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100 anos sem Lênin

O congresso de 1903 e o racha entre bolcheviques e mencheviques

julho 12, 2024

Chegando aqui, no episódio 8, entre 1902 e 1903, estudaremos o desenrolar do Congresso e os debates pré-congressuais, para entender melhor o porquê da ruptura entre bolcheviques e mencheviques.

Por: Nazareno Godeiro

O II Congresso teve um caráter fundacional, porque votou um programa e um estatuto da organização, coisa que o I Congresso de 1898 não conseguiu realizar. A única proeza do I Congresso foi fundar o partido e dar um nome POSDR, pois logo após o congresso, todos os dirigentes foram presos.

Em 1902 e 1903, período preparatório do II Congresso do POSDR, Lênin foi se solidificando como dirigente do partido, principalmente depois da publicação de Que Fazer? Isto fica bem evidente lendo suas cartas deste período, reunidas no tomo 46 das suas Obras Completas.

Junto com Krupskaya, ele se esforçou para unificar os vários círculos marxistas numa só organização nacionalmente centralizada a partir do Iskra, organizou o combate aos economicistas na base da organização, cuidou das finanças para garantir a publicação de Iskra e Zariá, solicitou dos seus colegas de redação que escrevessem artigos sobre tal ou qual assunto, organizou a distribuição ilegal em toda a Rusia, fez debates públicos com os dirigentes dos SRs na Suíça e Inglaterra (inclusive nas cidades onde viviam Plekhanov, Axelrod, Vera Zasulich, Mártov, mostrando que já era, de fato, o principal dirigente do POSDR), se ocupou da montagem de um “Comitê de Organização” do II Congresso com peso maior de “iskristas” e preparou minuciosamente, com a direção de Iskra cada ponto de pauta do II Congresso, que ocorreria de 30 de julho a 23 de agosto de 1903, cuja pauta foi confeccionada por ele. Lênin se projetou como principal dirigente da organização neste período, inclusive recebeu convite da Escola Superior de Ciências Sociais de Paris para participar de Conferencias sobre a questão agraria na Rússia e na Europa, em debate com Chernov e outros intelectuais russos entendidos da questão do campo.

Em setembro de 1902, Lênin escreveu Carta a um camarada acerca de nossas tarefas de organização, onde concretizou, os elementos centrais do livro Que Fazer? seis meses depois de publicado. Apresentamos aqui os elementos centrais do texto, que passou a ser a visão de partido predominante no II Congresso, apesar das diferenças que surgiram:

Lênin retomou sua ideia central de organização do partido a partir do jornal: “Gostaria apenas de salientar que o jornal pode e deve ser o dirigente ideológico do Partido, desenvolvendo as verdades teóricas, as teses tácticas, as ideias gerais de organização e as tarefas gerais de todo o Partido num momento ou noutro”.

Essa visão se combinou com a formação do Comitê Central que teria dirigentes atuantes no interior da Rússia, que se combinaria com a redação do jornal que seria a direção ideológica do partido, vivendo no estrangeiro.

Também foi retomando os princípios organizativos do partido revolucionário, começando por ter a coluna vertebral do partido formada por militantes que consagram sua vida à atividade revolucionária.

Que a prioridade para a construção do partido era as fábricas e os bairros operários (periferia das grandes cidades), onde o partido teria que desenvolver uma estrutura para que em um dia e uma noite apenas pudesse fazer uma distribuição geral de folhetos, com agitação e propaganda, para mobilizar as massas de uma cidade em pouco tempo:

“Vamos falar agora sobre os núcleos de fábrica. Eles têm uma importância especial para nós, pois a principal força do movimento está no grau de organização dos operários nas grandes fábricas, onde se concentra a parte predominante da classe trabalhadora, predominante não apenas em termos de número, mas também, e mais ainda, pela sua influência, desenvolvimento e capacidade de combate. “Toda fábrica deve se tornar uma fortaleza nossa” (…) “Devem ser feitos esforços para aperfeiçoar este aparato a tal ponto que numa única noite toda a população operária de São Petersburgo possa ser informada e, por assim dizer, mobilizada.”

E que contasse com uma direção mais operária possível:

“O Comité do Partido Operário Social-Democrata da Rússia deve ser um só e consistir de social-democratas plenamente conscientes, que se dedicam inteiramente à atividade social-democrata. “Devemos garantir, acima de tudo, que o maior número possível de operários se torne revolucionários plenamente conscientes e profissionais e façam parte do comité”.

Outro setor que Lênin dava muita importância era os propagandistas do partido, de quem ele dizia que:

“São muito poucos os propagandistas com verdadeira firmeza de princípios e capacidade (e para se tornar um é preciso estudar muito e ganhar experiência), e é preciso especializar esses homens, dar o máximo de trabalho possível e ter o máximo de cuidado com eles.”

Por fim, neste texto Lênin desenvolveu bem a discussão sobre a centralização do partido, com a localização de cada militante fazendo o que lhe corresponde de acordo com suas aptidões. Aqui Lênin demonstrou que a centralização vem acompanhada de uma ampla democracia no interior do partido, uma visão oposta ao centralismo burocrático stalinista e a disciplina “militar”, cuja direção se mantem “pela força do poder”, pela hierarquia dirigente, que manda no partido de acordo com as estrelas que tem no peito:

“Toda a arte da organização clandestina deve consistir em saber aproveitar tudo e todos, em “dar trabalho a todos e a cada um”, ao mesmo tempo em manter a direção de todo o movimento e mantê-la, claro, não por força do poder, mas pela força do prestígio, da energia, da maior experiência, da maior diversidade de conhecimentos e do maior talento. Esta observação vai ao encontro da possível e habitual objecção de que uma centralização rigorosa pode muito facilmente arruinar tudo se por acaso uma pessoa dotada de imenso poder, mas incapaz, for colocada no centro. Claro que isso pode acontecer; mas o remédio contra isto não pode residir na elegibilidade e na descentralização, absolutamente inadmissíveis em proporções mais ou menos amplas e mesmo verdadeiramente prejudiciais ao trabalho revolucionário sob a autocracia. As soluções contra isso não serão fornecidas por estatutos de qualquer tipo; elas só podem ser proporcionadas por medidas de “influência de camaradas”, desde as resoluções de cada um dos subgrupos e os seus apelos subsequentes ao CO e ao CC até (no pior dos casos) a remoção da autoridade absolutamente inepta.  O comité deve esforçar-se por dividir o trabalho tanto quanto possível, tendo em mente que diferentes aspectos do trabalho revolucionário requerem diferentes faculdades, que por vezes um homem que é completamente inútil como organizador pode revelar-se um agitador insubstituível, ou que um homem incapaz de resistir aos rigores da atividade clandestina será um excelente propagandista, etc.”

Então, Lênin via a centralização de uma direção que adquire prestígio com a base, não pela imposição burocrática, mas pela disposição e dedicação militante, por ter mais experiencia, mais conhecimento e talento, que são elementos não impostos para a base partidária, mas conquistadas pelo respeito advindo das atividades cotidianas dessa direção ou dirigente na construção do partido.

Essa democracia partidária seria conquistada pelo direito de cada militante, cada célula, cada regional, cada círculo de fábrica etc. tivessem o direito de expressar sua opinião, seus desejos, suas petições nos comitês de base e que fosse levado ao conhecimento da direção para alcançar a “plenitude da deliberação de todos os militantes do partido”, segundo Lênin.

Tanto é assim, que Lênin dá o exemplo do funcionamento de uma orquestra para que se entenda a centralização e a disciplina partidária:

“Para que a direção não só aconselhe, convença e discuta (como tem sido feito até agora), mas realmente dirija a orquestra, é necessário saber exatamente quem toca cada violino e onde; que instrumento cada um aprendeu e aprende a tocar, onde e como; quem, onde e por que está desafinado (quando a música começa a ficar ruim); como, onde e quem precisa ser movido para eliminar a dissonância, etc.”

Essa visão de construção do partido marxista na Rússia era única, original, e era compartida por toda a direção da Iskra até 1903. Tanto o livro Que Fazer? quanto esta Carta a um camarada sobre nossas tarefas de organização foram publicados e distribuídos em toda a Rússia com a proposta de organização do jornal Iskra. Só após o congresso, onde rachou o partido ao meio, foi que os mencheviques começaram a elaborar uma nova proposta de “organização” e passaram a polemizar com as elaborações de Lênin sobre organização.

Em 14 de novembro de 1902, Lênin escreveu O socialismo vulgar e o populismo,

ressuscitados pelos socialistas revolucionarios, fazendo uma caracterização dos SRs:

A primeira crítica de Lênin aos SRs era que não tinha programa, entendido programa como “exposição completa de suas concepções”. Para contrariar essa afirmação do Lênin, eles passaram a divulgar uma proposta programática na sua revista teórica. Começaram pela questão das classes sociais no campo, recusando a visão marxista que o camponês fazia parte da pequena burguesia e viam dois tipos de camponeses: os camponeses que vivem do seu trabalho e a burguesia rural, que explora força de trabalho externa. Assim, para os SRs, o pequeno proprietário rural (dono da sua terra) e o operário agrícola são semelhantes porque vivem do seu trabalho (sendo tudo “camponês trabalhador). Lênin respondeu a esse argumento dizendo:

“A inconsistência destes é óbvia. Procurar o principal traço distintivo das diversas classes da sociedade nas suas fontes de rendimento equivale a colocar em primeiro plano as relações de distribuição que, a rigor, são apenas o resultado das relações de produção. É um erro apontado há muito tempo por Marx, que chamou aqueles que não o entendiam de socialistas vulgares. A característica fundamental da diferenciação das classes é o lugar que ocupam na produção social e, consequentemente, a relação que mantêm com os meios de produção. A apropriação desta ou daquela parte dos meios sociais de produção e sua aplicação à empresa privada, às empresas organizadas para a venda do produto: é isso que distingue principalmente uma classe da sociedade atual (a burguesia) em relação ao proletariado, que é privado dos meios de produção e vende a sua força de trabalho”.

Lênin afirmou então que os SRs perdiam a visão da exploração do trabalho assalariado na sociedade capitalista como a base fundamental de sustentação do sistema capitalista. Não se pode identificar o trabalho como o elemento central e sim sua forma social (relações socais de produção e de propriedade). Quer dizer, o elemento determinante na sociedade capitalista não é se uma pessoa trabalha ou não, mas sim se é proprietária dos meios de produção e vai utilizá-los para ocupar um pedaço do mercado ou se é um assalariado que sobrevive compulsoriamente do seu salário, que é obrigado a se assalariar para sobreviver. Assim, os SRs camuflavam a existência da pequena burguesia como classe da sociedade capitalista. Ora, todos sabemos que a grande burguesia surgiu da pequena burguesia. O erro central dos SRs é que identificam as classes sociais pela renda e não pelo papel que ocupam na produção. Essa visão levou a que o partido Socialista Revolucionário se tornasse o partido do campesinato na Rússia e depois se transformou no partido do campesinato acomodado, os kulaks, a burguesia rural. Portanto, os SRs não compreendiam a teoria da luta de classes, por isso, Lênin chamou-os de “socialismo vulgar”.

No final de novembro, voltou a escrever material de propaganda contra os SRs: A tese fundamental contra os socialistas-revolucionários, com as seguintes observações:

“A tese fundamental que apresento contra os socialistas-revolucionários e para avaliar todos os aspectos da atividade (e da essência) desta tendência consiste no seguinte: toda a tendência dos socialistas-revolucionários, e todo o seu partido, não são nada a não ser uma tentativa da intelectualidade pequeno-burguesa de burlar o nosso movimento operário e, consequentemente, todo o movimento socialista e revolucionário na Rússia”. [os itálicos são do Lênin, no original – N.E.LIT]

A inconsistência teórica dos SRs serve, segundo Lênin, para se camuflar como “um partido de ação” que utilizam as “ações exemplares” de terror individual até a divulgação de ideias liberais burguesas que penetraram na corrente populista.

Lênin fez uma ressalva que não considerava os militantes populistas como falsos, mentirosos e outras coisas pelo estilo. Ele via que os militantes SRs eram dedicados à causa do povo, mas que não entendiam que sua doutrina e sua militância eram nocivas ao movimento, pois não entendiam a luta de classes e muito menos o papel do proletariado na transformação da sociedade: por exemplo, tiravam os melhores militantes do meio operário para realizarem atentados terroristas, desorganizando o movimento operário e dando justificativas para a mais brutal repressão por parte da autocracia.

