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Haiti: gangsterismo, miséria e crise de dominação capitalista

abril 1, 2024

O Haiti vive uma profunda crise econômica, política e social há vários anos. Esta crise está agora se aprofundando e levando o país a um verdadeiro caos.

Por: Otávio Calegari

Antes de entender a situação atual, precisamos voltar um pouco. Em 2022, como resposta à dura realidade vivida pela classe trabalhadora e pelo povo pobre, houve grandes manifestações e importantes processos grevistas, uma continuação de um processo iniciado em 2018. Naquela época, escrevemos que o Haiti vivia uma verdadeira rebelião popular.[1] Nossos companheiros de Batay Ouvriyé (Batalha Operária), central sindical haitiana com forte presença na classe operária industrial de Porto Príncipe, fizeram vários chamados para mobilizações.[2]

Desde o assassinato do ex-presidente do Haiti, Juvenal Moïse (julho de 2021), o governo haitiano é liderado por Ariel Henry, nomeado por Moïse como primeiro-ministro dois dias antes de seu assassinato. No final de 2021, Henry suspendeu as eleições presidenciais e parlamentares que estavam marcadas (o parlamento já tinha sido dissolvido para o final do seu mandato), mantendo um poder”quase” unipessoal, apoiado pelo poder real do país, os Estados Unidos. Devido à enorme instabilidade política, que se torna ainda mais explosiva pelas manifestações de massa, pelo poder das gangues e pela fragilidade da polícia haitiana[3], Moïse vem pedindo há meses uma nova missão da ONU para “estabilizar” o país.

Devido à decomposição do Estado haitiano e à incapacidade da burguesia haitiana de chegar a acordos para estabelecer seu domínio no país, multiplicaram-se grupos armados ligados a determinados políticos, partidos e empresários, cada um com seus próprios interesses e negócios. Hoje, alguns líderes de gangues têm mais poder do que a Polícia Nacional. Os mais conhecidos e midiáticos são Jimmy Chérizier (apelidado de Barbecue), ex-policial e atualmente chefe do G9, grupo que reúne 9 grupos armados e era muito próximo do ex-presidente Moïse. Outro é Johnson André (apelidado de Izo) que lidera o grupo Vilaj de Dye – 5 Segonn. Segundo estudiosos do gangsterismo no Haiti (que são estrangeiros e não têm presença no país) há outros líderes ainda mais poderosos, mas menos midiáticos.[4] Esses grupos têm tido fortes relações com o aparato estatal por décadas.

A crise se intensificou nas últimas semanas, com ataques coordenados de várias gangues a instituições públicas e privadas, exigindo a renúncia de Henry. Na última quinta-feira (14), a casa do diretor-geral da Polícia Nacional haitiana foi incendiada por um desses grupos.

Os motoristas de ônibus denunciam que as quadrilhas controlam as rodovias, cobrando pedágios dos transportadores,[5] o  que elevou os preços dos alimentos e causou uma diminuição considerável no transporte de mercadorias para diferentes partes do país. As gangues também mantêm o controle do principal porto do Haiti, em Porto Príncipe, dificultando o fornecimento de combustível para a cidade. O combustível está desaparecendo dos postos e já está sendo vendido pelo dobro do preço no mercado paralelo.[6]

De acordo com uma análise da ONU, pode haver uma fome devastadora no país nas próximas semanas. Os níveis de fome em Porto Príncipe já se assemelham aos das zonas de guerra.[7] O principal problema hoje não é a produção de alimentos, mas o transporte de mercadorias para as grandes cidades e sua distribuição.[8] Essa situação caótica já levou mais de 360.000 pessoas a serem deslocadas internamente nos últimos anos para buscar condições de sobrevivência.

Com a escalada da crise, há poucos dias Ariel Henry anunciou sua renúncia. Henry estava em Porto Rico e não pôde retornar ao Haiti. O primeiro-ministro anunciou que renunciará imediatamente quando for formado o Conselho Presidencial de Transição (CPT), um órgão que pretende assumir o comando do Estado como um governo de unidade nacional entre os vários partidos burgueses e organizações empresariais. O CPT está sendo formado a partir de reuniões realizadas pela CARICOM (Comunidade do Caribe) na Jamaica, com a presença de partidos e organizações empresariais haitianas e do secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken.

A formação do novo governo ainda não é uma realidade, pois a profunda crise do Estado haitiano, totalmente incapaz de organizar a dominação burguesa e imperialista no país, ainda está em aberto.

A possibilidade de uma nova ocupação militar

O imperialismo norte-americano tem tido dificuldades em organizar uma nova missão de ocupação, já que a maioria dos Estados que cumpriram esse papel em 2004 (com o início da Minustah), hoje mostram relutância em realizar uma nova invasão. Há algumas semanas, o Estado do Quênia concordou em liderar a nova intervenção militar, que até agora não saiu do papel devido às exigências do governo queniano (ocupar o país apenas após a formação do CPT) e à dificuldade dos Estados Unidos em liberar dinheiro para a transferência de tropas quenianas (o Partido Republicano está colocando obstáculos ao governo democrata).[9] Os governos dos Estados Unidos e do Canadá são os principais promotores da nova ocupação e seus principais financiadores. É muito provável que a ocupação comece nas próximas semanas, com a formação do CPT, embora devido à magnitude da crise também haja a possibilidade de que as condições para a formação do governo provisório e a ocupação sob os moldes atuais não sejam alcançadas.

