Os 100 anos Nahuel Moreno e a luta por um marxismo vivo e alicerçado na classe operária
Em 24 de abril, Hugo Bressano Capacete, mais conhecido como Nahuel Moreno, completaria 100 anos. Dirigente marxista e revolucionário histórico, de origem argentina, Moreno se vinculou muito cedo ao movimento trotskista, dando um perfil próprio à batalha pela reconstrução da Quarta internacional, tarefa à qual se dedicou até seu último dia de vida, em 25 de janeiro de 1987.
Por: Jerônimo Castro
Na medida em que sua influência foi crescendo, e depois de sua entrada na Quarta Internacional (ainda antes de sua ruptura, na década de 1950), sua importância transcenderia a Argentina, tornando-se fundamental para a organização de dezenas de grupos e partidos, principalmente na América do Sul, mas não somente em nossa região, já que, em diversos momentos, influenciou organizações na Itália, Espanha, Portugal e Inglaterra.
Impulsionador do trotskismo no Brasil e da formação do PT
Para o Brasil e para a história de nossa organização, Moreno foi determinante. Ao perceber que a ditadura militar brasileira estava em crise e que vários setores começavam a se enfrentar com ela, Moreno passou a acompanhar o desenvolvimento da vanguarda que estava surgindo e se envolveu na discussão sobre os rumos da organização brasileira.
Naquela época (final dos anos 1970), nossa corrente apostava na fundação de uma organização socialista ampla, dentro da qual seriamos uma tendência. Esta foi a primeira hipótese sobre o formato do agrupamento que veio a se chamar “Convergência Socialista”.
Nesse processo, Moreno veio (clandestinamente) visitar o Brasil, para melhor acompanhar a discussão e acabou sendo preso junto com outros dirigentes brasileiros, o que levou a uma campanha mundial de solidariedade, por sua libertação e com a exigência de que ele não fosse deportado para a Argentina, onde, nas mãos da ditadura daquele país, sua morte seria certa.
Mesmo assim, Moreno foi fundamental para indicar que o que estava sendo gestado no interior da vanguarda não ia na direção da formação de um Partido Socialista; mas, sim, rumo a um Partido dos Trabalhadores. Uma caracterização que ajudou nossa corrente a ajustar sua política e intervir a fundo na construção do PT.
Nesse processo, também Moreno foi fundamental ao indicar que o centro da atuação de nosso grupo deveria ser a vanguarda sindical e o novo ativismo que estava surgindo aí, o que permitiu que nos transformássemos na organização trotskista com maior influência na classe trabalhadora e na classe operária, em nosso país e, provavelmente, no mundo.
Movimento operário
Uma busca permanente para se vincular à classe operária
Moreno tomou contato com o trotskismo em 1939, quando era estudante secundarista. Participou do que ele mesmo chamaria de “trotskismo boêmio argentino” e, nessa época, teve contato com os principais dirigentes trotskistas do país.
Depois dessa experiência, que durou até 1942/43, Moreno rompeu com esse tipo de trotskismo e voltou-se para o movimento operário, criando um pequeno grupo que foi morar em uma “Villa Pobladora”, um bairro operário, com o objetivo de construir uma corrente trotskista alicerçada na classe operária.
Anos depois, essa orientação seria definida como nosso “desvio-virtude”, uma orientação que, tendo traços de “obreirismo”, foi um acerto que colocou nossa ainda embrionária corrente dentro da disputa por dialogar, influenciar e dirigir uma parte (minoritária, mas importante…) do proletariado industrial.
Essa característica se tornaria uma marca indelével da existência do “Morenismo”, que orgulhosamente cantava e ainda canta que “somos los troskos del movimento obrero”.
Práxis
Um marxismo a serviço de sua atualização permanente
Moreno sempre teve uma atitude aberta diante dos novos acontecimentos no mundo. Exemplo disso é sua explicação profundamente dialética sobre os Estados operários que surgiram a partir de 1948, com a expropriação das burguesias do Leste Europeu, considerando-os uma enorme conquista da humanidade, mas que, desde sua origem, estavam deformados pelo stalinismo.
Essa atitude também esteve presente em cada novo acontecimento da luta de classes durante um período no qual o processo de descolonização dos países periféricos da África, da Ásia e das Américas se combinaram, muitas vezes, com a expropriação de suas burguesias nacionais e, também, das burguesias imperialistas coloniais. Revoluções que, escapando de um esquema pseudo-marxista, foram dirigidas por grupos pequeno-burgueses ou partidos-exércitos, com uma base social camponesa.
Moreno, ao invés de negar essa realidade, buscou entendê-la e incorporá-la às suas elaborações. Independentemente do grau de acerto ou de erro de suas explicações (ou, inclusive, das parcialidades que ele mesmo reconhecia), ao olhar para os novos acontecimentos, ele buscava o que havia de “novo” neles.
Como exemplo, basta citar que ao ver a Revolução Chinesa em curso, Moreno chegou à conclusão de que a teoria militar de Mao Tsé-Tung era uma contribuição ao marxismo revolucionário. Uma conclusão que, contudo, não deveria nos isentar do combate estratégico ao maoismo, enquanto uma variação do stalinismo
Essa postura aberta de Moreno se expressou em sua relação com o historiador e escritor argentino Melciades Peña, que preparou um belíssimo curso para nossa corrente, sob o nome de “Notas de iniciação marxista”.
Nele, numa passagem brilhante e elucidativa, pode-se ler: “O único criador que o marxismo reconhece é o homem [leia-se ser humano], que, com a sua obra, cria um novo mundo e modifica a natureza e a si mesmo. O marxismo rejeita o conceito de Deus e de qualquer força extra-humana ou sobre-humana, localizada acima do homem e que domina o homem, seja chamada de Deus, História, Destino ou Espírito Santo.”