Em 28 de fevereiro de 1903, Lênin escreveu um artigo intitulado “O proletariado judeu precisa de um “partido político independente?” onde disse:

Que é equivocada a decisão do Bund (setor do POSDR que organizava o proletariado judeu) de se constituir em “partido político independente”. O I Congresso do POSDR reconheceu o Bund como organização autônoma, mas não independente. Isto significava que:

“A “autonomia” dos Estatutos de 1898 assegura ao movimento operário judeu tudo o que possa necessitar: propaganda e agitação em iídiche, publicações e congressos, apresentação de reivindicações particulares como o desenvolvimento do programa social-democrata comum único e satisfação das necessidades locais e demandas que surgem das peculiaridades do modo de vida judaico. Em todo o resto, a fusão mais completa e estreita com o proletariado russo é essencial, é essencial no interesse da luta de todo o proletariado da Rússia. E o receio de qualquer “russificação” em caso de fusão é infundado, pela própria substância da questão, uma vez que a autonomia é precisamente uma garantia contra a opressão nas questões particulares do movimento judaico. Mas nas questões relativas à luta contra a autocracia, à luta contra a burguesia de toda a Rússia, devemos agir como uma organização de combate única e centralizada; Devemos contar com todo o proletariado, sem diferenças de língua ou nacionalidade, unido pela solução conjunta e constante dos problemas teóricos e práticos, táticos e organizacionais, em vez de criar organizações que marcham isoladamente, cada uma no seu caminho; Em vez de enfraquecermos as forças do nosso ataque, dividindo-nos numa multidão de partidos políticos independentes; em vez de introduzir o isolamento e a separação para depois curar a doença que inoculamos artificialmente com emplastros da alardeada “federação”.

Lênin e toda a direção da Iskra se recusava a aceitar o ultimatum do Bund de se constituir como partido à parte e ao mesmo tempo integrante do POSDR pois isso significava construir não um partido centralizado, mas um conglomerado de partidos dentro do partido, cada um com sua própria centralização, pois a federação pressupõe não só a autonomia (que todos aceitavam o funcionamento autônomo do Bund no que se tratava da cultura e costumes próprios dos judeus), mas a independencia, com a constituição de órgãos próprios, enfrentados com a direção partidária única de Toda a Rússia e das nações oprimidas pela autocracia. Portanto, o debate será violento no II Congresso e terminará com a derrota do Bund e seu abandono do Congresso, ao não se subordinar à maioria.

O programa do partido defendia a autodeterminação nacional, inclusive o direito de separar-se da nação opressora, mas defendia que o proletariado dessa nação atuasse unido dentro do partido marxista revolucionário, sem separar por nações ou por religião. O partido atuava de forma centralizada e unificada.

Em março de 1903, escreveu o folheto Aos pobres do campo. Explicação do que querem os socialdemocratas aos camponeses:

Lênin fez uma explicação didática da luta dos socialdemocratas, começando pela explicação da luta dos proletários da cidade, onde informava que a autocracia assassinou operários grevistas em Yaroslavl, Petersburgo, Riga, Rostov do Don e Zlatoúst. Operários que lutavam por uma sociedade socialista e pela organização de um partido operário. Explicou que a principal luta da socialdemocracia era a liberdade política. Os camponeses conquistaram muitas liberdades individuais, porém, não tinham nenhuma liberdade para decidir a vida pública do país e eleger seus representantes em um parlamento nacional soberano. Toda a Europa já havia conquistado essa liberdade, exceto a Rússia e a Turquia. Os socialdemocratas exigiam a eleição de um parlamento eleito soberanamente pelo povo, mas indicou que “O povo trabalhador não pode confiar em ninguém, só pode contar consigo mesmo. Ninguém libertará o trabajador da miséria, se ele não se liberta. E para libertar-se, os operários devem unir-se em todo o país, em toda a Rússia, em um só agrupamento, em um só partido”.

“A liberdade política não libertará imediatamente os trabalhadores da miséria, mas fornecerá aos trabalhadores a arma para lutarem contra ela. Não existe e não pode haver outro meio de combate à pobreza que não seja a união dos próprios trabalhadores. Mas sem liberdade política será impossível que milhões de homens do povo se unam.”

Assim, para Lênin a luta pela liberdade política, pela democracia, pela queda da autocracia era apenas um meio para desenvolver a luta de classes contra a burguesia, a luta do proletariado pelo socialismo.

Lênin seguiu explicando aos camponeses que as eleições que a autocracia estava realizando para o Zemstvo dava 90% para os ricos e 10% para os pobres:

“Os deputados devem ser eleitos por todo o povo, para que os votos dos nobres, dos latifundiários e dos comerciantes não excedam os dos trabalhadores e camponeses. Os nobres e comerciantes são milhares, os camponeses são milhões. E como o governo prepara esta Duma do Estado, será uma assembleia sem eleições igualitárias. As eleições que planejou serão fraudadas e farão com que os nobres e os comerciantes tomem quase todos os assentos, enquanto os operários e os camponeses não teriam sequer um deputado em cada dez. É uma Duma falsificada, uma Duma policial; uma Duma de funcionários e senhores. Uma verdadeira assembleia de deputados populares só se consegue através de eleições livres, com sufrágio igual, de todo o povo. Por isso, os operários socialdemocratas declaram: Abaixo a Duma! Fora essa assembleia falsificada. O que precisamos é de uma assembleia autêntica e livre, com deputados de todo o povo, e não com representantes dos nobres e dos comerciantes! O que precisamos é de uma Assembleia Constituinte claramente popular, para que o povo imponha amplamente a sua vontade aos funcionários, e não os funcionários ao povo!”

Em seguida Lênin passou os dados da distribuição de terras na Rússia, onde 942 mil famílias possuíam 27 milhões de hectares, “Ou seja, apenas mil famílias possuem tanta terra como dois milhões de famílias camponesas.” Inclusive a maioria dos grandes latifundiários já são burgueses e não nobres, que detém a maioria das terras e não o Estado, como afirmava os SRs. Portanto, concluiu Lênin propagandizando o marxismo entre os pobres do campo: “Ou seja, nem todos os camponeses são iguais: alguns sofrem fome e miséria, e outros enriquecem.”

Lênin aproveitou para debater com os camponeses a visão dos SRs que a “comunidade rural” da Rússia era comunista. Afirmação falsa, segundo Lênin pois quem mandava na comunidade neste período já era o camponês rico que podia comprar terra e contratar braceiro e camponeses pobres para trabalhar na sua terra. Essa comunidade não era uma aliança voluntaria, era imposta pelo Estado. Então, a aliança do pobre do campo com o ricaço se dava no meio da comunidade e em prejuízo do pobre. Aí Lênin explicava aos camponeses pobres que deviam se unir ao proletariado das cidades, contra todos os ricos, todos os que vivem do trabalho allheio.

Se era fácil determinar quem eram os grandes latifundiários pela extensão de suas terras, já para conhecer o camponês rico, segundo Lênin, podia classificar pela quantidade de cavalos que dispõe (os cavalos eram meios de produção por excelência neste tempo):

“Os camponeses sem cavalos não ultrapassam três milhões, e quase três milhões e meio possuem apenas um cavalo. Estes são camponeses completamente arruinados ou camponeses pobres. Nós os chamamos de pobres do campo. O seu número é de seis milhões e meio de um total de dez, ou seja, quase dois terços! Depois vêm os camponeses médios, que possuem cada um uma junta de gado de trabalho. Esses agricultores somam quase dois milhões de famílias e possuem quase quatro milhões de cavalos no total. E em seguida vêm os camponeses ricos, que têm mais de uma junta. São cerca de um milhão e meio de famílias, mas têm, juntas, sete milhões e meio de cavalos. Portanto, aproximadamente um sexto das famílias camponesas possui metade do número total de cavalos.”

Isto é, 65% dos camponeses eram os pobres do campo, que são proletários ou semiproletários, enquanto os camponeses médios representavam 20% e os camponeses ricos, apenas 15% do total, ainda que possuíam a metade dos cavalos do país. “Finalmente, uma das principais peculiaridades do camponês rico é que ele contrata operários e diaristas. Os camponeses ricos, tal como os proprietários de terras, também vivem do trabalho dos outros.” Lênin calculou em torno de 9 milhões de proletários e semiproletários do campo, pela quantidade de passaportes que se expediu para migrantes na Rússia europeia, sem contar a Sibéria e o Cáucaso. O camponês médio, que seriam em torno de 2 milhões de famílias, sobrevive apenas: “Não chega a ser um verdadeiro proprietário, nem é, tampouco, um autêntico operário. Todos os camponeses médios tentam igualar-se aos patrões, querem ser proprietários, mas muito poucos o conseguem. São poucos os que empregam operários ou diaristas, que conseguem enriquecer com o trabalho dos outros, prosperam cavalgando nas costas dos outros. A maioria dos camponeses médios não tem dinheiro para contratar outros; Eles próprios são forçados a trabalhar por um salário”.

A partir daqui, Lênin passou a disputar o camponês pobre e o médio para uma aliança revolucionária com os proletários da cidade para lutar contra toda a classe burguesa e nobre. Para isso, tinha que entrar em polêmica com os populistas que diziam que a coisa mais linda do mundo era ser camponês, mostrando uma vida idílica no campo que não existia.

Passou a explicar, a partir deste ponto, as reivindicações do POSDR referente aos operários e aos camponeses, explicando-as didaticamente.

Em julho de 1903, Lênin publicou no Iskra O problema nacional no nosso programa, assunto que fazia parte da pauta do II Congresso:

O programa do POSDR defendia o “”reconhecimento do direito à autodeterminação para todas as nações que integram o Estado”. Lênin explicava a proposta da seguinte maneira:

“Agora, o reconhecimento incondicional da luta pela autodeterminação não nos obriga de forma alguma a apoiar qualquer exigência de autodeterminação nacional. A social-democracia, como partido do proletariado, impõe-se a tarefa positiva e fundamental de cooperar com a autodeterminação do proletariado de cada nação, e não com a dos povos e nações como tais. Devemos esforçar-nos sempre e incondicionalmente para alcançar a união mais estreita entre os proletários de todas as nações, e apenas em casos isolados e como exceção podemos apresentar e apoiar vigorosamente exigências destinadas a constituir um novo Estado de classe ou a substituir a plena unidade política do Estado por uma unidade federativa mais fraca, etc.”

Este ponto programático aparenta uma contradição entre a autodeterminação nacional e a união do proletariado de todas as nações. Mas, a contradição é apenas aparente porque a única forma de garantir a autodeterminação nacional é através da união do proletariado das diversas nações, no caso da Rússia, no POSDR porque a autocracia não realizaria essa autodeterminação.

Essa posição foi questionada pelo Partido Socialista Polaco que reivindicava a autodeterminação pela autodeterminação nacional e Lênin dizia que defendia a autodeterminação, porém não necessariamente o POSDR defenderia a formação de uma nova nação, separada, a independencia nacional, a não ser como exceção.

Lênin perguntava:

“Deve a social-democracia exigir sempre e incondicionalmente a independência nacional ou apenas sob certas condições? E em quais especificamente?” e respondeu: “Ao morder a isca daquelas frases e deixar-se seduzir por todo esse alvoroço, o PSP por sua vez mostra a fraca ligação da sua consciência teórica e da sua atuação política com a luta de classes do proletariado. E devemos subordinar a exigência de autodeterminação nacional precisamente aos interesses dessa luta. E é essa a condição que estabelece a diferença entre a nossa abordagem da questão nacional e a abordagem democrática burguesa.”

Lênin aqui está diferenciando a forma da luta pela independencia nacional praticada pelos marxistas revolucionários em oposição à luta da burguesia por esta mesma independência. A burguesia e os reformistas viam a luta pela autodeterminação nacional (independência nacional) de forma absoluta, como um fim em si mesma, onde todos e todas deveriam ser “nacionalistas” e ponto final. O objetivo final da luta seria garantir a independencia do país e nada mais. Os marxistas revolucionários apoiavam essa luta, porém colocando a luta sob a direção do proletariado, classe que garantiria uma verdadeira independência nacional, porque a burguesia nunca vai até o fim nessa independência desde o período em que se tornou uma classe mundial imperialista, portanto contrarrevolucionária. Isso se passou normalmente com todos os países coloniais e semicoloniais que fizeram inclusive revoluções anticoloniais para em segunda se subordinar a outro país imperialista. Por isso, os marxistas apoiavam a luta nacionalista como meio, como alavanca, como estopim, que garantisse o país avançar para o socialismo, uma verdadeira independência nacional diante de todos os países imperialistas. Então, o apoio dos marxistas à luta nacionalista é condicionado, depende se a burguesia quer de fato enfrentar de forma revolucionária a dominação imperialista. Parar a luta quando conquista essa independencia nacional e constituir um país capitalista independente vai levar a uma nova subordinação da burguesia nacional ao imperialismo. Por isso, Lênin colocou que subordinava a luta pela independência nacional à luta de classes, à luta pelo socialismo.

Ele se apoiava nas posições de Marx e Engels sobre a independência da Polônia: “A criação de uma Polónia democrática é a primeira condição para a criação de uma Alemanha democrática”. Assim, Marx estabelecia uma relação entre a independencia da Polônia e a democratização do império feudal-patriarcal-capitalista alemão. A dominação da Polônia pela Rússia e pela Alemanha fortalecia o império alemão, que transitava para o capitalismo de forma reacionária.

Lênin se apoiava também na mudança do caráter da burguesia europeia que havia mudado a partir de 1848, quando se tornou contrarrevolucionária e quando já emergia o proletariado como única classe revolucionária, como fez o governo burguês francês de 1871, que preferiu entregar Paris aos prussianos, para derrotar a Comuna de Paris. Por isto, Lênin condicionava a luta pela independencia nacional à luta de classes, a luta pelo socialismo.

