Lênin dirigente partidário
Introdução: onde se casou com Krupskaya, terminou o desterro na Sibéria, se tornou o principal redator da “Iskra” no estrangeiro, começou a luta contra Bernstein e os economicistas russos e se chocou com Plekhánov.
O quarto tomo das Obras Completas do Lênin reúne as obras escritas entre 1898 e 1901. É o período de confinamento na Sibéria, que foi de 1898 a 1900, quando acabou seu desterro, até abril de 1901 (parte deste tempo vivendo próximo a Petrogrado e em seguida no estrangeiro, período de organização do jornal Iskra).
Por: Nazareno Godeiro
No breve período de 1901, Lênin escreveu, já no estrangeiro, os textos preparatórios do jornal “Iskra” (A fagulha) e da revista teórica, literária e cientifica “Zariá” (Aurora).
Foi um período de dispersão, devido a repressão violenta que se abateu sobre o grupo que inclusive, levou à prisão de toda a direção eleita no primeiro congresso do POSDR, realizado em março de 1898, que contou com apenas 9 socialdemocratas. O congresso criou o partido, porém não dotou de um programa e um estatuto, tarefas que serão supridas pelo II Congresso do partido, em 1903.
Neste período se apresentou também novas correntes de opinião que revisavam o marxismo, capitaneada por jovens dirigentes influenciados pela força do movimento operário espontâneo, com suas greves multitudinárias. A corrente ficou conhecida como “economista”.
Nestes 3 anos, Lênin concluiu “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia” (veja resumo no tomo anterior) e se consolidou como o principal dirigente da organização na Rússia, junto com Mártov[1] e Potrésov (a nova geração dirigente, que surgiu dentro da Rússia), pois os principais dirigentes fundadores (Plekhánov, Vera Zasúlich e Axelrod), que eram de gerações revolucionárias anteriores, estavam no exilio, no estrangeiro. Essa condição de dirigente apareceu em uma carta para A. N. Potrésov, de 27 de junho de 1899 quando discutia:
“O que você me conta sobre a reação contra o marxismo que começou em Petersburgo é novidade para mim. Estou perplexo. “Reação”: você quer dizer entre os marxistas? E qual é? Novamente P.B.[Struve] Ele e companhia. Quem encoraja a tendência de união com os liberais? Aguardo seus esclarecimentos com grande impaciência. Concordo plenamente que os “críticos” apenas confundem as pessoas, e não oferecem absolutamente nada, e que será necessário travar uma luta séria contra eles (especialmente em relação a Bernstein, apenas, haverá algum lugar para lutar…?). Se P. B. “deixar absolutamente de ser camarada, tanto pior para ele. Será uma grande perda, claro, para todos os companheiros, já que ele tem muito talento e muito conhecimento, mas, claro, “amizade é amizade e dever é dever”, e isso não elimina a necessidade de lutar. Compreendo e compartilho perfeitamente a sua “fúria” (provocada pelo epíteto “abominável” (sic!!!) em relação a Plekhanov. A que se deve? Ao artigo na Neue Zeit? À carta aberta a Kautsky sobre quem vai enterrar quem?) e estou ansioso para saber sua resposta à carta em que você dá vazão à sua fúria. (Ainda não vi o livro de Bernstein.) Uma delimitação radical é necessária, claro, mas não aparecerá nem poderá aparecer em Náchalo ou Zhizn: apenas serão publicados ali artigos específicos contra os “críticos” do marxismo. Isto requer uma publicação marxista clandestina e uma Plataforma (se bem entendi). Só então se separarão os camaradas dos “cavaleiros” e só então nenhuma extravagância pessoal ou “descobertas sensacionais” teóricas serão capazes de criar confusão e anarquia. A maldita desorganização da Rússia é a culpada de tudo!”
Em maio de 1898, Nádezhda Krúpskaya chegou, com sua mãe, na aldeia onde Lênin estava desterrado. Ela devia cumprir três anos de desterro e, ao ser noiva de Lênin, se permitiu estar juntos no exílio siberiano, desde que casassem assim que Krupskaya chegasse na região. O casamento se deu em julho de 1898, ela com 29 anos e ele com 28.