Legado
Moreno e sua contribuição ao Marxismo
Moreno também cumpriu um papel importante na luta pela correta compreensão do “Programa de Transição” e contra o ultraesquerdismo e o oportunismo.
Numa série de documentos preparados entre 1973 e 1974, para o 9° Congresso do Secretariado Unificado (SU), e que, depois, foram publicados em um livro que ficaria conhecido como “O Partido e a Revolução” (ou, ainda, o “Morenaço”), Nahuel criticou os desvios ultraesquerdistas do trotskista belga Ernest Mandel, então um dos principais dirigentes do SU, e sua capitulação ao “Guevarismo”, nos anos anteriores.
Para tal, Moreno discutiu como elaborar as palavras de ordem, a política e o programa de uma organização revolucionária, partindo da análise da realidade, levando em consideração o nível de consciência das massas e colocando suas necessidades no centro de nossas análises, políticas e programas.
A luta por um marxismo proletário
Nos anos 1980, em outra polêmica, desta vez com o francês Pierre Lambert, dirigente da Organização Comunista Internacionalista (OCI), Moreno retomou e sintetizou a experiência marxista com os governos de colaboração de classe – mais especificamente com as chamadas “frentes populares”.
Nos livros e discursos produzidos neste período, enfrentando a capitulação oportunista de Lambert e sua corrente ao governo de Mitterrand, Moreno fez uma síntese magistral da experiência acumulada pelo marxismo revolucionário, mais especificamente por Trotsky, nos anos 1930.
Esses debates, fundamentais, se somaram, como já observamos mais acima, ao seu esforço permanente de construir uma organização que não apenas expressasse uma ideologia proletária, mas que tivesse uma composição proletária, da base à direção.
O fundamental
A relação com os quadros e a formação das equipes
Moreno foi parte central dos quadros trotskistas do pós-guerra, juntamente com os norte-americanos James Cannon e Joseph Hansen, além dos já mencionados Mandel e Lambert, tendo participado da fundação de dezenas de organizações na Argentina e no mundo, se relacionando com ou influenciando milhares de quadros.
Apesar disso, Moreno tinha uma opinião bastante modesta sobre si mesmo. Em forma de piada, dizia que o melhor curso que o partido poderia oferecer seria “A história de nossos erros”. Afirmava, ainda, que ele havia dado uma série de opiniões erradas, sobre diversos assuntos, sempre lembrando que seu próprio trotskismo era um “trotskismo bárbaro”, sempre reconhecendo sua própria ignorância e limitações.
Coerente com essa postura, em vários de seus discursos e obras, é possível constatar que, para ele, o mais importante, o fundamental, são as equipes, os grupos que se formam para juntos, superarmos os problemas existentes. Por isso mesmo, em “Conversando com Moreno” (livro que traz uma longa entrevista, realizada nos anos 1980), ele diz que muitas vezes exerceu a verdade em abstrato, ganhando as discussões, mas perdendo as equipes. Algo sobre o que se lastimava bastante.
Uma vida dedicada à revolução socialista e internacional
Escrever um artigo sobre o centenário de Nahuel Moreno é um desafio. Com quase 50 anos de militância, tendo participado ativamente de grandes acontecimentos, seria possível escrever um livro sobre o assunto. Portanto, ao escrever, há que se escolher. E, como se diz, “cada escolha é uma renúncia”.
Por isso, deixamos de fora aspectos importantes, tanto da biografia quanto da obra de Moreno. Mas, queremos destacar, essencialmente, que Moreno foi um militante trotskista e um internacionalista convicto, que dedicou sua vida à construção de organizações trotskistas e de uma Internacional, intervindo pessoalmente, ou através de seus textos, nos principais acontecimentos da luta de classes mundial.
Como insistimos, também damos muito valor ao fato de que seu trotskismo era o operário. Desde cedo, orientou sua militância e sua atenção para a classe trabalhadora, em geral, e para o proletariado industrial, em particular.
Esse apego à classe operária, fruto de uma profunda compreensão do marxismo, deu uma cara própria à corrente “morenista”. Algo que pode ser constatado até hoje, por exemplo pelo fato de que o PSTU é a organização trotskista com mais enraizamento na classe operária.
Da mesma forma que valorizamos muitíssimo o fato de Moreno ter uma visão aberta do marxismo, sempre consciente de que a interpretação dos novos fenômenos da luta de classes exige novas elaborações, sempre apoiadas no passado e nos princípios, mas também incorporando novos conhecimentos ao marxismo.
Por último, consideramos um legado fundamental sua convicção de que, no centro de tudo, estão as equipes, os grupos humanos com quem se trabalha, a dialética entre a manutenção desses grupos, seu fortalecimento e as discussões necessárias para que ele cresça, acerte etc. Este é um dos grandes desafios que ele enfrentou e nós, ainda, enfrentamos.
Saiba mais
Nahuel Moreno é autor de uma vasta obra. Indicamos, aqui, alguns destes livros.
“O partido e a revolução” (“Morenaço”): Polêmica com Mandel e o SU, em função de seus desvios ultraesquerdistas e sua capitulação ao “guevarismo”;
“Os governos de Frente Popular na História”: Livro que retoma a longa discussão dentro do marxismo revolucionário e sua relação com os governos de conciliação de classes, numa polêmica com Pierre Lambert, sobre o caráter do governo de François Mitterrand (iniciado, na França, em 1981).
“Revolução e contrarrevolução em Portugal”: Obra na qual Moreno faz uma análise da Revolução Portuguesa, que neste dia 25 de abril completará 50 anos, discutindo as principias forças políticas envolvidas no processo e as tarefas que estavam colocadas.