Chegado neste ponto, começou a aparecer outra posição no marxismo revolucionário sobre a questão nacional, expressada por Mehring em 1902 (posição que seria absorvida por Rosa Luxemburgo e pelos marxistas polacos) da seguinte maneira:

“Já passaram os tempos em que uma Polónia livre poderia nascer da revolução burguesa; Hoje, o renascimento da Polônia só é possível com a revolução social, quando o proletariado contemporâneo quebrar as suas correntes.”

Lênin se diferenciou desse argumento em parte, não sendo tão peremptório na afirmação da impossibilidade de algum setor da burguesia lutar pela independência nacional, antes da vitória da revolução socialista.

“Não há dúvida de que o restabelecimento da Polônia antes da queda do capitalismo é muito improvável, mas a absoluta impossibilidade da burguesia polaca ser a favor da independência, etc., não pode ser afirmada. Neste sentido, a social-democracia russa também não está de mãos atadas, longe disso. Ao propor no seu programa o reconhecimento do direito das nações à autodeterminação, defende esse direito levando em conta todas as combinações possíveis e mesmo todas as imagináveis. Este programa não exclui de forma alguma a possibilidade do proletariado polaco adoptar a palavra de ordem de uma república polaca livre e independente, mesmo que a probabilidade de que isso possa ser alcançado antes do socialismo seja insignificante. Este programa exige apenas que o verdadeiro partido socialista não corrompa a consciência proletária, não esfume a luta de classes, não seduza a classe trabalhadora com frases democráticas burguesas, não viole a unidade da atual luta política do proletariado. Nesta condição, a única sob a qual admitimos a autodeterminação, é justamente onde reside a essência do problema.”

A pesar de defender a autodeterminação nacional dos povos submetidos ao tzarismo, Lênin defendia a unidade do proletariado de todas nações oprimidas pela autocracia russa no POSDR, num partido centralizado democraticamente, unificando o proletariado de todas as nações oprimidas. Uma posição diferente do Bund, setor judeu do POSDR, que defendia uma federação de partidos divididos por nacionalidade.

*****

Entre junho e julho de 1903, esquentou a luta de classes, com uma greve geral que abarcou todo o Sul da Rússia. Concomitante a isso, as ações dos camponeses contra os latifundiários aumentavam. A guerra da Rússia com o Japão, que se iniciou em janeiro de 1904, acelerou as contradições sociais, que desaguariam na revolução de 1905.

Lênin se referiu a este período, em 1920, caracterizando:

“Presságios de grande tempestade em todos os lugares. Efervescência e preparações em todas as classes. No estrangeiro, a imprensa da emigração levanta teoricamente todos os problemas essenciais da revolução. Os representantes das três classes fundamentais, das três principais correntes políticas – a liberal burguesa, a democrática pequeno-burguesa (oculta sob os rótulos de tendências “social-democratas” e “socialistas revolucionárias”) e a proletária revolucionária – antecipam e preparam, com uma luta feroz de concepções programáticas e táticas, a futura luta de classes aberta” (ver Obras Completas, tomo 41).

Neste mesmo período, Lênin escreveu os projetos de resolução para o II congresso do POSDR, que começaria em agosto de 1903

Foram escritas para debater na redação do jornal “Iskra” e com os militantes que vinham da Rússia para o Congresso.

Nesta forma de “resoluções” eram apresentadas todas as questões fundamentais em debate, resoluções curtas, com afirmações diretas, para não haver dúvidas, para serem votadas com clareza, ainda que houvesse diferenças.

Lenin se especializaria nesta forma literária, que se tornou a preferida dele quanto mais se tornava dirigente.

Até final de julho, pouco antes de iniciar o congresso, Lênin redigiu as principais resoluções para o congresso, como o projeto de resolução sobre o lugar do Bund no POSDR, sobre a luta económica, sobre o Primeiro de Maio, sobre o congresso internacional, sobre as manifestações, sobre o terrorismo, sobre propaganda, sobre atitude em relação à juventude estudantil, sobre distribuição de forças  e sobre publicações partidárias.

Escreveu também o “Projeto de Estatutos do partido”, que se resumiu da seguinte maneira:

PROJETO DE ESTATUTOS DEL POSDR[1]

  1. É membro do Partido quem aceita o seu programa e apoia o Partido, tanto financeiramente como através da participação pessoal numa das suas organizações.
  2. O órgão supremo do Partido é o Congresso, que é convocado pelo CC (se possível, pelo menos uma vez a cada dois anos). O CC deve convocar o Congresso quando solicitado pelos comitês ou grupos de comitês do Partido, que no seu conjunto tenham reunido um terço dos votos no Congresso anterior, ou quando solicitado pelo Conselho do Partido. O Congresso será considerado válido se nele estiverem representadas mais de metade dos comitês do Partido (devidamente constituídos) existentes no momento da reunião do Congresso.
  3. Têm direito de representação no Congresso: a) o CC; b) o Conselho Editorial do Órgão Central; c) todos os comitês locais que não façam parte de grupos especiais; d) todos os grupos de comitês reconhecidas pelo Partido, e e) Liga do Estrangeiro. Cada uma das organizações listadas terá dois votos no Congresso. Os novos comitês e grupos de comitês só terão direito a ser representados no Congresso quando forem confirmados pelo menos seis meses antes da realização do Congresso.
  4. O Congresso do Partido nomeia o CC, o Conselho Editorial do Órgão Central e o Conselho do Partido.
  5. O CC unifica e dirige todas as atividades práticas do Partido e administra o fundo central do Partido, bem como todas as organizações técnicas que servem a todo o Partido. Examinará os conflitos que possam surgir, tanto entre as diferentes organizações e entidades do Partido como dentro delas.
  6. O Conselho Editorial do Órgão Central exerce a direção ideológica do Partido, edita o Órgão Central, o órgão teórico e diversos panfletos.
  7. O Conselho do Partido é nomeado pelo Congresso em número de cinco pessoas, escolhidas entre os membros do Órgão Central e do CC. O Conselho resolverá todas as disputas ou discrepâncias que surgirem entre o Conselho Editorial do Órgão Central e o CC relativamente a problemas gerais de organização e tácticas. O Conselho do Partido renova o CC, em caso de queda geral.
  8. Novos comitês e agrupamentos de comitês deverão ser confirmados pelo Comitê Central. Cada comitê, grupo, organização ou grupo reconhecido pelo Partido dirige os assuntos relativos especial e exclusivamente a cada localidade ou a cada distrito, a cada movimento nacional ou à função que lhe tenha sido expressamente confiada, tendo, no entanto, a obrigação de respeitar as decisões do CC e do Órgão Central, e contribuir para o fundo central do Partido na proporção determinada pelo CC.
  9. Cada membro do Partido e qualquer pessoa com ele relacionada tem o direito de exigir que a sua declaração seja transmitida no seu texto original ao CC, ao Órgão Central ou ao Congresso do Partido.
  10. As organizações partidárias têm o dever de fornecer ao CC e ao Órgão Central todas as informações necessárias sobre as suas atividades e composição.
  11. Todas as organizações do Partido e todos os seus órgãos colegiados decidirão os seus assuntos por maioria simples de votos e terão direito à cooptação. Para cooptar novos membros e expulsar um membro serão necessários 2/3 dos votos.
  12. O objetivo da Liga da Social Democracia Revolucionária Russa no Exterior é realizar propaganda e agitação no exterior, bem como cooperar com o movimento dentro da Rússia. A Liga tem os mesmos direitos que os comitês, com a única excepção de que o apoio que presta ao movimento na Rússia será sempre realizado através de pessoas ou grupos expressamente designados pelo Comitê Central.

Escrito a fines de junio y comienzos de julio de 1903

SE INICIOU O TÃO ESPERADO CONGRESSO

O II Congresso iniciou no dia 30 de julho de 1903 e durou até o dia 23 de agosto, mais de 20 dias. Começou na Bélgica e foi transferido para Londres devido à perseguição policial.

Participaram do Congresso 43 delegados com voz e voto, representando 26 organizações do partido, totalizando 51 votos, na medida em que alguns delegados tinham 2 votos. A divisão por posição no congresso era: 33 delegados iskristas, 10 centristas, 5 delegados do Bund (União Geral Operária Judaica da Lituânia, Polônia e Rússia) e 3 economicistas. Aparentemente um congresso tranquilo, já que os iskristas tinham elaborado o programa e os estatutos e dirigiam as principais organizações na Rússia, porém, quando havia um pequeno deslocamento de alguns iskristas, o congresso se desequilibrava: isso ocorreu na discussão dos estatutos e na eleição da redação do Iskra e na eleição do comitê central.

Para Lênin, o Congresso era sagrado, o evento mais importante da vida partidária porque aí estava representada a imagem da base da organização. Os(as) delegados(as) eram escolhidos democraticamente em uma assembleia de militantes, sendo as pessoas que estavam à frente da organização, da militância, por sua dedicação, por sua contribuição ao partido e ao movimento e pelo desempenho das suas tarefas militantes. O critério de eleição de delegados(as) não era o militante que sabia mais, nem os mais antigos, nem os membros da direção. A eleição de delegados num partido de tipo leninista é a elevação da patente da pessoa, realizada pela própria base. Portanto, o Congresso é a reunião da nata da nata, super democrático, e que definirá as políticas, as táticas e elegerá a direção da organização. Por isso, quando se elegia os delegados na base, ainda que o critério de eleição não se desse por posição política, este elemento tinha peso na eleição dos delegados, assim a representação da base seria a mais completa possível.

No início do Congresso houve questionamentos ao Comitê de Organização do Congresso (CO), que era uma instância responsável pela organização do Congresso. Durante todo o pré-congresso esse CO tinha poderes de determinar as regras de participação de todas as organizações ad referendum do Congresso, porém quando se iniciou o Congresso essa instância perdeu seu poder, que foi transferido à plenária de delegados do Congresso. O CO continuou funcionando, mantendo apenas sua função técnica, não política.

Outro elemento importante que ocorreu no início do Congresso, foi o esclarecimento sobre o mandato imperativo, isto é, o delegado já vem com seu voto definido pela organização ou pela plenária que o elegeu. O mandato imperativo não funcionava no Congresso nem nas instâncias de direção de um partido marxista revolucionário. Nenhum delegado ou delegada estava obrigada a votar de acordo com sua organização regional pela qual foi eleita, nem pela base que votou neste ou nesta delegada. Os debates no Congresso, como instância máxima da organização, podem mudar as opiniões originais dos congressistas, portanto a votar por uma posição que não era a sua originalmente.

Os pontos da pauta mais importantes do II Congresso foram a votação do programa do partido, dos estatutos e a eleição da direção central. As questões de tática e de política foram secundarizadas e boa parte não foi debatido no Congresso.

O programa foi aprovado por unanimidade, com apenas uma abstenção.[2] Os temas mais debatidos foram sobre o papel do proletariado como dirigente da revolução democrático-burguesa que se aproximava e, especialmente, sobre a ditadura do proletariado, pois um setor do POSDR não queria introduzir este ponto no programa porque não constava nos demais programas dos partidos socialdemocratas europeus. Também foi polêmica algumas interpretações do livro Que Fazer? que entendiam que os operários não participavam da elaboração da teoria, argumento que Lênin respondeu:

“Lenin não leva em conta que os trabalhadores também participam na elaboração da ideologia. Sim? Não foi dito mil vezes nos meus escritos que a maior deficiência do nosso movimento é a escassez de trabalhadores plenamente conscientes, de trabalhadores dirigentes, de trabalhadores revolucionários? Não está aí dito que deveria ser nossa tarefa imediata formar estes trabalhadores revolucionários? Não é apontada a importância do desenvolvimento do movimento sindical e da criação de uma literatura especificamente sindical? Não está sendo travada uma luta desesperada contra qualquer tentativa de baixar o nível dos trabalhadores de vanguarda ao das massas ou ao dos trabalhadores médios?”

O debate mais acirrado do congresso versou sobre os Estatutos e especialmente o parágrafo primeiro[3] refletindo diferentes princípios de organização do partido. Surgiram duas posições: a do Lênin, que redigiu esse parágrafo acima que considerava membro do partido apenas quem aceitava o programa do partido e participava efetivamente de alguma organização partidária, ademais de contribuir financeiramente de forma regular.  Portanto, uma visão de um partido combativo, com membros ativos, que participavam da luta de classes, em alguma organização partidária ou de massas. A segunda proposta foi elaborada por Mártov (que foi copiada dos estatutos do PSD alemão votados no Congresso de Erfurt), era igual à do Lênin com uma diferença: ao invés de uma participação efetiva em uma organização do partido, bastava “apoiar” regularmente o partido. Quer dizer, bastava que qualquer pessoa dissesse que era do partido para ser considerado militante. Isto significava que se abria as portas do partido sem nenhum critério, apenas baseado na palavra da pessoa. Essa proposta foi aprovada por uma pequena margem de votos (28 a 22 votos e uma abstenção), onde os oportunistas do congresso (economicistas e bundistas) se juntaram à Mártov e uma parte dos iskristas. O restante do estatuto foi aprovado segundo a formulação de Lênin.