Foram três anos muito importantes na formação de Lênin como dirigente, pois elaborou as bases do programa do partido, discutiu as táticas e as formas de organização do partido, especialmente a unificação do trabalho de construção, de agitação e propaganda, a partir de um jornal divulgado em toda a Rússia e iniciou o combate às tendencias internas que tentavam desviar o marxismo do caminho revolucionário e socialista. Ao mesmo tempo, se conectou com os dirigentes da Internacional Socialista, especialmente Kautsky, que estavam dando o combate à tendencia oportunista, liderada por Bernstein, no partido socialdemocrata alemão (PSD).
Em uma carta para seu irmão, Dimitri, de 20 de junho 1899, Lênin escreveu:
“Em geral, sou um oponente cada vez mais determinado da nova ‘orientação crítica’ do marxismo, bem como do neokantismo (que gerou, aliás, a ideia de que as leis sociológicas são separadas das econômicas). O autor dos Ensaios sobre a História do Materialismo [Plekhanov] tem muita razão quando declara que o Neokantismo é uma teoria reacionária da burguesia reacionária, e quando se rebela contra Bernstein.”
Estávamos num período de turbulência do marxismo que ao mesmo tempo em que se afirmava como a principal tendencia do movimento operário internacional, recebia a pressão e a influência de todas as correntes do socialismo internacional e as pressões da burguesia. Estávamos há 15 anos da morte de Karl Marx, em 1883, e apenas três anos da morte de Engels, em 1895.
Neste tomo, Lênin segue escrevendo materiais sobre a economia russa e a polêmica sobre o destino do capitalismo no país. Nessa condição escreveu, em agosto de 1898, “A propósito da nossa estadística fabril”:
O texto demonstrou que a afirmação de Kárishev, economista populista, de que havia uma diminuição de fábricas e de operários na Rússia era falsa porque se baseava em dados totalmente heterogêneos, de anos diferentes com diferentes metodologias. O autor misturou dados de grandes fábricas com pequenas oficinas, que em alguns anos são computadas em outros não. Por isso, Lênin afirmou que, ao contrário de Kárishev, havia um aumento de fábricas (inclusive da grande indústria maquinizada) e de operários.
Escreveu, também, em maio de 1899, “El capitalismo y la agricultura”, defendendo o livro de Kautsky sobre a agricultura no campo e polemizando com um intelectual ligado aos marxistas legais, que estavam “adaptando” o marxismo ao gosto da burguesia liberal russa:
O texto defendeu as conclusões fundamentais do livro do Kautsky “O problema agrário” e desmontou as críticas feitas ao texto por Bulgákov (intelectual pequeno-burguês de “esquerda”).
A primeira polêmica versava sobre a “lei” estabelecida por Marx em que o capital constante (isto é, as máquinas) crescem em proporção maior que o capital variável (salários) na agricultura e na indústria. Bulgákov diz que no campo é o inverso: cresce mais o uso do trabalho que as máquinas na economia agrícola capitalista. Kautsky comprovou com dados da Alemanha, Inglaterra e França que se dava o oposto. Lênin confirmou também para a Rússia, ainda que diz que quando Marx se referiu a “lei geral” não significava que em todos os tempos e todas partes prevaleceria o aumento do capital constante em detrimento dos salários. Porém, hoje no século XXI isso é inquestionável em todos os setores, inclusive na pequena propriedade rural que está se maquinizando também. Quem levou o progresso técnico (as máquinas e a técnica agronômica) foi a burguesia rural e o agronegócio.
A segunda polêmica tratava da separação do camponês da terra, onde Kautsky mostrou o fenômeno da separação do camponês da terra. Isto se passou, na Europa, através da hipoteca das propriedades (dívidas) ou do arrendamento.
