EUA: Biden sai, Harris assume
Em um anúncio surpreendente no domingo 21 de julho, Joe Biden abandonou a corrida presidencial dos Estados Unidos a poucas semanas da convenção democrata. Com seu anúncio, Biden respaldou a vice-presidente Kamala Harris para a nomeação democrata. Em poucos dias, uma legião de políticos do Partido Democrata apoiou Harris, inclusive antigos incondicionais do partido como Bill e Hillary Clinton, embora o ex-presidente Obama tenha se mantido à margem, pelo menos temporariamente. Se for eleita, Harris, filha de pai jamaicano e mãe indiana, será a primeira mulher presidente.
Por: John Leslie
Harris, a promotora
Pelas suas declarações iniciais, parece que a campanha de Harris colocará em primeiro plano um chamado aos eleitores para “salvar a democracia estadunidense” derrotando Donald Trump nas urnas. Com certeza, este grito de guerra ignora o fato de que a incapacidade dos democratas para abordar seriamente os problemas sociais que afetam os trabalhadores – e sua franca traição em questões chave, como quando Obama deu marcha a ré na assistência médica acessível – abriu a porta para que Trump e seu movimento reacionário ganhassem audiência.
A plataforma de Harris enfrenta diretamente a postura populista de Trump com a afirmação de que está a favor de “Primeiro o povo”. Assim, Harris prometeu restabelecer a subsistência da “classe média” e sublinhou que apoia os problemas das “pessoas comuns”, como os direitos reprodutivos, a assistência médica acessível, a licença familiar remunerada e um maior acesso às creches. Ao mesmo tempo, Harris apresenta, como Trump, uma mensagem de “lei e ordem”, deixando evidente que está a favor da polícia e lembrando que costumava ser (e continua sendo) uma dura promotora.
Harris, que em 2016 ganhou a vaga no Senado dos Estados Unidos pela Califórnia, que outrora fora ocupada por Barbara Boxer, começou sua carreira política como uma promotora das chamadas “progressistas”. Mas, quando foi promotora do distrito de San Francisco, a “taxa de condenações por delitos graves aumentou de 52% para 67% em três anos”. Mais tarde, foi eleita promotora geral da Califórnia.
A professora de Direito Lara Bazelon escreveu: “Várias vezes, quando os progressistas a instaram a adotar reformas da justiça penal como promotora de distrito e depois como promotora geral do Estado, a Sra.Harris se opôs a elas ou permaneceu em silêncio…O mais preocupante é que a Sra.Harris lutou duramente para manter as condenações injustas que foram obtidas através de uma má conduta oficial que incluíam a manipulação de provas, falsos testemunhos e a supressão de informação crucial por parte dos promotores”.
Como procuradora geral, Harris se opôs a uma medida para reformar a severa lei californiana dos três strikes e apoiou uma versão estatal de uma lei contra o absentismo que ela havia iniciado em San Francisco. A lei, apresentada por um democrata e assinada pelo governador Arnold Schwarzenegger, penalizava os pais de crianças com absentismo escolar crônico com uma multa máxima de 2.000 dólares e até um ano de prisão.
Em seu discurso inaugural como promotora geral da Califórnia, Harris disse: “Dessa forma, estamos avisando os pais. Se falharem em sua responsabilidade com seus filhos, vamos trabalhar para nos assegurar de que vocês enfrentem toda a força e as consequências da lei”. Com certeza, esta lei se dirigiu desproporcionalmente às famílias negras e pardas da classe trabalhadora.
O genocida Joe está fora
A retirada de Biden da corrida ocorreu após a crescente pressão de seus companheiros democratas e dos principais jornais, que pediram a Biden que abandonasse após seu desastroso debate contra Trump. O debate revelou o que muitos suspeitavam: que as capacidades cognitivas de Biden haviam piorado. Após o debate, Biden lutou para superar as crescentes preocupações sobre sua idade e sua aptidão para o cargo. Alguns políticos de ambos os partidos capitalistas debateram abertamente a possibilidade de destituir Biden da Casa Branca invocando a 25ª Emenda.