Lênin explicou, posteriormente ao II Congresso, o debate sobre os estatutos e a diferença entre a proposta dele e a de Mártov, dizendo:

“O panorama muda completamente quando chegamos na segunda metade do Congresso. A partir desse momento começou a virada histórica de Mártov. As diferenças entre nós não eram de forma alguma insignificantes. Nasceram da falsa apreciação de Mártov sobre o momento atual. O camarada Mártov desviou-se da linha que tinha seguido anteriormente.

O quinto ponto da agenda tratou dos Estatutos. Já na comissão surgiram disputas entre Mártov e eu sobre o seu primeiro artigo. Defendemos fórmulas diferentes. Insisti na minha fórmula e salientei que sem nos afastarmos do princípio do centralismo não poderíamos fazer outra definição de membro do Partido. Reconhecer como membro do Partido alguém que não pertence a nenhuma das suas organizações equivale a manifestar-se contra todo o controle partidário. Mártov introduziu aqui um novo princípio, totalmente contrário aos princípios do Iskra. A sua fórmula expandiu os limites do Partido. Ele invocou que o nosso Partido deveria ser um partido de massas. Abriu as portas a todos os tipos de oportunistas, expandiu os limites do Partido até ficarem completamente confusos. Nas nossas condições, isto contém um grande perigo, pois é muito difícil traçar uma linha entre um revolucionário e um charlatão. Portanto, precisávamos restringir o conceito de partido. O erro de Mártov foi ter aberto amplamente as portas do Partido a qualquer aventureiro, quando se tornou claro que, mesmo no Congresso, pelo menos um terço dos presentes eram intrigantes. Neste caso, Mártov expressou oportunismo. A sua fórmula introduziu uma nota falsa e dissonante nos Estatutos: cada membro do Partido tinha de estar sob tal controlo da organização que o CC tivesse a possibilidade de comunicar com todos os membros do Partido. Minha fórmula serviu de estímulo à organização. O camarada Mártov baixou o conceito de “membro do Partido”, que, na minha opinião, deve ser mantido elevado, muito elevado. Mártov, Rabóchee Delo, o Bund e o “pântano” juntaram-se, com a ajuda dos quais conseguiu a aprovação do Artigo Primeiro dos Estatutos.

No decorrer do congresso, um setor do POSDR (5 delegados do Bund judeu, 2 economicistas e mais alguns delegados) abandonou o congresso, por não concordar com suas resoluções. A partir daí, os 24 delegados iskristas que acompanhavam a posição de Lênin se tornaram “maioria” (em russo, “bolcheviques”) e os seguidores de Mártov “minoria” (= “mencheviques”).

Um dos pontos iniciais do congresso foi muito polêmico e tratou da questão do Bund (partido de proletários judeus) no POSDR. O Bund propunha formar uma federação entre ele e o POSDR, onde o Bund atuaria como um partido dentro do partido, com seus próprios materiais e publicações, com sua própria direção, etc. A maioria do congresso rechaçou esta proposta e defendia um POSDR único e centralizado, ainda que permitia a autonomia de atuação para o Bund no que se tratasse das questões específicas dos judeus. É importante notar que o Bund tinha 35 mil membros, muito mais que o conjunto das organizações solidárias à Iskra.

Também houve um debate sobre a relação do proletariado com a burguesia liberal. Potrésov (com apoio de Mártov e Axelrod, líderes dos mencheviques) apresentou uma resolução oportunista, onde defendia uma aliança com a burguesia liberal, enquanto a maioria defendeu a resolução principista apresentada por Plekhanov. Por falta de tempo, se aprovou as duas resoluções. Lênin dizia que se podia fazer acordos temporários na luta contra a autocracia na medida em que a burguesia lutasse revolucionariamente para derrubar a autocracia, porém negava fazer alianças com esta mesma burguesia. Portanto, uma coisa são acordos temporários na luta concreta, outra coisa são as alianças de classe com essa burguesia (inadmissíveis para Lênin). Dizia ele:

“As publicações liberais de caráter legal são inúteis, neste caso, justamente pela sua nebulosidade. E devemos dirigir com o maior zelo (e perante as mais amplas massas trabalhadoras possíveis) o fio da nossa crítica contra os elementos da Osvobozhdenie [jornal da burguesa liberal – N.E. LIT] para que, no momento da revolução que se aproxima, o proletariado russo saiba como parar com uma verdadeira crítica das armas as inevitáveis ​​tentativas dos senhores de Osvobozhdenie de restringir o carácter democrático da revolução.” De todas formas, as discussões políticas e táticas foram secundarizadas no Congresso, tendo prioridade as discussões programáticas e de princípios. Neste tema ficou evidente que o stalinismo, com sua eterna estratégia de “aliança com a burguesia progressista”, não tem nada a ver com a posição de Lênin e do bolchevismo.

O último ponto do Congresso selou a divisão do POSDR: na eleição da direção do jornal Iskra, Lênin apresentou uma proposta de reduzir de 6 membros para 3 membros. A essência do problema não era numérica e sim porque Lênin queria ter uma relação profissional na direção do partido e não relações de amizade entre os dirigentes. A redação anterior era composta por 6 membros (3 antigos dirigentes e 3 novos, que já analisamos em episódios anteriores), onde apenas 3 redigiam artigos para a Iskra e Zariá. Os outros três trabalhavam pouco e tinham cargos de direção sem ser, de fato, direção. Por isso, Lênin propôs essa diminuição e a eleição de Plekhanov, Mártov e ele para serem a redação do jornal partidário. O Congresso concordou com Lênin e aprovou essa proposta, porém, Mártov nunca assumiu o cargo e sabotou os organismos dirigentes, se insurgindo contra as decisões do Congresso. Em pouco tempo, Plekhánov que havia concordado com a proposta de Lênin, voltou atrás e cooptou todos os antigos membros da redação, voltando à situação anterior, só que agora com 5 mencheviques (que eram minoria no congresso) e um bolchevique (Lênin), uma proposta inaceitável e um desrespeito às decisões do congresso. Lênin se retirou da redação da Iskra. Com isso, Mártov consolidou a existência de uma corrente própria, o menchevismo, que daí em diante se converteu num partido à parte, obrigando a maioria do congresso a se organizar adequadamente para a luta política e montar sua própria imprensa, já que a Iskra menchevique se negava a publicar qualquer coisa dos bolcheviques. A partir dessa divisão o partido nunca mais atuou de forma unificada. Evidentemente que o racha já estava refletindo diferenças políticas e organizativas importantes, que desaguaram no debate ao redor dos princípios organizativos, mas o menchevismo aspirava a funcionar igual ao partido socialdemocrata alemão (inclusive a proposta de Estatuto de Mártov, foi copiado do PSD alemão), na legalidade total, apoiada no trabalho sindical e parlamentar legal, coisa impossível na Rússia. Na revolução de 1905, que estouraria dentro de 1 ano e meio, as diferenças se estenderam a todos os campos da ação partidária, nas alianças, nas táticas, na forma de organização, em tudo se aprofundou a ruptura iniciada no II Congresso em 1903.

Lênin teve um papel destacado no II Congresso: fez 47 intervenções e discursos no conjunto do congresso, preparou as principais resoluções, sendo o líder inconteste da maioria que se formou neste congresso e que foi a base do partido bolchevique.

SEGUNDA PARTE: AS POLÊMICAS APÓS O II CONGRESSO

Lênin escreveu em uma carta a Kalmikova (financiadora das publicações do POSDR), de 7 de setembro de 1903, que a “atitude impensada em relação aos resultados [do congresso], mas os resultados em si são completamente inevitáveis, e o fato de terem ocorrido foi apenas uma questão de tempo.” Quer dizer, essa ruptura já estava se preparando (sem que fosse vontade de ninguém), antes do Congresso, é o que nos informa Lênin aqui. Nesta carta, Lênin rebate a acusação de que “foram eliminados da direção a pessoas capazes”:

“Um ou outro foi simplesmente excluído do organismo central, isso é motivo para ficar ofendido? O Partido deveria ser dividido por esta razão? Será esta razão suficiente para desenvolver uma teoria sobre o hipercentralismo? Será esta razão suficiente para dizer que se usa punho de ferro, etc.? Nunca duvidei um só minuto, nem me passou pela cabeça a ideia de que um grupo de três membros da equipe editorial fosse o único grupo verdadeiramente prático, que não divide nada, e que adapta a antiga liderança coletiva “familiar” ao papel de algo de natureza oficial. Foi precisamente o carácter familiar dos seis que nos torturou a todos durante estes três anos, como você sabe muito bem, desde o momento em que o Iskra se tornou o Partido e o Partido se tornou “Iskra“, deveríamos, nos vimos obrigados a romper com os seis e com o carácter familiar (….) “Para o bem da causa era absolutamente essencial romper com o “caráter familiar”, e tenho a certeza que o grupo dos seis teria aceitado pacificamente aos três, se não fossem as disputas relativas ao § 1º e ao CC. Somente essas disputas fizeram com que o grupo dos três adquirisse para eles aquele tom “horrível” e completamente impreciso.”

Na verdade, Lênin tentou romper com a estrutura de funcionamento da direção baseado em simpatias e antipatias pessoais (portanto, camarilhesca), uma direção de amigos, pouco responsável pelas tarefas, onde apenas alguns redatores trabalhavam e a maioria não produzia material para a Iskra ou Zariá. Por três anos, nunca se reuniu essa redação de membros com todos os seis membros. Nestes 3 anos de redação da Iskra, quem dirigiu a redação foi Lênin (que escreveu 32 artigos) e Mártov (escreveu 39 artigos), Plekhanov (escreveu 24 artigos), Potrésov (escreveu 8), Vera Zasulich (6 artigos) e Axelrod apenas 4 artigos, em 3 anos. Essa era a redação anterior que foi modificada pelo Congresso que elegeu Lênin, Mártov e Plekhanov para a redação. Como pode-se ver, alguns ocupavam cargos pela trajetória militante no passado, mas que agora já não desempenhavam um papel dirigente na organização (tipo Axelrod – eternamente ausente nos trabalhos da redação -, Vera Zasulich e Potrésov).

Lênin dizia em uma carta a Liádov, de 10 de novembro de 1903:

“A gritaria histérica tenta esconder uma lamentável incapacidade de compreender que a Redação deve ter editores reais e não fictícios, que deve ser um organismo operacional, e não uma direção amadora, e que cada um dos seus membros deve ter a sua opinião pessoal em cada problema (algo que nunca aconteceu no grupo não eleito de três).”

Numa carta a Potrésov, de 13 de setembro de 1903, Lênin retomou o tema da direção baseada em afinidades pessoais:

“É por isso que considero que este grupo de três constitui o único arranjo prático possível, a única coisa que pode se tornar uma instituição oficial, em vez de uma organização baseada no nepotismo e na indolência, a única coisa que pode ser um verdadeiro centro, cada um de cujos membros, repito, sempre expressariam e defenderiam seu ponto de vista partidário, sem ceder um centímetro, independentemente de qualquer interesse pessoal, de todos os tipos de considerações sobre queixas, demissões, etc., etc.”

Lênin considerava inadmissível que se lutasse por cargos dentro do partido: “E causar uma cisão porque alguém foi excluído do órgão central parece-me uma loucura incrível”.

Continuou batendo na mesma tecla:

“O dilema agora é inexorável: ou a divergência se coloca a nível pessoal, sendo nesse caso um absurdo fazer um escândalo político e abandonar o trabalho por causa disso; ou a divergência é política, e então é ainda mais ridículo “retificar” as coisas impondo certas pessoas de, digamos, um matiz diferente.

Eles se decidiram (parecem se decidir) por este último. Nesse caso, junte-se ao grupo de três, Mártov, e demonstre ao Partido os erros dos outros dois da sua direção coletiva: se você não participar da direção, não conseguirá obter dados para denunciar esses erros e alertar o Partido contra eles. Caso contrário, suas acusações serão fofocas vazias sobre algo futuro.”

A questão que Lênin considerava inaceitável era o boicote de Mártov aos organismos centrais eleitos no II Congresso, pois era de conhecimento geral a clausula 18 de convocatória do Congresso que dizia:

“Todos os acordos do Congresso e todas as eleições que nele se realizam são acordos do Partido, obrigatório para todas as suas organizações. Ninguém, sob qualquer pretexto, pode recorrer delas, e só um novo congresso do Partido pode anulá-las ou modificá-las”.