Kautsky demonstrou a superioridade da grande produção diante da pequena produção rural. A única vantagem desta é que seu dono e família trabalham até 18 horas por dia e consomem menos que um operário da cidade ou jornaleiro. Porém, estes dois fatos, mostrou o atraso da pequena propriedade cuja vantagem não é a produtividade por hectare, mas trabalhar como burros de carga e alimentar-se como camelos. Kautsky demonstrou, também, que a associação de pequenos produtores em associações e cooperativas só demonstra a validade da grande produção rural, tanto que obrigava os pequenos a se tornarem grandes (através de uma cooperativa). Porém, estas cooperativas se converteram em grandes monopólios setoriais e na quebra da pequena propriedade. Essas cooperativas levaram ao fortalecimento do capitalismo no campo e não do socialismo, da grande produção comunal, coletivista (esta sim superior à grande produção capitalista).
A superioridade da grande produção capitalista diante da pequena produção individual se devia à que a primeira utilizava a cooperação entre operários agrícolas e a divisão de trabalho entre eles, ademais do uso de máquinas e técnicas agrícolas superiores.
“Isto significa apenas que se a produção camponesa permanece ao lado da grande produção, não é por causa da sua maior produtividade, mas por causa das suas menores exigências” (…) [e porque exerce] “…trabalho excessivo e consumo insuficiente na pequena produção” diz Kautsky.
Kautsky desenvolve uma das ideias fundamentais de Marx, que enfatizava categoricamente o papel histórico progressista do capitalismo agrário (a racionalização da agricultura, a separação da terra do agricultor que a possui, a libertação da população rural das relações de dominação e escravidão, etc.), e apontou ao mesmo tempo, com não menos energia, o empobrecimento e a opressão dos produtores diretos, a incompatibilidade do capitalismo com as necessidades de uma agricultura racional. Esta última afirmação era uma ideia central de Marx sobre a questão do campo que agora, no século XXI, está atualíssima, com a destruição ambiental provocada pelo agronegócio multinacional.
O que é importante de notar é a coincidência de Lênin com todo o conteúdo do livro de Kautsky. Ele mesmo desenvolveu todas estas análises especificamente para o campo russo. Ambos livros foram escritos paralelamente, por volta de 1900. A coincidência é normal já que ambos elaboraram sobre a questão agrária partindo da elaboração de Marx e Engels, ainda que Lênin tinha algumas diferenças, por exemplo, defendia a nacionalização da terra enquanto Kautsky defendia que o setor ´privado no campo era mais progressivo que o Estado.
Porém, concomitante com esta polêmica teórico-programática, começou o trabalho de reunir grupos e dirigentes confinados na Sibéria para a elaboração de um jornal que unificasse todos os grupos marxistas (que se denominavam “socialdemocratas” nesse tempo).
Na condição de dirigente da organização dentro na Rússia, iniciou um enfrentamento com uma corrente de “jovens” revolucionários socialdemocratas que defendiam mudar o centro de ação do Partido para as lutas econômicas, deixando a luta pelas liberdades políticas e pela derrubada da autocracia para a burguesia liberal russa. Essa corrente, conhecida como “economista” (traduzido ao português seria “economicista”). Lênin reclamou que o combate teórico a esta corrente estava atrasado:
Considero extremamente prejudicial que esta polêmica com os ultraeconomistas não tenha sido total e completamente divulgada na imprensa: teria sido o único meio sério de esclarecer as coisas e estabelecer algumas teses teóricas de princípio exatas. Em vez disso, o caos completo reina agora![2]
Nesta mesma carta, Lênin continua discutindo com seu camarada de direção o assunto:
O artigo sobre ele no Frankfurter Zeitung e no Zhizn… convenceu-me completamente de que não tinha entendido bem os artigos individuais de Bernstein e que estava emaranhado em mentiras, que ele realmente merecia ser enterrado, como afirmou Plekhanov (Ensaios sobre a história do materialismo) numa carta aberta a Kautsky. Os argumentos de Bernstein, que são novos para mim, contra a interpretação materialista da história, etc., são (de acordo com Zhizn) surpreendentemente fracos. A propósito, você se lembra de como Plekhanov zombou de mim cruelmente e me repreendeu duramente por chamar a concepção materialista da história de “método”? E aqui também Kautsky, ao usar a mesma palavra: “método”, comete o mesmo pecado grave (Zhizn, Janeiro, II, página 53).?”