A eleição de Biden como porta-estandarte democrata em 2020 refletiu a incapacidade do partido em arriscar-se a qualquer associação com um candidato como Bernie Sanders que, em sua campanha, despertou as expectativas dos eleitores jovens desejosos de reformas. Para sermos nítidos, Sanders foi partidário do imperialismo estadunidense e de Israel, e serviu ao propósito de atrair pessoas com opiniões críticas ao sistema para os braços de um dos dois partidos do capital. Não havia nenhum perigo real para o capitalismo na campanha de Sanders, mas a ideia de um autodenominado “socialista” obter a nomeação democrata assustou de morte o Comitê Nacional Democrata e os ricos patrocinadores do partido. Da mesma forma, o DNC sabotou a campanha de Sanders em 2016 para coroar Hillary Clinton como candidata do partido.
Em última instância, Trump foi derrotado não porque Biden fosse uma alternativa atraente, mas porque a maioria dos eleitores odeiam Trump e o trumpismo.
Biden no cargo
Sob a administração Biden, as deportações aumentaram exponencialmente, assim como o número de imigrantes que cruzam as fronteiras. Segundo o Escritório de Estatísticas de Segurança Nacional, mais de 6 milhões de pessoas tentaram cruzar a fronteira sul dos Estados Unidos desde janeiro de 2021, e Biden expulsou ou deportou mais de 4 milhões delas.
Pouco depois de assumir o cargo, Biden preservou os regulamentos do Título 42 da era Trump que, em meio à pandemia, permitiram a Trump aumentar severamente as deportações.
Embora a administração atual tenha posto um fim ao Título 42 em maio de 2023, Biden passou os primeiros dois anos e meio de sua administração usando a política para expulsar mais de cinco vezes o número de imigrantes que Trump.
O histórico de Biden sobre a mudança climática é vergonhoso. Embora tenha falado da ameaça iminente da crise ambiental, as medidas adotadas pela sua administração são completamente insuficientes para fazer frente à crise, enquanto que seus esforços em aumentar a produção de petróleo e gás dos Estados Unidos piorarão as coisas. Biden também vendeu os trabalhadores ferroviários, mostrou-se incapaz de enfrentar a inflação que devora os salários dos trabalhadores, e financiou e apoiou abertamente o genocídio israelense em Gaza.
“Não foi o debate falido de Biden o que demonstrou que não está capacitado para dirigir. Foram as dezenas de milhares de bombas que enviou para matar as famílias palestinas”, afirmou a Campanha Estadunidense de Ação pelos Direitos dos Palestinos. “Foi seu desprezo insensível e distópico pelas vidas palestinas, enquanto tomava um sorvete falava sobre um possível cessar-fogo que não fez nada para que Israel aceitasse. Foi sua condenação pelos milhares de estudantes que protestavam nos campus universitários exigindo o fim do genocídio em Gaza”.
Embora alguns poderiam ter a tentação de identificar a saída de Biden como uma vitória do movimento de solidariedade com a Palestina, há poucas provas que apoiem esta opinião. O fim da candidatura de Biden só ocorreu após a pressão da coluna vertebral do partido mais hostil à Palestina: Nancy Pelosi, James Cargill e o The New York Times, entre outros. Nesse meio tempo, os políticos que supostamente mais simpatizam com a Palestina, como Alexandria Ocasio-Cortes e outros membros do Esquadrão, continuaram defendendo Biden até a sua renúncia.
Harris, por sua vez, sempre se retratou como uma firme defensora de Israel. A primeira resolução que copatrocinou, como senadora estadunidense estava destinada a combater o suposto “preconceito anti-israelense” nas Nações Unidas. Enquanto se dirigia à conferência anual do Comitê Americano-Israelense de Assuntos Públicos (AIPAC) em 2017, disse: “Estou com Israel pelos nossos valores compartilhados, que são tão fundamentais para a fundação de nossas duas nações”.