Era inaceitável impor duas pessoas na direção que não cumpriam o papel de dirigentes, apenas porque representavam um “matiz” que, inclusive, estaria representado através das figuras de Plekhanov e do próprio Mártov. Essa imposição partia de uma visão pouco profissional da direção, como se fosse um “clube de amigos” e não dirigentes do partido e do movimento. Por outro lado, se o boicote de Mártov se devia a diferenças políticas também não se justificaria porque na equipe de três proposta por Lênin (Plekhanov, Mártov e Lênin) a tendencia era de Lênin ser minoria diante dos dois. Todo o problema se resumia a que uma minoria não aceitava se subordinar à maioria. A minoria queria impor sua posição à maioria pela força e não pelo convencimento, pelo trabalho leal como minoria para ganhar a maioria do partido.[4]

Lênin insistia a que Mártov assumisse seu cargo para o qual foi eleito no II Congresso, como um dos três principais dirigentes da Iskra e Zariá:

“O Conselho Editorial da OC declara que considera a sua recusa em colaborar absolutamente sem motivo. Naturalmente, nenhum elemento de irritação pessoal deverá impedir o trabalho no Órgão Central do Partido. Mas se a sua saída se deveu a alguma divergência entre as suas ideias e as nossas, consideraríamos extremamente útil para o Partido que essas divergências fossem expostas em detalhe. Além disso, consideramos muito conveniente que a natureza e o alcance destas divergências sejam esclarecidos perante todo o Partido, o mais rapidamente possível, nas páginas das publicações que dirigimos”.

A situação piorou ainda mais com a mudança da posição de Plekhanov, que assumiu, junto com Lênin, a direção do jornal (que era a direção ideológica do partido). Plekhanov passou a defender a volta da antiga redação de 6 pessoas (que agora seria 5 mencheviques e Lênin apenas pela maioria), uma correlação de forças totalmente diferente do II Congresso. Na verdade, a minoria ganhou no grito! Lênin apelou a Plekhanov, dizendo:

“Estamos cansados ​​da discórdia! É isso que escrevem e gritam nas cartas que chegam da Rússia, e ceder agora aos martovistas significaria legalizar a discórdia na Rússia, uma vez que na Rússia não houve até agora qualquer vestígio de desobediência e rebelião. Nenhuma declaração minha ou sua poderá agora restringir os delegados majoritários no Congresso do Partido. Esses delegados farão um estardalhaço terrível. Por uma questão de unidade, por uma questão de estabilidade do Partido, peço-lhe que não assuma tal responsabilidade. “Não abdique nem abandone tudo nas mãos dos martovistas. Porém, essas palavras não sensibilizaram a Plekhanov, como mostrou Lênin nesta carta a Krzhizhanovski, de 4 de novembro de 1903:

“Querido amigo: Você não imagina o que aconteceu aqui, é simplesmente nojento e peço que faça todo o possível e impossível para vir aqui junto com o Boris, depois de obter os votos dos outros. Vocês sabem que agora tenho bastante experiência nos assuntos do Partido e declaro categoricamente que qualquer adiamento, o menor atraso ou hesitação significa a ruína do Partido. Eles provavelmente lhe contarão tudo em detalhes. A chave de tudo é que Plekhanov mudou subitamente de rosto, depois dos escândalos no Congresso da Liga, traindo-me violenta e vergonhosamente a mim, a Kurts e a todos nós. Agora ele foi, ignorando a todos nós, negociar com os martovistas, que, vendo que Plekhanov ficou com medo de uma divisão, duplicaram e quadruplicaram as suas exigências, exigindo não só o grupo dos seis, mas também a inclusão do seu povo na o CC (ainda não disseram quantos nem quem), e dois deles no Conselho e uma desaprovação das ações do CC na Liga (ação levada a cabo com o pleno acordo de Plekhanov). Plekhanov ficou terrivelmente assustado com uma divisão e uma luta! A situação é desesperadora, os nossos inimigos estão alegres e insolentes, todo o nosso povo está furioso. Plekhanov ameaça abandonar tudo de uma vez, e consegue fazê-lo. Insisto, sua vinda para isso é essencial, custe o que custar.”

Situação desesperante para que Lênin tivesse que dizer “Você sabe que agora tenho muita experiência em assuntos partidários” para seu camarada mais próximo no Partido. Neste mesmo dia, 4 de novembro de 1903, Lênin enviou uma carta ao CC eleito (que, neste momento, tinha maioria bolchevique) com a seguinte proposta:

“Suas condições são: 1) cooptação de quatro para a Equipe Editorial; 2) cooptação? para o CC; 3) reconhecimento da legitimidade da Liga; 4) 2 votos no Conselho. Sugiro que o CC proponha as seguintes condições: 1) cooptação de três para a Equipe Editorial; 2) Situação antes das hostilidades na Liga; 3) 1 voto no Conselho. Sugiro então que o seguinte ultimato seja aprovado imediatamente (mas por enquanto sem comunicá-lo à parte contrária): 1) cooptação de 4 para a Equipe Editorial; 2) cooptação de 2 para o CC na eleição do CC; Situação antes das hostilidades na Liga; 4) 1 voto no Conselho. Se não aceitarem o ultimato, guerra até o fim. Uma condição adicional: 5) acabar com todas as fofocas, disputas e comentários sobre as altercações no Segundo Congresso do Partido e depois dele.

Devo acrescentar, pela minha parte, que me demiti do Conselho Editorial e que só posso continuar no Comitê Central. Farei tudo e publicarei um panfleto sobre a luta dos histéricos criadores de escândalos ou dos ministros descartados.”

Na verdade, a luta dos mencheviques era uma luta por cargos na direção, como não obtiveram estes cargos no Congresso, estavam conseguindo no grito, num total desrespeito ao Congresso, como instância máxima de decisão do Partido. Ocultavam a luta por cargos acusando o CC de “burocratismo”.  “De que servem então os congressos do Partido se as coisas se resolvem com nepotismo no exterior, histeria e escândalos??”, dizia Lênin.

Numa carta dirigida aos militantes, de 4 de janeiro de 1904, Lênin sintetizou o debate da seguinte maneira:

“Chamam de burocratas aqueles que ocupam cargos no Partido por vontade do seu Congresso, e não por capricho de um círculo de literatos residentes no exterior. É necessário encobrir desta forma o fato, tão desagradável para si, de que na verdade o burocratismo, o localismo e a procura de emprego obcecam aqueles que simplesmente não podiam trabalhar no Partido fora das suas instituições centrais. Sim, o seu comportamento, de facto, mostrou-nos claramente que o nosso Partido sofre daquele burocratismo que coloca os cargos acima do trabalho e que não exclui boicotes ou desorganização para ganhar cargos.”

Por isso, Lênin acusava os mencheviques de “histéricos caçadores de cargos na direção”. Enquanto eram maioria no partido, estava tudo bem. O Congresso os colocou em minoria, inaceitável! Guerra até a morte contra o “burocratismo” da maioria. Onde já se viu, dirigentes “desconhecidos” no exterior ocuparem vagas de “dirigentes históricos”? Por cargos, essa minoria estava disposta a romper o partido, para ser novamente maioria, como ocorreu de fato com o POSDR.

Ainda que Lênin (assim como a maioria do II Congresso) não concordasse em eleger a direção utilizando o critério da proporcionalidade de grupos e frações, na proposta de membros do CC, Lênin propôs uma pessoa do “centro” e um menchevique.

A proposta feita pelo Lênin tentava buscar uma paz no partido e era uma enorme concessão aos mencheviques: entregar a maioria da redação do Iskra e Zariá para os mencheviques, pagando todos os gastos do jornal (inclusive, renunciando ao cargo nesta redação)[5], entregar, também, a maioria no Conselho (que era uma espécie de órgão que unificava o CC e a redação do jornal) enquanto se mantinha numa posição majoritária no CC, para iniciar uma luta frontal contra os mencheviques.

Essa luta começaria com a publicação de um livro que Lênin se referiu na carta anterior “Um passo adiante, dois passos atrás (escrito entre fevereiro e maio de 1904), que passamos a resenhar:

Já no prólogo do livro, Lênin avaliou que as diferenças de princípio não se referiam ao programa ou a tática, mas “a problemas de organização, o novo sistema de concepções que se vislumbra no novo Iskra… oportunismo nos problemas organizacionais… defendem uma organização amorfa do Partido sem forte coesão”.

A primeira grande polêmica: o centralismo e as fronteiras partidárias

Para Lênin, a ideia central das propostas de organização da Iskra era o centralismo, um debate que não era simplesmente organizativo, mas de princípio. O centralismo deveria ser o fio condutor de todo o estatuto. Esta ideia era de comum acordo na redação da Iskra, até o momento em que Mártov ficou em minoria na eleição do CC e da redação do jornal.

Esse princípio de organização se apoiava em dois polos: por um lado, a estrita seleção de quem era militante, estabelecendo as fronteiras partidárias, onde entrariam apenas os(as) proletários(as) com consciência de classe e socialista, e uma relação ampla com os setores do proletariado e dos setores oprimidos (semiproletários do campo, nacionalidades oprimidas, etc), que ainda não tinha a compreensão da necessidade de se organizar no partido revolucionário. A estrita centralização e disciplina dos militantes permitia a relação aberta e fluida com a massa de trabalhadores do país.

A definição estrita de quem era militante ou simpatizante era a questão central para garantir uma centralização democrática: ao definir as fronteiras partidárias, delimitava os direitos iguais para todos os militantes, da base até a direção. A fórmula frouxa e amorfa de Mártov, aparentemente democrática porque cabia “todos” como membros do partido, deixava nas mãos da direção o controle das decisões partidárias.

Lênin alertou que essa divergência se transformou em ruptura da seguinte maneira:

“Qual era, então, a essência da questão em disputa? Já disse no Congresso, e repeti-o muitas vezes desde então, que “não considero de forma alguma que o nosso desacordo (com respeito ao primeiro artigo) seja tão substancial que dele dependa a vida ou a morte do Partido. Não morreremos porque há um ponto mal formulado nos Estatutos!” (250). Embora esta discrepância revele nuances de princípio, não poderia de forma alguma produzir por si só a divergência (e na verdade, falando de forma não convencional, a divisão) que ocorreu desde o Congresso. Mas toda pequena discrepância pode tornar-se grande se você insistir nela, se for colocada em primeiro plano, se começarmos a procurar todas as raízes e todas as ramificações dela. Toda pequena discrepância pode adquirir imensa importância se servir de ponto de partida para uma virada em direção a certos conceitos errados e se a esses conceitos errados se juntarem, em virtude de novas discrepâncias adicionais, atos anárquicos que levem o Partido a uma divisão”.

Lênin dizia que o erro fundamental dos mencheviques era “confundir o Partido como destacamento de vanguarda da classe operária com toda a classe” (…)

“…a minha exigência de que o Partido, enquanto destacamento de vanguarda da classe, seja o mais organizado possível e só acolha nas suas fileiras aqueles elementos que admitam, pelo menos, um mínimo de organização. O meu adversário, pelo contrário, confunde os elementos organizados e desorganizados do Partido, os que se deixam liderar com os que não o fazem, os avançados com os incorrigivelmente atrasados, pois os atrasados ​​corrigíveis podem entrar na organização. Esta confusão é verdadeiramente perigosa.”

Como existem diferentes graus de consciência e de atividade entre os trabalhadores é que se deve distinguir o grau de proximidade com o partido por parte destes “ativistas”. Na situação de exploração que o capitalismo desata sobre a classe trabalhadora, que leva a um embrutecimento da classe trabalhadora, nem os sindicatos (que são organizações muito mais amplas que o partido revolucionário) organizam a totalidade da classe trabalhadora. O objetivo do partido é elevar setores cada vez mais amplos da classe a um nível superior de consciência de classe e de organização. Ao não ver essa distinção nas diversas camadas da classe trabalhadora, o partido restringirá suas tarefas, reduzirá o alcance da sua propaganda e agitação ao nível economicista ou “democrático”, deixando de propagar e organizar os trabalhadores na luta pelo socialismo.

O argumento mais importante dos mencheviques era que Lênin queria “reduzir todo o conjunto de membros do partido a um conjunto de conspiradores”. Argumento falso, considerando que Lênin já havia afirmado no próprio congresso que “o partido não está formado unicamente por revolucionários profissionais”, como já vimos no episódio 7, sobre o livro Que Fazer?

Gyorg Lukács, de forma precisa, definiu os fundamentos de princípios da organização leninista:

“A concepção leninista da organização implica assim uma dupla ruptura com o fatalismo mecanicista: com aquele que concebe a consciência de classe do proletariado como um produto mecânico da sua situação de classe, e com o qual vê na própria revolução nada mais que o resultado mecânico da forças econômicas que são desencadeadas inexoravelmente, conduzindo o proletariado quase automaticamente à vitória, uma vez que as condições objetivas da revolução estejam “maduras.”

A primeira ruptura se deu com o fatalismo mecanicista dos economicistas (que foram absorvidos pelos mencheviques) e a segunda ruptura se deu com a visão predominante na II Internacional, defendida por Kautsky e Rosa Luxemburgo, que apoiaram os mencheviques.

A segunda grande polêmica: uma direção de gurus (com seu séquito de puxa-sacos) ou de dirigentes que estão à frente das tarefas partidárias?