Em setembro de 1898, Lênin solicitou a Plekhánov que se pronunciasse nos jornais de esquerda russos contra a corrente oportunista de Bernstein, que estava surgindo no partido alemão:
“Você notou os artigos de N. G. na Rússkoe Bogatstvo (nos dois últimos números) contra o “materialismo e a lógica dialética”? São muito interessantes do ponto de vista negativo. Devo confessar que não sou competente para lidar com os problemas levantados pelo autor e estou extremamente surpreso que Plekhanov não tenha dado a sua opinião nas publicações russas, nem tenha se expressado resolutamente contra o neokantismo, permitindo que Struve e Bulgákov debatessem alguns aspectos desta filosofia., como se já fizesse parte dos conceitos dos discípulos russos”.
Nesta discussão, Lênin teve que estudar filosofia, para tomar um posicionamento tanto sobre a corrente populista quanto aos “marxistas legais”, que seguiam as posições de Bernstein. Numa carta a A. N. Potresov, de 27 de junho de 1899 ele disse:
“Estou cada vez mais indignado com as “descobertas sensacionais” dos discípulos russos e com o seu neokantianismo. Li o artigo de Tugán-Baranovski na edição nº. 5 de Naúchnoe Obozrenie… Que grande estupidez e que absurdo pretensioso! Sem qualquer estudo histórico da doutrina de Marx, sem novas pesquisas, com base em erros de esquemas (modificação arbitrária da norma da mais-valia), com base na tomada como regra geral de um caso excepcional (aumento da produtividade do trabalho sem diminuição do valor do produto: um absurdo se tomado como fenômeno geral), com base em tudo isso falar de uma “nova teoria”, do erro de Marx, de reconstrução… Não, não posso dar crédito a sua declaração de que Tugán-Baranovski se torna cada vez mais um camarada. Mikhailovsky tinha razão quando o chamou de “eco man”: o seu artigo no Mir Bozhi (“à la Béltov”, lembra?, em 1895) e este último artigo confirmam o julgamento severo daquele crítico tendencioso. Também é confirmado pelo que você e Nádia disseram sobre suas qualidades pessoais. É claro que tudo isto não é suficiente para tirar uma conclusão definitiva e é muito possível que eu esteja errado. Estou interessado em saber sua opinião sobre o artigo.
Além disso, existe esta ideia de fazer uma diferenciação entre categorias “sociológicas” e “econômicas” que Struve lançou (no nº 1 de Naúchnoe Obozrenie) e foi repetida tanto por P. Berlin (em Zhizn) como por Tugán-Baranovski. Na minha opinião, isto não promete nada mais do que um jogo de definições completamente insensato e escolástico, ao qual os kantianos dão o nome retumbante de “crítica de conceitos” e até de “gnoseologia”. Simplesmente não consigo compreender que sentido tem esta diferenciação: como pode existir algo econômico fora do social?
(…)
“Sobre o neokantianismo. Qual é a sua posição? Li e reli com grande prazer Ensaios sobre a História do Materialismo, li os artigos do mesmo autor [Plekhanov] no Neue Zeit contra Bernstein e Konrad Schmidt (Neue Zeit, nº 5, de 1898-1899: tenho não vi os números a seguir); Li Stammler (Economia e Direito), que nossos kantianos tanto elogiaram (P. Stammler, em particular, desperta minha indignação; não consigo ver nele sequer um indício de algo novo e significativo… Pura Escolástica teórica-cognitiva. “Definições” tolas de um advogado medíocre, no pior sentido desta última palavra, e “conclusões” não menos tolas tiradas delas. Depois de Stammler, reli os artigos de Struve e Bulgákov em Nóvoe Slovo e descobri que o neokantismo, de fato, deve ser enfrenta-lo muito seriamente. Eu não pude mais me conter, especialmente na minha resposta a Struve (Algo mais sobre a teoria da realização)…(…) eu digo “eu não pude mais me conter”, porque eu tenho plena consciência da minha falta de cultura filosófica e não me proponho escrever sobre estes temas até ter estudado mais. É precisamente a isso que me dedico agora: comecei com Holbach e Helvetius e proponho passar para Kant. Obtive as principais obras dos principais filósofos clássicos, mas não tenho os livros neokantianos (encomendei apenas os de Lange). Por favor, deixe-me saber se você ou seus camaradas os possuem e se podem compartilhá-los comigo.