Uma nova ocupação significaria, sem dúvida, um retrocesso para o povo haitiano. Um confronto entre tropas de ocupação e gangues armadas pode significar um enorme derramamento de sangue, afetando centenas de milhares de famílias. Também é possível que os Estados Unidos consigam negociar com algumas dessas gangues, fazendo acordos para que elas mantenham zonas de influência em troca de permitir a “governabilidade”.

O objetivo de uma nova ocupação é fazer o que a MINUSTAH fez,[10] ou seja, garantir alguma estabilidade política e econômica para que as empresas estrangeiras continuem a explorar a mão de obra barata da classe trabalhadora haitiana e conter o fluxo migratório do Haiti para outros países, como Estados Unidos, Canadá, República Dominicana e outros países latino-americanos.  A ONU ocupou o Haiti por 13 anos, sob o domínio dos EUA, e nenhum dos problemas sociais básicos foi resolvido. Portanto, todas as organizações da classe trabalhadora em todo o mundo devem se opor a uma nova ocupação, que só trará mais sofrimento e miséria ao Haiti.

Por outro lado, a situação atual é insustentável e pode levar a uma guerra civil ou a uma miséria ainda maior para o povo. Por isso, é preciso discutir uma saída para os trabalhadores da crise.

É preciso reagir à barbárie

Não é exagero dizer que há uma situação de barbárie no Haiti, especialmente na capital do país. Os níveis de miséria e violência atingem patamares desconhecidos em outras nações das Américas (chegando muito perto das nações mais pobres da África). A população vive em um verdadeiro inferno, sem saber se terá o que comer no dia seguinte ou se seus parentes serão mortos pela polícia ou por grupos armados. De acordo com os relatos de nossos companheiros em Batay Ouvriyé, a situação das organizações populares é totalmente defensiva, uma vez que as manifestações populares são frequentemente atacadas por grupos armados.

À distância, é muito difícil opinar sobre quais medidas poderiam ser tomadas pelas organizações operárias, populares e camponesas do país, uma vez que as condições de segurança para reuniões, assembleias ou mobilizações são mínimas. Há alguns meses, houve uma grande reação popular com linchamentos de membros de gangues, como relatamos em junho do ano passado.[11] Este é um importante exemplo de reação popular.

Pela situação atual, qualquer possibilidade de saída operária e popular passa pela organização da autodefesa dos setores operários, populares e camponeses, com a formação de milícias populares armadas. Não há outra maneira de enfrentar as gangues, a polícia e uma eventual ocupação se não for com o armamento dos trabalhadores. Não podemos dizer como isso pode ser feito, se através do confisco de armas que entram pelos portos, ataques surpresa a gangues, assaltos a delegacias e quartéis ou outras formas.

As milícias operárias, populares e camponesas devem estar a serviço da organização democrática da classe trabalhadora nas fábricas, nos bairros e no campo. Uma revolução operária, camponesa e popular que varra as gangues e o decadente Estado haitiano é a única maneira de libertar o país de sua crise permanente.

Essa revolução teria que repensar toda a organização social e econômica do país, a começar pela nacionalização dos grandes bancos, das empresas de telefonia, das fábricas e das terras dos grandes latifundiários. Uma das prioridades deve ser garantir que as cidades sejam abastecidas com alimentos produzidos no campo. No Haiti, grande parte da produção agrícola e abastecimento das cidades é realizada por pequenos empresários. É necessária uma aliança entre esse setor e os trabalhadores das grandes cidades.

A burguesia haitiana e o imperialismo provaram ser totalmente incapazes de resolver a enorme crise humanitária que o Haiti vive há várias décadas. Somente um governo da classe trabalhadora com o campesinato pobre será capaz de ditar outro rumo para o Haiti.


[1]  HTTPS://LITS.ORG/S/UNA-NUA-RIBELLION-TI-MASAKA-SHEKKUT-HAITA/

[2] https://litci.org/es/haiti-movilizar-movilizar-movilizar-para-paralizar/

[3] As Forças Armadas haitianas são quase inexistentes, devido à sua dissolução em 1994 – sob ordens dos Estados Unidos – e sua recente reconstrução nos últimos anos

[4] https://www.bbc.com/news/world-latin-america-68534619

[5] https://kiosque.lenouvelliste.com/journal/lenouvelliste/2024-02-17/3093?token=lLiKRfhk4n9UQxEiQEQjzu3Dt5WLwOXUpjaTlRzEVtvfGbooAeJMHYF8xOua&redirect_url=https://lenouvelliste.com/kiosque/le-nouvelliste

[6] https://haitiantimes.com/2024/03/15/gang-haiti-chaos-causing-gas-shortage/

[7] Le chaos règne en Haïti et le risque de famine est élevé, selon le PAM . Le Nouvelliste

[8] Insécurité : Le cri d’un planteur face aux pertes agricoles . Le Nouvelliste

[9] Toujours pas de fonds américains pour financer le déploiement des policiers du Kenya en Haïti . Le Nouvelliste

[10] Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, que durou de 2004 a 2017, liderada pelo governo brasileiro sob comando dos EUA.

[11] https://litci.org/es/haiti-avanza-reaccion-popular-a-la-barbarie/

Tradução: Lílian Enck

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