No último ponto da pauta do Congresso (a eleição do CC e da redação da Iskra) foi onde se solidificou a divisão do partido. Lênin propôs eleger 3 membros para o CC e 3 membros para a redação da Iskra, utilizando um critério de colocar à frente dos organismos os dirigentes de fato que estavam à frente da redação e à frente do trabalho na Rússia, por isso, ele propôs para a redação da Iskra ele, Plekhanov e Mártov. Eleitos os dois trios (somado a um sétimo membro, eleito pelo congresso) se conformaria o Conselho do Partido (organismo superior a todos os organismos partidário), se procederia a ampliação de ambos organismos através do cooptação (medida importante na Rússia, onde a repressão desarticulava as direções), que teria de ser feita por 2/3 dos seis membros da direção (a redação e o CC se juntariam, com 6 membros, para cooptar novos camaradas de acordo com as necessidades de ambos organismos centrais de direção.

Veja qual o critério que Lênin utilizou para defender sua posição, que foi aprovada por uma estreita margem de votos:

“Assim, o plano de eleger dois trios tinha evidentemente o seguinte objetivo: 1) renovar a Redacção, 2) suprimir nela alguns traços do antigo espírito de círculo, inapropriados numa organização do Partido (se não houvesse nada para suprimir ali não haveria razão para inventar o trio como ponto de partida!) e, finalmente, 3) suprimir as características “teocráticas” de uma organização de literatos (suprimi-las fazendo com que militantes práticos proeminentes interviessem na solução do problema da expansão do trio). Este plano, que foi dado a conhecer a todos os editores, baseava-se evidentemente em três anos de experiência de trabalho e respondia absolutamente aos princípios de organização revolucionária que colocámos consistentemente em prática: na época de dispersão, quando apareceu o Iskra, os vários os grupos eram muitas vezes formados de forma casual e espontânea, sofrendo inevitavelmente de certas manifestações nocivas do espírito de círculo. Criar um partido significava suprimir tais traços; e era imprescindível a participação de militantes práticos proeminentes, porque alguns membros do Conselho Editorial sempre estiveram encarregados das questões organizacionais, e no sistema de organizações do Partido devia haver não apenas uma organização de escritores, mas também uma organização de líderes políticos.”

Lênin estava propondo ter uma direção com verdadeiros dirigentes partidários, que estavam à frente da organização, na sua construção diária (seja redatores da Iskra seja na organização no interior da Rússia): “… tivemos que permitir que os camaradas sobre cujos ombros pesou todo o trabalho de divulgação das ideias do Iskra e de preparação da sua conversão em partido decidissem, eles mesmos, quem eram os candidatos mais adequados para o novo organismo partidário.” Ele queria eliminar os elementos camarilhesco na direção (onde um guru dita as leis para seus “amigos” e “seguidores”). Ele queria uma relação política, onde predominasse as opiniões políticas de cada dirigente, às vezes inclusive, em debates acirrados, mas respeitosos. Com isso, queria eliminar da direção as claques – os “puxa-sacos” – de seguidores de um(a) ou outro(a) dirigente, pois os organismos centrais de direção não são organismos plebiscitários, mas organismos compostos pelos(as) melhores dirigentes naquele momento, designados para tarefas de acordo com as necessidades do partido e das características pessoais dos(as) dirigentes. Usando esse critério como central, Lênin associava o matiz político como segundo elemento para a composição da direção: na proposta dos dois “trios” (a redação da Iskra com 3 redatores – Lênin, Plekhánov e Mártov – e no CC de três) Lênin propunha um membro da minoria em cada trio (Mártov na redação e Popov no CC).

A minoria menchevique não queria mudar a composição da antiga redação da Iskra e argumentava, através de Posadovski: “Ao escolher três entre os seis membros da antiga redação, você está dizendo que os outros três não são necessários, que são desnecessários.” Um argumento totalmente fora de lugar, que foi respondido imediatamente pelo delegado Rúsov (da maioria):

“Colocando-nos deste ponto de vista, que não é partidário, mas filisteu, não nos encontramos em cada eleição confrontados com o problema de saber se fulano ficará ofendido porque foi eleito mengano e não ele, se um determinado membro do Comitê Organizador ficará ofendido porque ele não foi eleito para o CC, mas outra pessoa, aonde tudo isso nos levará, camaradas? Se nos reunimos aqui não para dirigir discursos agradáveis mutuamente, mas para formar um partido, não podemos de forma alguma concordar com tal ponto de vista. Trata-se de eleger camaradas para cargos de responsabilidade e não se pode colocar a questão da falta de confiança em relação a qualquer um dos eleitos, somente para o bem da causa e a idoneidade da pessoa escolhida para o cargo em questão” (p. 325).

Derrotado Mártov na votação, se recusou a assumir seu posto na redação da Iskra e produziu um discurso para sua futura luta política:

“Como a maioria do antigo Conselho Editorial, pensei que o Congresso iria pôr fim ao ‘estado de sítio’ dentro do Partido e estabelecer um regime normal dentro dele. Na prática, o estado de sitio, com as leis de exceção contra alguns grupos, foi alargado e até agudizado. Só com todo o Conselho Editorial anterior podemos garantir que os poderes que os Estatutos conferem à equipa editorial não sejam utilizados em detrimento do Partido”…

Este discurso foi utilizado para mudar no tapetão a composição da direção do partido eleita no II Congresso. Quando se apropriaram da direção da Iskra (com a capitulação de Plekhanov aos mencheviques) passaram a defender um critério de organização anarquista: é mais importante o programa do partido (conteúdo) do que a organização (forma), que a centralização deve existir apenas para centralizar a atividade do partido, portanto deve ocorrer simultaneamente com a ação, não petrificado num estatuto, que a parte (minoria) não deve se subordinar ao todo (maioria) pois a parte é autônoma do todo.

Lênin qualificou toda essa argumentação como anarquismo no terreno de organização. Um discurso centrado na “questão organizativa”, não enganou a Lênin, que neste livro que estamos resenhando, começou a tirar conclusões políticas deste episódio:

“O jacobino, indissociavelmente ligado à organização do proletariado consciente dos seus interesses de classe, é precisamente o social-democrata revolucionário. O girondino que sente falta dos professores e dos estudantes do ensino secundário, que teme a ditadura do proletariado e sonha com o valor absoluto das reivindicações democráticas é precisamente o oportunista. Os oportunistas são os únicos que ainda podem, na era atual, ver um perigo nas organizações de conspiradores, quando a ideia de reduzir a luta política a uma conspiração foi refutada milhares de vezes na literatura, foi refutada e descartada há muito tempo pela vida, quando a importância fundamental da agitação política de massas foi explicada e repetida ad nauseam. O verdadeiro fundamento do medo da conspiração, do blanquismo, não está numa ou noutra característica manifesta do movimento prático (como Bernstein e companhia vêm tentando demonstrar há muito tempo e em vão), mas na timidez girondina do intelectual burguês cuja psicologia tantas vezes aparece entre os social-democratas contemporâneos.”

Este livro chegou em boa hora, pois o congresso tinha se realizado há 9 meses e as disputas, as picuinhas, deixaram de ocupar o primeiro lugar para o debate político-teórico e programático com as posições da Nova Iskra, de conteúdo oportunista. Enquanto o partido ficou paralisado nos três primeiros meses depois do Congresso, a partir daí começou a mudança a favor dos bolcheviques que colocaram a necessidade de um novo congresso para restabelecer a paz no partido e recompor uma direção, na medida em que a direção eleita pelo II Congresso foi sabotada. A cada dia que passava foi ficando claro que as posições da nova redação da Iskra estavam em contradição com a anterior e a fração bolchevique foi se fortalecendo enquanto a fração menchevique entrava em crise.

O reflexo internacional da ruptura entre bolcheviques e mencheviques

O livro “Un passo adiante...” foi enviado, na forma de artigo, para publicação na revista teórica do PSD alemão que havia publicado um ataque de Rosa Luxemburgo a Lênin. Nesta polêmica, Rosa ficou do lado dos mencheviques. Veja a carta que Lênin enviou para Kautsky:

A K. KAUTSKY

Genebra, 10 de outubro de 1904.

Envio-lhe impresso o meu artigo que deverá servir de resposta aos ataques da camarada Rosa Luxemburgo. Sei que o Conselho Editorial do Neue Zeit simpatiza com os meus oponentes, mas penso que seria justo conceder-me o direito de corrigir as imprecisões nos artigos de Rosa Luxemburgo. Meu artigo foi traduzido pelo camarada Lidin. Você já publicou um de seus artigos e, portanto, pode avaliar se conhece bem o alemão. Eu mesmo não consigo escrever em alemão. Fui muito conciso no meu artigo, pois queria que ocupasse menos espaço que o de Rosa Luxemburgo e não fosse muito volumoso para o Neue Zeit. Se considerar, porém, que o artigo é muito extenso, não terei problemas em reduzi-lo mais uma vez ao volume indicado pelo Editor. Ao mesmo tempo, sou obrigado a insistir para que não sejam feitas abreviaturas sem o meu consentimento.

Por favor, avise-me se o Conselho Editorial aceita ou não meu artigo.

Com saudações social-democratas, V. I. Lênin

Kautsky se negou a publicar o artigo do Lênin e devolveu o manuscrito. Escreveu uma carta a favor dos mencheviques, publicada na Iskra em maio de 1904. Desde aqui se iniciou a ruptura de Lênin com Kautsky. Isso desmente a visão tradicional na esquerda que, ainda hoje, afirma que Kautsky era o mestre de Lênin até 1914, quando iniciou a primeira guerra mundial. Na verdade, essa ruptura se iniciou 10 anos antes, quando se produziu a ruptura do POSDR e a II Internacional e a direção do PSD alemão ficaram com os mencheviques.

Chegando aqui, podemos ver que não é casual o posicionamento da direção da II Internacional e do PSD alemão aos mencheviques (ala oportunista do partido).

Ainda que essa direção se enfrentava nos Congressos nacionais e internacionais contra a corrente revisionista dirigida por Bernstein, ao final sempre terminava na boa, com todos seguindo dentro do partido, cada um defendendo sua posição. Esse debate já vinha se desenrolando há anos no partido alemão e o pensamento da direção era que Bernstein representava um “matiz” dentro do partido, que podia conviver tranquilamente. Essa forma de enfrentar o oportunismo (assim como o esquerdismo) não se baseou na forma em que Marx e Engels enfrentaram o proudhonismo e o anarquismo na I Internacional. Eles fizeram uma diferenciação taxativa durante os vários congressos internacionais e centralizaram a Primeira Internacional no penúltimo congresso realizado. Quem seguiu essa tradição foram os socialdemocratas russos que romperam decididamente com os economicistas em 1900 e com o Bund em 1903, que defendia um partido de tendencias e frações permanentes, na forma de uma federação partidária. Derrotado nessa posição, o Bund abandonou o Congresso e o POSDR. Por isso, Lênin disse em 1920, no livro “esquerdismo…” que a revolução russa de Outubro de 1917 só foi vitoriosa devido à essa luta teórico-programática, tática e política, contra o menchevismo, mas também contra o ultra-esquerdismo em 1908, que foram afastados do partido bolchevique. Os dirigentes do POSDR (principalmente Lênin, Plekhanov e Mártov) exigiam a expulsão dos oportunistas do PSD alemão enquanto a direção do partido, incluindo Rosa Luxemburgo, que caracterizavam os bolcheviques como “sectários inflexíveis”[6], permitia a livre propaganda dos oportunistas na base. O partido alemão, ao não fazer essa separação taxativa com o oportunismo de Bernstein, deixou que esse vírus se propagasse cotidianamente até 1914, quando ele contaminou o organismo partidário: já havia uma septicemia, onde a direção do PSD alemão e da II Internacional, apodrecida pelo oportunismo, traiu o proletariado mundial.

Para Lênin, “A luta de nuances é, no partido, inevitável e necessária, desde que não conduza à anarquia e à cisão, desde que não ultrapasse os limites admitidos de comum acordo por todos os camaradas e membros do partido”. Justamente, a ação dos mencheviques após o congresso, desrespeitou as decisões do congresso e impôs, no tapetão, a vontade de uma minoria sobre as decisões da maioria do partido. “A negativa de Mártov a integrar a Redação, sua negativa a colaborar, assim como de outros escritores do Partido, a negativa de toda uma série de pessoas a trabalhar para o CC, a propaganda de ideias de boicote ou de resistência passiva, tudo isto conduzirá inevitavelmente, mesmo contra a vontade de Mártov e dos seus amigos, a uma divisão no Partido”.

Y concluiu Lênin:

“Mas nenhum órgão central de qualquer partido no mundo será capaz de demonstrar que é capaz de liderar pessoas que não querem submeter-se à direção. Não se submeter à direção das organizações centrais, equivale a recusar continuar no Partido, equivale a dissolver o Partido, não é uma medida de persuasão, mas de destruição. E precisamente esta substituição da persuasão pela destruição demonstra uma falta de firmeza de princípios, uma falta de fé nas próprias ideias.