Após o ataque do Hamas em 7 de outubro, Harris disse aos jornalistas que apoiava uma resposta armada israelense: “Hamas é uma organização terrorista brutal. Hamas jurou repetir o 7 de outubro até que Israel seja aniquilado. Nenhuma nação poderia viver com semelhante perigo, por isso, apoiamos os objetivos militares legítimos de Israel para eliminar a ameaça do Hamas”.
Embora Harris talvez seja um pouco mais sensível que Biden na hora de entender a imagem pública de Israel a nível internacional, no fundo não há razão para esperar mudanças políticas significativas da pessoa que exerceu como vice no comando dos Estados Unidos durante todo o genocídio até hoje.
Em última instância, o Estado de Israel serve como baluarte do imperialismo estadunidense na região e em todo o mundo. Este status “especial” anula as preocupações humanitárias aos olhos da classe dominante estadunidense e dos políticos que a servem.
O cemitério dos movimentos sociais
Os socialistas entendem o não tão democrático Partido Democrata como um obstáculo para a mudança social fundamental. Como partido capitalista, os democratas são especialistas em domesticar os movimentos sociais mediante a cooptação das direções dos movimentos. Isso fica especialmente evidente quando se observa a forma como a burocracia sindical subordina sistematicamente os interesses da classe operária às ambições eleitorais dos democratas. Repetidamente, os democratas fracassaram na hora de promulgar reformas da legislação trabalhista, um salário mínimo mais alto ou a saúde universal.
A submissão dos movimentos ao Partido Democrata se reflete na forma como os principais grupos pelos direitos das mulheres, as organizações das nacionalidades oprimidas e as pessoas LGBTQ+ atuam como mecanismos de arrecadação de fundos e defesa da eleição dos democratas, enquanto evitam a luta de massas nas ruas. Certamente, após a decisão de Dobbs que anulou o caso Roe contra Wade, os grupos feministas burgueses optaram por concentrarem-se no eleitoralismo ao invés de recorrer à mobilização de massas.
Os socialistas entendem que o Partido Democrata não é um campo de luta para os oprimidos e explorados. Pelo contrário, é o cemitério dos movimentos sociais progressistas. Também entendemos que não existe uma via eleitoral ao socialismo. Derrotar o capitalismo e substituí-lo por um novo sistema social e político só será possível através das lutas de massas de milhões de pessoas que lutam pelos seus próprios interesses.
Peter Camejo, candidato presidencial do Partido Socialista dos Trabalhadores em 1976, o expressou assim: “Não existe uma democracia real no sentido de dirigir o país. As eleições são totalmente falsas. A classe dominante simplesmente se levanta e elege duas pessoas, ou três, e dizem: “Muito bem, pessoal, teremos eleições. Agora podem votar em Humphrey, ou em Wallace, ou em Nixon”. (Ou em Trump ou em Harris.)
“Então fazem seus candidatos debaterem. Mas o debate não é de todo falso. O debate representa frequentemente uma verdadeira luta viva entre diferentes posições dentro da classe dominante. A classe dominante resolve muitas das pequenas diferenças táticas que têm entre si por meio das eleições”.
“Obviamente, essas eleições não significam de modo algum que o povo tenha voz na hora de governar este país. Ao mesmo tempo, as massas acreditam na democracia. E esta crença na democracia é algo que na realidade debilita os governantes. E é algo que nos dá poder real”.
Independentemente de quem ganhe as eleições, o caminho a seguir exigirá lutar contra a opressão e a exploração, e por um mundo melhor. Ganhar esta luta significará travar uma luta combinada por uma direção de classe nos sindicatos, pela ação de massas dos movimentos sociais democráticos e por uma ampla campanha pela defesa dos direitos democráticos. Fazer avançar as lutas dos oprimidos e da classe operária também significa que nós trabalhadores precisamos do nosso próprio partido. Um partido assim não seria um partido puramente eleitoral, mas um que dirija as lutas todos os dias do ano nas ruas, nos sindicatos e em cada bairro pelos interesses dos oprimidos e explorados.
Tradução: Lílian Enck