No dia 30 de maio, um painel de três juízes da Corte Judicial de West Kowloon, na cidade de Hong Kong, condenou 14 ativistas por conspiração e subversão em base à Lei de Segurança Nacional imposta pelo regime chinês ao território de Hong Kong em 30 de junho de 2020. (1)
Por: Fábio Bosco
Outros 31 ativistas serão julgados até o final do ano. Há ainda o recurso da promotoria contra a absolvição de 2 ativistas. São 47 ativistas no total, o maior processo judicial relacionado com a Lei de Segurança Nacional. A maioria deles está preso desde 28 de fevereiro de 2021. (2)
Entre os 14 ativistas condenados está o ativista de esquerda Leung Kwok-hung, mais conhecido como Long Hair. Seu apelido se deve à sua promessa de cortar o cabelo apenas após a volta das liberdades democráticas na China. Também foi condenada a líder sindical das enfermeiras Winnie Yu, presidenta da Aliança Sindical dos Trabalhadores (as) em Hospitais (Hospital Authority Employees Alliance).
Os recursos e as penas serão definidos a partir de 25 de junho e podem chegar a prisão perpétua.
Prévia eleitoral “ilegal”
Os 47 presos políticos são acusados de conspirar contra a ordem política por organizar e participar das eleições primárias que a oposição pan-democrática realizou em 11 e 12 de julho de 2020 com a participação de 610 mil eleitores para a formação de uma lista eleitoral unitária para a eleição ao Conselho Legislativo de Hong Kong (Legco) que se realizaria em setembro de 2020, mas foram adiadas sob alegação de riscos à saúde pública devido à pandemia do coronavírus.
Esta lista unificada da oposição, caso eleita, utilizaria regras parlamentares de rejeição reiterada do orçamento para provocar a queda do governo pró-pequim liderado por Carrie Lam. Esta é a “conspiração” para “minar, destruir ou derrubar o governo” pela qual os 47 ativistas estão sendo processados.
Esta acusação é falsa pois a Lei Básica de Hong Kong não estabelece ao Conselho Legislativo (LegCo) qualquer poder de derrubar ou abrir um processo de impeachment contra o governo. Ao contrário, a Lei Básica dá direito ao governo dissolver o LegCo.
Sarah Brooks, da Anistia Internacional, afirmou que o veredito “representa a eliminação quase total da oposição política e ilustra a rápida desintegração dos direitos humanos em Hong Kong.”
Repressão a protesto
No dia do julgamento, cinco integrantes do partido de oposição de esquerda Liga dos Sociais Democratas organizaram um protesto na frente da Corte para exigir a libertação de todos os presos políticos. Os cinco manifestantes foram presos por “causar desordem em espaço público”. Entre eles está a atual presidenta da Liga, Chan Po-Ying, que também é casada com “Long Hair”.
A Liga foi fundada em 2006 unindo setores oposicionistas como o liderado por Wong Yuk-man (3) e o esquerdista grupo de ação 5 de abril liderado por “Long Hair” para dar voz à classe trabalhadora local e suas reivindicações pelo sufrágio universal, um sistema universal de aposentadoria, contra a especulação imobiliária e as privatizações. A Liga se opunha às políticas conciliadoras e moderadas de outros partidos da oposição pan-democrática, como o Partido Democrático e o Partido Cívico.
“Long Hair” entendia que a luta pelas liberdades democráticas em Hong Kong está indissoluvelmente ligada à luta por liberdades democráticas na China. Por isso se opunha ao regime autoritário de partido único na China e fez da memória do massacre da Praça da Paz Celestial em 1989 um centro de suas atividades.
Hoje a Liga é um dos poucos partidos da oposição democrática que não se dissolveram, apesar de viver sob uma semi-legalidade, perseguidos e sob intensa vigilância. (4)
A longa marcha da volta ao capitalismo na China
A Lei de Segurança Nacional imposta pelo regime chinês à Hong Kong tem como objetivo esmagar as liberdades democráticas em HK e evitar qualquer extensão dessas liberdades para a China o que abriria espaço para a classe trabalhadora questionar o regime de partido único e a exploração capitalista.
A revolução chinesa de 1949, também chamada de terceira revolução chinesa (após as revoluções de 1911 e de 1925-27), conquistou a reunificação nacional de todos os territórios chineses e a melhoria das condições de vida do campesinato através da reforma agrária e da nacionalização da economia.
No entanto, esta revolução vitoriosa não conquistou um regime de democracia operária. Ao contrário, foi imposto um regime de partido único que imitava o regime político autoritário do partido-guerrilha representado pelo Partido Comunista Chinês.