Fala-se de burocratismo. O burocratismo pode ser traduzido para o russo por uma palavra: carguismo. O burocratismo é subordinar os interesses da causa aos interesses da carreira, é dar mais atenção aos cargos e desvincular-se do trabalho, lutando pela cooptação, em vez de lutar pelas ideias. Tal burocratismo, na verdade, é, sem dúvida, indesejável e prejudicial ao Partido…”

Um fato inquestionável desse período é que o único dirigente que dava importância ao tema da organização do partido era Lênin. Além de teórico, estrategista juramentado e tático flexível, era um organizador nato: tem muito a ver com sua visão contra qualquer tipo de fatalismo, contra a crença de que as coisas se resolverão por si só.

CONCLUSÃO:

Em 4 de janeiro de 1905, pouco antes do Domingo Sangrento, Lênin escrevia sobre a ruptura total entre bolcheviques e mencheviques:

“NOTA DO ONSELHO EDITORIAL DE “VPERIOD” SOBRE A CARTA DE UM CORRESPONDENTE DE PETERSBURGO”

Carta de Petersburgo

Do Conselho Editorial. A conclusão a que chegou o camarada de Petersburgo concorda plenamente com a que fizemos no artigo É hora de acabar (nº 1 do Vperiod). Os mencheviques demonstraram que não desejam, de nenhuma maneira, trabalhar juntos, subordinando-se à maioria, e agora, depois de desorganizar as instituições criadas pelo Segundo Congresso, frustraram o Terceiro Congresso. O partido já não tem meios de luta que não seja a ruptura. Quanto mais rápida e completa seja esta ruptura com os desorganizadores, tanto…”.

Este artigo publicado no primeiro número do novo jornal da maioria (Vperiod, Avante) concluiu assim:

“Fizemos todas as concessões possíveis e até algumas impossíveis, para continuar a trabalhar com a “minoria” num único Partido. Agora que o Terceiro Congresso do Partido descarrilou e estão se esforçando para desorganizar os comitês locais, toda a esperança a este respeito caiu por terra. Ao contrário dos “mencheviques”, que agem em segredo e pelas costas do Partido, devemos declarar abertamente, e demonstrá-lo com ações, que o Partido rompe todos os tipos de relações com estes senhores”.

Depois de um ano e meio após o Congresso, a situação chegou a uma ruptura completa: cada fração passou a editar seu próprio jornal e editorial. Lênin tinha sido proibido de publicar livros e folhetos na tipografia do partido, sendo obrigado a montar um editorial para livros, folhetos e para um novo jornal que representasse as posições da maioria, já que o CC (impulsionado pelos membros que queriam a todo custo fazer um acordo com os mencheviques), cooptou 3 mencheviques, modificando a composição do CC de forma arbitrária, prejudicando a maioria e desrespeitando as decisões do II Congresso e, pior todavia, desrespeitando a base do partido que, em 1904, reunidos em várias conferencias locais, aprovaram a convocatória do III Congresso (13 dos 20 comitês reconhecidos no interior da Rússia).

Em uma carta “Ao grupo bolchevique de Zurique”, que lhe perguntou qual era sua atitude frente ao CC, a redação da “Nova Iskra” e ao Conselho do Partido e se reconhecia estas instituições como centros dirigentes do partido. Lênin respondeu:

“Os organismos centrais (OC, o CC e o Conselho do Partido) romperam com o partido, sabotaram tanto o segundo como o terceiro Congresso do Partido, enganando o Partido da maneira mais vil e usurpando seus carguinhos dirigentes num estilo bonapartista. (…) Nestas condições, como pode se falar da existência legal dos organismos centrais? (…) Só nos resta um caminho: romper com os mencheviques de forma mais completa, mais rápida e clara possível (aberta e publicamente), convocar o III Congresso do Partido sem contar com o consentimento dos organismos centrais e sem sua participação, começar imediatamente (sem aguardar tampouco o congresso) a trabalhar com nossos próprios organismos partidários centrais, com a redação de Vperiod e com o birô da Rússia eleito pela conferência do Norte. Repito: os organismos centrais se colocaram por fora do Partido. Não tem meio termo: ou se alinha com os organismos centrais ou com o Partido. Chegou a hora de delimitar os campos e, diferentemente dos mencheviques, que promoveram secretamente a divisão do Partido, aceitar abertamente seu desafio: ¡Muito bem, que venha a ruptura, já que vocês se separaram completamente! ¡Muito bem, que venha a ruptura, pois esgotamos todos os recursos para retardar o desenlace e garantir uma decisão tomada pelo Partido (pelo Terceiro Congresso)!”[7]

A direção da II Internacional e a direção do PSD alemão (incluído Kautsky) ficaram totalmente do lado dos mencheviques: publicavam artigos sentando o sarrafo nos bolcheviques (artigos de Mártov, Rosa Luxemburgo e Trotsky) e recusavam publicar a resposta de Lênin, sem nenhuma explicação.

Na base a situação era oposta: os bolcheviques dirigiam as principais regiões industriais y os grandes centros proletários do país: Petersburgo, Moscou, Bakú, Riga, Tula, Tver, Ekaterinoslav, Nizhni Nóvgorod, Sarátov, Odesa, Nikoláev, Lugansk y os Urais.

Em uma carta a Bogdanov, de 2 de novembro de 1904, Lênin afirmou:

“Na verdade, há uma divisão total no Partido. Já foi alcançado um acordo entre a minoria e o CC e eles seguem a mesma linha que consiste em falsificar o congresso e dissolver os comitês “a partir de baixo” – Esta dissolução consiste em bandos de mencheviques serem enviados para os comitês combativos da maioria, que assediam o comitê e agitam, tentando por todos os meios minar a confiança da sociedade, dos trabalhadores e, sobretudo, dos simpatizantes no comitê. Depois de terem preparado o terreno com a ajuda dos simpatizantes, provocam um escândalo no comitê, exigindo sua rendição.”

(…)

“Segundo nossas notícias, a Redação está enviando seus agentes para a Rússia. Isto supõe a existência de um fundo próprio da redação da Nova Iskra, o que representa, na verdade, a ruptura do Partido. Isto está em contradição com os Estatutos, que exigem que o CC seja informado de tudo e que todos os fundos e toda a organização das atividades práticas estejam inteiramente concentrados nas suas mãos. O Órgão Central comete uma grave violação dos Estatutos ao organizar o seu próprio centro para agentes de viagem e o seu próprio centro de orientação prática e interferência nos assuntos dos comitês.”

Portanto, em 1903 e 1904, nasceu o partido bolchevique, maioria do POSDR que se converteu em partido, ainda que manteve a nomenclatura da fração majoritária do II Congresso. A maioria dos historiadores de esquerda se apegam à forma (existência de duas frações no mesmo – sic! – POSDR) para dizer que o Partido Bolchevique surgiu em 1912, no congresso partidário que se expulsou (em ausência) os mencheviques.

Um partido de tendencias e frações permanentes?

Na atualidade, algumas organizações que funcionam como uma frente de tendencias e frações permanentes, dizem seguir o mesmo funcionamento partidário do POSDR, que depois do Congresso de 1903, supostamente, teriam formado duas frações permanentes: os bolcheviques e os mencheviques, que conviviam no mesmo partido. Essa posição está em contradição com os fatos: o II Congresso do POSDR, de 1903, recusou a proposta do Bund do funcionamento federativo, de partidos nacionais e de frações permanentes. Recusou porque considerava, corretamente, que uma federação se faz entre duas ou mais organizações distintas, que resolvem associar-se, mantendo suas identidades originais. Justamente, essa posição foi recusada por todos os delegados do Congresso, exceto os 5 delegados do Bund.

Exceto por um curto período em 1906, onde se realizou um “congresso de reunificação”, as duas frações já conformavam dois partidos, com programa, teoria, estratégia, táticas e organizações distintas e opostas. Por isso, essa reunificação fracassou. Veremos no episódio correspondente a 1906 esse congresso de “unificação” nos mínimos detalhes.

Para dirimir a dúvida, deixemos que o próprio Lênin resolva. Em 1920, no livro “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, ele fez um balanço retrospectivo dessa longa luta: “O bolchevismo existe como corrente de pensamento político e como partido político desde 1903”.[8]

*****

RESENHA DE DOCUMENTOS PARA A ELABORAÇÃO DO PROGRAMA DO POSDR (1902)

A aprovação do programa do partido foi o primeiro ponto de pauta do congresso, depois dos pontos protocolares. Por isso, vale a pena analisar toda a discussão que ocorreu na redação da Iskra sobre o programa. Teve diferenças importantes entre Plekhanov e Lênin, e demonstraram que a ruptura, embora tenha sido uma surpresa, já vinha cozinhando em banho-maria, com fogo não tão baixo.

Em 1902, Lênin preparou notas críticas e adendos ao esboço do programa do partido, que estava sendo elaborado por Plekhanov. O esboço foi discutido na redação do Iskra, para ser apresentado no II Congresso do POSDR, que foi programado pra ocorrer em 1903. Foi publicado na edição de Iskra, em 1 de junho de 1902.

Os principais debates surgidos foram introduzidos por Lênin que:

  1. Criticava o método de elaboração contendo muitas palavras desnecessárias e repetições de frases (palavreado), porém, a maioria das observações propõe mudar frases para ter conexão com visão marxista (como exemplo a teoria da depauperação – empobrecimento). Lênin insistia para que programa refletisse o mais próximo possível a realidade. Lênin dizia que o defeito principal do projeto é que não era um programa de um partido combativo, mas uma “declaração de princípios genérica” mais adequada para a academia. Num programa, segundo Lênin, devia constar só a definição precisa, curta e direta. As explicações e comentários, comprovações, deveriam ficar para outros artigos, livros, folhetos explicativos etc.
  • Ele introduziu a ideia de que o início do programa deveria ter uma parte teórica que, entre outras questões, explicasse o predomínio do capitalismo na Rússia e não o capitalismo em geral, como queria a comissão de programa. Não houve acordo com essa proposta de Lênin em debate principalmente com Plekhanov que tinha escrito o borrador. Lênin insistia neste ponto dizendo que o programa era de uma organização combativa e não uma simples “declaração de princípios” por isso, era uma declaração de guerra contra o capitalismo que já predominava na Rússia e atacava o programa porque não definia precisamente a pequena burguesia como uma classe reacionária, que só poderia se falar condicionalmente do seu “revolucionarismo” na medida em que abandonasse sua defesa da pequena propriedade e assumisse o ponto de vista do proletariado.
  • Lênin fazia uma observação que o programa estava confuso sobre a indignação espontânea da classe e a agudização das lutas e o desenvolvimento da consciência “que nós devemos impulsionar”.
  • “reconhecimento do direito de autodeterminação a todas as nações que formam parte do Estado” já fazia parte do programa do POSDR desde 1903, ao contrário do que normalmente se pensa que só passou a fazer parte do programa depois da 1ª Guerra Mundial.
  • O projeto de programa de Plekhanov misturava o “proletariado” com “massas exploradas em geral” e com “pequenos produtores”. Lênin fez uma polêmica com isso, dizendo que no programa deveria constar apenas o proletariado como classe revolucionária e só depois disso falar de possíveis acordos de luta:

“…O descontentamento das massas trabalhadoras e exploradas está crescendo”: isto é verdade, mas é absolutamente errado identificar e confundir, como foi feito aqui, o descontentamento do proletariado com o dos pequenos produtores. pequenos produtores. O descontentamento dos pequenos produtores muitas vezes engendra (e é inevitável que engendre neles ou numa parte considerável deles) a tendência para defender a sua existência como pequenos proprietários, isto é, para defender os fundamentos da ordem existente e até para retroceder.

“…Aumenta a luta, sobretudo, a luta do seu representante avançado, o proletariado…” É verdade que a luta também se acentua entre os pequenos produtores. Mas, muito frequentemente, a sua “luta” é dirigida contra o proletariado, uma vez que a própria situação dos pequenos produtores opõe ostensivamente, em muitos pontos, os seus interesses aos do proletariado. De um modo geral, o proletariado não é de forma alguma o “representante avançado” da pequena burguesia. Se isto acontecer, só ocorrerá quando os pequenos produtores perceberem a inevitabilidade da sua ruína, quando “abandonarem as suas próprias opiniões para adotarem as do proletariado”.

  • Por insistência de Lênin, o programa incorporou o caráter proletário do partido e a proposta de incorporação da ditadura do proletariado, como tarefa fundamental da luta partidária, ponto inserido pela primeira vez num partido socialdemocrata depois da morte de Marx. Tanto Lênin quanto Plekhanov opinavam que a ausência deste importante ponto programático no Programa de Erfurt (1891) do PSD alemão expressava uma capitulação ao revisionismo no interior do partido.
  • Lênin escreveu toda a parte do programa relativa ao campesinato, onde incluiu a formação de comitês de camponeses para restituir a terra às comunidades camponesas, mediante a expropriação. Veja todo o debate sobre a questão agraria mais abaixo.
  • Esse programa, aprovado no congresso de 1903, já trazia a reivindicação de Assembleia Constituinte livre e soberana.