Através desta carta, podemos ver que se trata de um mito interessado em contrabandear uma revisão do marxismo, a visão de que Lênin só veio a conhecer Hegel e aprofundar o estudo do materialismo e da dialética depois da Primeira Guerra Mundial. Esse mito diz que Lênin “entrou em crise com a traição da II Internacional” e se meteu numa biblioteca para estudar Hegel e só assim passou a compreender a dialética pois, até então, não passava de um “materialista tosco”, expressado no livro “Materialismo e Empiriocriticismo”.
Lênin escreveu o primeiro folheto de combate teórico a corrente “economista” – que era produto da adaptação do jovem partido às grandes greves operarias e lutas econômicas que explodiram na Rússia durante a segunda metade dos anos de 1890.[3] O texto se denominou “Protesta de los socialdemocratas de Rusia”, foi escrito em agosto de 1899, em pleno confinamento, e foi o primeiro texto de Lênin criticando a corrente revisionista do marxismo que estava se formando ao nível internacional, mas que na Rússia teve como expressão a corrente “economista”. Lênin apresentou o texto em uma reunião com 17 confinados na mesma comarca da Sibéria. O texto foi enviado e publicado nos órgãos da socialdemocracia russa no exterior e defendeu os seguintes pontos de vista:
Texto do “Credo” resumindo posições da corrente “economicista”:
“crise do marxismo… É difícil imaginar um curso mais lógico das coisas do que o período de desenvolvimento do movimento operário desde o Manifesto Comunista até à bernsteiniada, e o estudo cuidadoso de todo este processo pode determinar, com precisão astronômica, o resultado desta “crise”. Não se trata aqui, evidentemente, da derrota ou da vitória da Bernstein, o que pouco interessa. Trata-se de uma mudança radical na atividade prática, que se vem realizando gradualmente há muito tempo no seio do Partido. Esta mudança realizar-se-á não só no sentido de sustentar uma luta econômica mais enérgica, de consolidar as organizações econômicas, mas também, e isto é mais essencial, no sentido de modificar a atitude do Partido face aos restantes partidos da oposição. O marxismo intolerante, que nega o marxismo, o marxismo primitivo (que utiliza uma concepção demasiado esquemática da divisão da sociedade em classes) dará lugar ao marxismo democrático, e a situação social do Partido na sociedade moderna terá de mudar profundamente. O Partido reconhecerá a sociedade. As suas tarefas estritamente corporativas, na maioria dos casos sectárias, serão expandidas para se tornarem tarefas sociais, e o seu desejo de conquistar o poder será transformado no desejo de modificar, de reformar a sociedade moderna num sentido democrático, adaptado ao estado atual das coisas, para poder defender da forma mais feliz e completa os direitos (de todos) das classes trabalhadoras. O conteúdo do conceito “política” expandir-se-á até adquirir um significado verdadeiramente social, e as exigências práticas do momento adquirirão maior peso, poderão contar com uma atenção maior do que até agora.”
O centro da tática dos “economistas” era:
“Os marxistas russos só têm uma saída: participar, isto é, ajudar a luta econômica do proletariado e participar na atividade da oposição liberal. Os marxistas russos começaram muito cedo a ser “negacionistas”, e esta negação enfraqueceu neles a parte da energia que deveria ser canalizada para o radicalismo político”.