Posteriormente esse mesmo regime de partido único liderou a volta do capitalismo à China.
O primeiro passo foi a aproximação com o imperialismo estadunidense e o reconhecimento da República Popular da China como representante do povo chinês junto a ONU em 1971.
A morte de Mao Tse-Tung e a subsequente prisão da gangue dos quatro em 1976 encerrou a chamada “Revolução Cultural”.
Em dezembro de 1978, Deng Xiao-Ping, já na condição de principal dirigente, defende em reunião do Terceiro Plenum do Décimo-Primeiro Comitê Central, uma reforma política denominada de Boluan Fanzheng (“Eliminar o caos e retornar ao normal” em Mandarim) para “corrigir os erros” da Revolução Cultural.
Simultaneamente ele implementa uma nova política de reformas capitalistas chamada de “Reforma e abertura” para implementar o que foi denominado de “Socialismo com características chinesas” ou “Economia Socialista de Mercado”, mas que, apesar do nome, davam os primeiros passos para a volta ao capitalismo: a descoletivização da terra, a criação de um mercado para a produção excedente das empresas estatais e a política de “portas abertas” para capitais estrangeiros.
A descoletivização da terra foi implementada a priori nas regiões mais pobres através do “Sistema de Responsabilidade Familiar” no qual há a divisão da terra comunal em propriedades rurais de propriedade pública sob administração privada familiar com contratos de produção com os governos locais. Este sistema permitia a venda da produção excedente a preço de mercado. Em 1982-1983 esse sistema de produção agrícola foi regulamentado e implementado em toda a China. Gradualmente as leis capitalistas de mercado passaram a dominar toda a produção agrícola.
A primeira reforma das empresas estatais se deu através do estabelecimento de um mercado para a produção excedente (acima das cotas estabelecidas pela planificação da economia) nos quais as mercadorias eram vendidas a preços de mercado. Este sistema era chamado de “preços duplos” (um preço para a produção definida pelo planejamento da economia e outro preço livre estabelecido pelo mercado capitalista). Também foi incentivada a formação de empresas locais, estatais ou privadas, que “competiam” com os monopólios estatais nacionais, enfraquecendo a economia planificada. Posteriormente o sistema de financiamento da produção, através dos bancos estatais, gradualmente parou de financiar as empresas em base às metas da economia planificada e passou a financiar a partir dos resultados das empresas, alimentando a super-exploração da força de trabalho e fortalecendo a economia capitalista de mercado.
A abertura da economia nacional se deu através da criação de Zonas Econômicas Especiais, áreas nas quais o capital estrangeiro recebia incentivos para se implantar. A mais importante delas foi a Zona Industrial de Shekou em janeiro de 1979 na cidade de Shenzen, próxima à Cantão e Hong Kong. Outra medida importante foi a legalização e regulamentação das empresas em regime de joint-venture unindo capitais nacionais e estrangeiros em julho de 1979. Posteriormente em maio de 1984, 14 cidades costeiras foram abertas ao capital internacional.
Na constituição de 1982, a volta ao capitalismo se materializou na exclusão da referência à “Revolução Contínua sob a Ditadura do Proletariado”. O regime de partido único, que não é incompatível com a volta do capitalismo e que preserva os interesses da burocracia do partido comunista, foi mantido na constituição.
Em 1986 iniciou-se um debate sobre a liberalização dos preços orientada pelo Banco Mundial. Prevaleceu a posição de uma flexibilização de preços gradual. Em 1988, houve uma mudança em favor da liberação radical de preços o que gerou inflação alta, protestos locais, e corrida aos bancos e supermercados. No mesmo ano, a liberação de preços foi revertida. Mesmo assim seus efeitos influenciaram o levante estudantil e popular na Praça da Paz Celestial (Tiananmen).
O massacre da praça da paz celestial em 1989 no qual Deng Xiao-Ping executou cerca de três mil jovens estudantes e trabalhadores que protestavam por liberdades democráticas e por melhores condições de vida, consolida a via chinesa de restauração capitalista com a manutenção do regime de partido único sem liberdades democráticas, formais ou reais. (5)
Por outro lado, as reformas capitalistas foram desaceleradas, e dirigentes que se opuseram à repressão contra os estudantes e trabalhadores em Tiananmen foram afastados e presos. Em 1992, Deng Xiao-Ping faz a famosa visita a Shenzen e outras cidades costeiras durante a qual defendeu a retomada acelerada das reformas capitalistas, incluindo a flexibilização dos preços.