Todo o debate sobre o programa comprovou, sem lugar a nenhuma dúvida, que Lênin já trabalhava de igual para igual com Plekhanov, que aqui já não era mais seu “mestre” (em 1902). Lênin já não tinha nada a aprender com Plekhanov e, ao contrário, já via todos os desvios de Plekhanov em relação ao marxismo, além da sua conhecida arrogância intelectual (que vimos em episódios anteriores). Neste momento, o “aluno” já ultrapassou o “professor”. Por isso, a visão que Lênin seguia Plekhanov como seu “mestre” até a guerra de 1914 não passa de uma lenda.

No final, depois de várias polêmicas com Plekhánov, Lênin conseguiu introduzir no programa toda a parte mais importante, a teórica, que definia a estrutura econômica e social da Rússia, uma parte sobre o campo e a conclusão do programa. Portanto, se aceitou a maioria das emendas de Lênin. Depois de aprovado no II Congresso de 1903, este programa só foi modificado em 1919, no VIII congresso do Partido Comunista (bolchevique) da Rússia.

Lênin resumiu assim suas diferenças com o projeto de programa elaborado por Plekhanov:

Resumindo todas as observações feitas, direi que encontro quatro defeitos fundamentais no projeto que, na minha opinião, o tornam inaceitável:

1) o carácter extremamente abstrato de muitas das formulações, que não parecem destinadas a um partido combativo, mas sim a um ciclo de conferências;

2) o problema do capitalismo especificamente russo é deixado de lado ou obscurecido, um defeito particularmente grave, uma vez que o Programa deve servir de norma e guia para a agitação contra o capitalismo russo. Devemos dar uma apreciação clara do capitalismo russo e declarar-lhe uma guerra aberta;

3) a exposição totalmente unilateral e incorreta da atitude do proletariado para com os pequenos produtores, o que nos priva de bases para combater os “críticos” e tantos outros;

4) a tendência de oferecer constantemente, no Programa, uma explicação do processo. Apesar de tudo, este objetivo não é alcançado; por outro lado, a exposição torna-se demasiado longa, repleta de inúmeras repetições, e o Programa desvia-se continuamente para o terreno do comentário.

Quanto a questão agrária, no programa, foi motivo de grandes controvérsias. Neste ponto, Lênin caiu prisioneiro de esquemas, que não era comum nele:

“Afirmamos – e trataremos de demonstrar – que a exigência de que “os recortes sejam devolvidos” é o máximo que podemos propor neste momento no nosso programa agrário”.

Aqui Lênin está prisioneiro do esquema da socialdemocracia da época sobre o programa máximo e programa mínimo, onde os dois aparecem separados rigidamente, sem palavras de ordem transitórias, entre o programa mínimo e o máximo. Esse esquema impediu que Lênin apresentasse orientações anticapitalistas no campo (por exemplo, a nacionalização da terra), de acordo com sua própria análise que o capitalismo já estava dominante no campo russo. Embora esteja correto em jogar peso nas palavras de ordem de ruptura com os vestígios feudais (o centro era devolução dos recortes e não pagamento do resgate: de conteúdo era uma reforma agraria, completando o que não foi feito na reforma camponesa de 1961), nada impedia que já se avançasse em consignas como tomada das terras dos latifundiários (burgueses inclusive) e a nacionalização da terra (ainda não era a coletivização, mas a estatização da terra no capitalismo) e a entrega aos camponeses pobres em usufruto (de acordo com decisão dos comitês camponeses).

No debate agrário ocorrido no II Congresso (que votou o programa geral e agrário do POSDR), Lênin suavizou essa contraposição rígida ao dizer:

“Dizem-nos que o campesinato não ficará satisfeito com o nosso programa e irá mais longe; Mas não temos medo disso, porque para isso temos o nosso programa socialista, por isso também não temos medo da nova distribuição de terras.”

A que se deve esse esquematismo pouco comum na trajetória de Lênin? Uma hipótese é que este “programa agrário” não era um texto individual e sim coletivo, da equipe de direção do POSDR deste momento. Este texto se debateu por 4 meses na redação da Iskra e cada dirigente pode fazer observações e modificações no texto, por isso, provavelmente Lênin fez modificações no texto para corresponder ao pensamento da socialdemocracia internacional sobre o tema agrário.

O que joga a favor dessa hipótese é a afirmação feita por Lênin logo em seguida (no texto) onde diz:

“E uma vez determinada corretamente esta tendência (em geral e em particular), somos obrigados, em nome dos nossos princípios revolucionários e do nosso dever revolucionário, a lutar com todas as nossas forças, sempre e em todo o lado, pelas nossas reivindicações máximas. Tentar estabelecer antecipadamente, antes do resultado definitivo da luta e no decurso dela, que provavelmente não alcançaremos todas as nossas reivindicações máximas, significa cair no mais puro filisteísmo. Tais considerações levam sempre ao oportunismo, mesmo que os seus autores não o queiram”.

Se vê aqui que Lênin ainda não trabalhava com o método de um programa de transição, que será uma aquisição da III Internacional nos seus 4 primeiros congressos e que, depois, Trotsky transformou em sistema de palavras de ordem, conectando o programa mínimo com o programa máximo através de palavras d ordem transitórias. Porém, a consigna de República que era defendida pelo POSDR cumpria um papel de consigna de transição, independente da vontade ou da consciência dos revolucionários.

Outra afirmação do Lênin, no mesmo texto, demonstra que ele normalmente não fazia um esquema, não separava mecanicamente, entre os elementos feudais e burgueses:

“Reconhecer esta condição significa reconhecer que a evolução da agricultura, apesar de todo o seu emaranhado e complexidade, apesar de toda a variedade das suas formas, é também uma evolução capitalista; que também ela (tal como a evolução da indústria) engendra a luta de classes entre o proletariado e a burguesia; que esta luta de classes deve constituir precisamente a nossa primeira e fundamental preocupação, deve ser a pedra de toque sobre a qual teremos de contrastar tanto as questões de princípio como as tarefas políticas e os métodos de propaganda, agitação e organização.”

Este é o raciocínio que Lênin vem aportando nos últimos 9 anos no POSDR, por isso fica uma incógnita do porquê ele retrocedeu no programa agrário limitando a luta no campo russo a derrubar as “reminiscências feudais”?

Por isso é incompreensível a frase seguinte do programa agrário:

“2. Os comitês de camponeses têm o direito de desapropriar as terras dos proprietários, de trocar terras, etc. (pto. 4, b), com a particularidade de este direito estar limitado apenas aos casos de sobrevivência direta de relações de servidão. Isto é (3), o direito de expropriação e resgate é concedido apenas em relação às terras que, em primeiro lugar, “foram tomadas na forma de recortes aos camponeses durante a abolição do regime de servidão”.”

Não existe clareza do porquê não se deveria lutar pelo confisco de todo latifúndio e porque deveria se lutar apenas pelo confisco dos latifundiários que são donos de 25% das terras da Rússia neste tempo, os nobres. A única explicação é que o assunto não estava claro entre eles e prevaleceu a “norma” da 2ª Internacional que rezava:

“De um modo geral, desenvolver pequenas explorações agrícolas e pequenas propriedades, apoiá-las, fortalecê-las e multiplicá-las não é de forma alguma uma tarefa que caiba à social-democracia. (….) De modo geral, o apoio à pequena propriedade é uma medida reacionária, uma vez que é dirigida contra as grandes explorações agrícolas capitalistas, retardando consequentemente o desenvolvimento social e contribuindo para esfumar a luta de classes.”

Esta orientação estava correta para o camponês francês, que havia adquirido terra na revolução burguesa de 1789, mas como já vimos na Rússia, o camponês pobre estava perdendo o acesso a terra e se proletarizando, enquanto surgia uma burguesia rural poderosa e latifundiária. Lênin, mais na frente, neste mesmo programa agrário concordou com essa situação contraditória do camponês russo e admitiu a defesa da pequena propriedade: “…apoio excepcional e circunstancial à pequena propriedade pela socialdemocracia”.

Deste ponto de vista, era uma obrigação do proletariado apoiar a luta do pequeno camponês pobre russo para ter acesso à terra, inclusive contra a grande propriedade rural burguesa, isto é, o proletariado devia ver esta luta como uma luta democrática do campesinato, portanto como uma alavanca para a luta socialista.

Lênin sempre avistou a questão assim:

“Na questão programática, pegamos muita coisa pronta “dos alemães”, mas no domínio agrário é provável que desenvolvamos algo novo.”

A questão camponesa na Rússia era diferente da Europa nesta época: na Rússia, o camponês pobre podia desempenhar um papel revolucionário, o que de fato ocorreu. Portanto, é mais surpreendente ainda que Lênin tenha aceitado estas emendas que pioraram o programa agrário do POSDR, já que ele tinha claro esta questão.

Portanto, o mais correto era apoiar a consigna de “reparto negro”, isto é, a distribuição de terras entre os camponeses que era a consigna que expressava a aspiração dos camponeses a uma repartição geral da terra, a liquidação de grande propriedade agraria.

Lênin ia nessa direção quando disse, neste mesmo programa agrário:

“Na reivindicação do “reparto negro”, a utopia de querer generalizar e perpetuar a pequena produção camponesa é reacionária, mas nela há também (além da utopia de que o “campesinato” pode ser o portador da revolução socialista) um aspecto revolucionário, nomeadamente: o desejo de varrer todos os vestígios do regime de servidão com uma insurreição camponesa.”

Veja que Lênin apontou no sentido correto, mas, em seguida retrocedeu. Fica a pergunta, porque? Não houve acordo na redação da Iskra? Ao contrapor de forma absoluta a “reforma agrária” ou “reparto negro” ao “fim dos recortes”, Lênin não utiliza as reformas como subproduto e alavanca da revolução socialista, que foi seu método de toda a vida.

Lênin reconhecerá seu erro programático sobre a questão agraria dentro de 5 anos, em 1907, quando escreveu;

“Os acontecimentos demonstraram sem dúvida que o nosso programa de então (a devolução dos recortes) era desproporcionalmente estreito e subestimava as forças do movimento camponês democrático-revolucionário…”

A proposta correta, segundo meu ponto de vista, seria a nacionalização da terra e a entrega em usufruto comunal ou individual, sem direito a vender e uma distribuição feita pelos comitês de camponeses pobres. Isto corresponderia a uma reforma agrária na Rússia e seria uma palavra de ordem de transição, democrática, que podia se converter em socialista ou ao menos atrair o campesinato para o lado do proletariado, na medida em que seria negada essa reforma pela via pacífica.

Por isso, o III Congresso do POSDR, de abril de 1905, aceitou a palavra de ordem de “confisco dos latifúndios”.


[1] Foram preservadas duas variantes do projeto de estatutos do Partido, escritos por Lênin por ocasião da convocação do Segundo Congresso do POSDR. A primeira foi preparada um mês e meio antes do Congresso, depois de tomar conhecimento do projeto de Mártov (ver Compilação Leninista VI, páginas 42-47). A segunda (que aqui se reproduz) – a última – foi dada a conhecer, antecipadamente, ao Congresso, a todos os membros do Conselho Editorial do Iskra e depois aos delegados.

O texto final do projeto de estatutos apresentado por Lênin à Comissão de Estatutos do Congresso não foi preservado, mas, como se pode verificar pelos debates aí realizados, difere do segundo no seguinte: 1) o Conselho do Partido não seria um órgão de arbitragem, mas o órgão supremo do Partido; 2) teria sido solicitado a esse órgão que a cooptação do CO e do CC fosse feita por unanimidade, e que fosse controlado por ambos os órgãos de gestão. -271.

[2] Veja no final deste texto um resumo dos debates sobre o programa do POSDR.                     

[3] 1. É membro do Partido quem aceita o seu programa e apoia o Partido, tanto financeiramente como através da participação pessoal numa das suas organizações.

[4] “El querer demostrar la “incapacidad de obrar” de los organismos centrales por medio del boicot contra ellos constituye una infracción de los deberes ante el Partido, inaudita y sin precedente, y no hay sofisma capaz de ocultar el hecho de que el boicot es un paso hacia la destrucción del Partido. La socialdemocracia rusa ha de atravesar la última y difícil etapa de tránsito del espíritu de círculo al espíritu de partido, de la mentalidad pequeñoburguesa a la conciencia del deber revolucionario, del chismorreo y la presión de círculos a la disciplina.” Lênin, información sobre el II Congreso del POSDR, tomo 8, página 22.

[5] Lênin afirmou em carta a Plekhanov “Por favor, no interprete la entrega de la Redacción en el sentido del famoso boicot. Ello estaría en contradicción con lo que le dije con toda franqueza el 1 de noviembre del año en curso en mi declaración. Como es natural, comunicaré ahora a los camaradas mi renuncia a la Redacción.” “Por favor, não interprete a entrega do meu cargo no Conselho Editorial no sentido do famoso boicote. Isto estaria em contradição com o que eu disse francamente em 1º de novembro deste ano em minha declaração. Naturalmente, informarei agora os camaradas da minha renúncia da Equipe Editorial.”

[6] Veja discurso de Rosa Luxemburgo no congresso do POSDR em maio-junho de 1907, realizado em Londres

[7] Lenin, Carta al grupo bolchevique de Zurich, 18 de enero de 1905, Tomo 9, página 170.

[8] Lenin, Obras Completas, Tomo 41, ano 1920.

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