas, como o Partido Comunista, a Frente Ampla e suas novas caricaturas. Sem a existência desse partido, veremos como novas explosões sociais terminarão como em 2019, sem grandes mudanças, com direções traidoras e pró-empresariais.
Editorial da 33ª edição de A Voz dos Trabalhadores
- Tratado Integral e Progressivo de Parceria Transpacífico. O TPP11 envolve Austrália, Brunei Darussalam, Canadá, Malásia, México, Japão, Nova Zelândia, Peru, Singapura, Vietname e Chile. É o terceiro maior Acordo de Comércio Livre do mundo, depois do CETA (entre o Canadá e a UE) e do USMCA (Canadá, Estados Unidos e México). ↩︎