Neste mesmo ano o Estado chinês inicia as privatizações que tiveram um pico em 1997-1998 e se estenderam na década seguinte. Alguns setores estratégicos, de acordo com a lei das corporações de 1994, tais como petróleo e bancos, foram preservados. Em 2005 o setor privado nacional passou a ser responsável por mais de 50% do PIB chinês.
No início da marcha de restauração capitalista, a produção industrial se concentrava em mercadorias de pouco valor agregado como têxteis e produtos eletrônicos mais simples. Quarenta anos depois, a produção industrial se diversificou incluindo mercadorias de alto valor agregado como as redes 5G, navios, aviões, carros elétricos, foguetes espaciais e IA. (6)
A implementação das reformas capitalistas foi lenta e gradual devido às disputas burocráticas internas. Todas as alas defendiam as reformas capitalistas, mas em diferentes formas e ritmos. Todas as alas também defendiam o regime de partido único, mas com diferenças sobre o grau de repressão estatal.
Uma ala era liderada pelo economista Chen Yun. Ele defendia reformas capitalistas graduais, controladas e limitadas (conhecida como Gaiola econômica) e defendeu a repressão contra os protestos estudantis. A outra ala, liderada por Deng Xiao-Ping, defendia reformas capitalistas e a abertura da economia para o capital internacional abrangentes e aceleradas, mantendo o controle estatal sobre algumas empresas e, acima de tudo, mantendo o regime de partido único a qualquer custo. Finalmente havia a ala dos liberais Hu Yaobang and Zhao Ziyang, que defendiam as reformas capitalistas tal como Deng Xiao-Ping, mas se opuseram à supressão dos protestos estudantis em 1976 e 1979 respectivamente e por isso foram afastados do poder central, e até, no caso de Zhao Ziyang, preso.
A emergência da China imperialista
A adesão à Organização Mundial do Comércio em 2001 ampliou o acesso de capitais estrangeiros ao mercado chinês e, ao mesmo tempo, pavimentou o acesso das empresas chinesas, privadas e estatais, ao mercado mundial. Hoje as empresas chinesas estão presentes em cerca de 190 países e regiões em todo o mundo. (7)
Por fim, em 2013 o regime chinês, já na condição de segunda maior economia do mundo, lançou a “Iniciativa da Rota e do Cinturão” (Belt and Road Innitiative – BRI) apelidada de Nova Rota da Seda. São seis rotas terrestres e marítimas cujo objetivo é integrar as economias de diversos países à economia chinesa através de obras de infraestrutura de portos e estradas que induzem a produção nacional de cada país para atender a economia chinesa.
Esta orientação imperialista coloca a China em disputa com as velhas potências imperialistas – Estados Unidos, U.E. e o Japão, que se opõem à emergência de novas nações imperialistas, mas enfrentam dificuldades para impedi-las pela sua condição decadente.
Combinando políticas de mercado com a intervenção estatal, e uma narrativa de um mundo multipolar, o imperialismo chinês, sob o regime de partido único, busca seu lugar ao sol na ordem capitalista mundial.
A luta por liberdades democráticas
A luta por liberdades democráticas na China pode adquirir um papel central na futura revolução operária e popular chinesa.
A disputa inter-imperialista, a redução do crescimento econômico, a possibilidade de estouro da bolha imobiliária, a crescente desigualdade social, a destruição do meio ambiente são fatores que apontam para a deteriorização das condições de vida da classe trabalhadora e da juventude que, ao entrar em movimento na condição de classe explorada e oprimida, invariavelmente enfrentará o regime de partido único e a falta de liberdades democráticas.
Nessa perspectiva é muito importante a classe trabalhadora mundial apoiar as lutas por liberdades democráticas na China, seja se opondo à Lei de Segurança Nacional em Hong Kong e exigindo a liberdade dos presos políticos, seja apoiando os protestos operários e populares, seja relembrando o massacre da Praça da Paz Celestial todo 4 de junho. (8)
Nesta solidariedade internacional, e tendo um partido operário revolucionário a sua frente, a classe operária chinesa encontrará o apoio para levar adiante a quarta revolução chinesa rumo à uma China socialista com democracia operária, integrando uma federação de repúblicas socialistas da Ásia.
NOTAS
(1)
(2)
(3) Wong Yuk-man tinha relações políticas com o partido nacionalista burguês KMT. Após sua ruptura com a Liga em 2011, ele se vinculou com os setores localistas de direita que defendiam a independência de Hong Kong.
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(6)
https://www.bbc.com/news/articles/c3gg32nn9p4o
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