Lênin advertiu os militantes do partido do perigo que representava esta corrente: desviar da estratégia de “a formação de um partido político operário independente, inseparável da luta de classes do proletariado e com a tarefa imediata de conquistar a liberdade política.”
Em seguida, ele desmontou as duas principais argumentações dos “economicistas”: a primeira de que o movimento operário não participou das revoluções burguesas e da luta política em geral e a segunda, que o proletariado teria como eixo a luta econômica e participaria da luta política de forma acessória à burguesia liberal.
Lênin defendia que: “mas a questão geral ou de princípio é colocada, também agora, da mesma forma que foi colocada pelo marxismo. A convicção de que a luta de classes do proletariado é única e deve necessariamente abranger a luta política e econômica enraizou-se na social-democracia internacional.” Em seguida Lênin definiu a estratégia votada no I Congresso partidário de 1898: “O proletariado deve aspirar a fundar partidos políticos operários independentes cujo objetivo principal seja a conquista do poder político pelo proletariado, a fim de organizar a sociedade socialista.” Acusou os “economicistas” de “empobrecer o marxismo revolucionário até reduzi-lo a uma vulgar corrente reformista.” Explicou que o Congresso votou três princípios fundamentais explicitados no Manifesto:
1. Em primeiro lugar, a social-democracia russa “quer ser e continuar a ser um movimento de classe das massas trabalhadoras organizadas”, unindo a luta política e econômica, agitando as necessidades imediatas do proletariado e combatendo todas as expressões de opressão, promovendo a propaganda do socialismo científico e das lutas por ideias democráticas. “Ao concentrar agora todas as suas forças no trabalho entre os trabalhadores das fábricas e das minas, a social-democracia não deve esquecer que, à medida que o movimento se expande, os trabalhadores domésticos, os artesãos, os trabalhadores agrícolas e milhões de camponeses arruinados e famintos.”
2. Segundo: “A classe trabalhadora russa deve carregar e carregará nos seus ombros fortes a causa da conquista da liberdade política”. Um partido operário independente, na vanguarda da luta democrática, está condicionado a fazer acordos práticos temporários com os sectores verdadeiramente revolucionários da burguesia e da pequena burguesia.
3. Terceiro: “Como movimento e corrente socialista, o Partido Operário Social-Democrata Russo continua o trabalho e as tradições de todo o movimento revolucionário russo que o precedeu; e a social-democracia, que é colocada como a tarefa imediata mais importante de todo o Partido, a conquista da liberdade política, marcha para o objetivo já claramente indicado pelos gloriosos militantes da antiga organização Vontade do Povo.”
Lênin fez, neste texto de 1899, uma caracterização da corrente revisionista dirigida por Bernstein: “A famosa “bernsteiniada” …. “Significa uma tentativa de empobrecer a teoria do marxismo, uma tentativa de transformar o partido revolucionário dos operários num partido reformista”.
Essa corrente economicista se conectou com a corrente revisionista que estava surgindo no Partido Social-Democrata Alemão, dirigida por Eduard Bernstein.
Lênin abriu uma guerra a estas correntes revisionistas do marxismo, afirmando o marxismo como teoria e organização proletária e revolucionária.
Em torno do tema escreveu quatro artigos para o jornal “Rabochaya Gazeta” que, posteriormente, serão a base do livro Que Fazer? e do projeto de programa do partido.
“Nosso Programa”:
Para Lênin, na passagem do século XIX para o XX estava ocorrendo “um período de vacilação do pensamento”, que estava se expressando no surgimento de uma corrente revisionista internacional.
“Estamos inteiramente baseados na teoria de Marx, que pela primeira vez converteu o socialismo de utopia em ciência, lançou as bases sólidas desta ciência e traçou o caminho que deve ser seguido para desenvolvê-la e elaborá-la em todos os seus aspectos.” O marxismo como visão de mundo cujo objetivo é liderar uma luta de classes pela tomada do poder político pelo proletariado e construir o socialismo. Para ele, este revisionismo não contribui com nada de novo ao marxismo, mas cola remendos de teorias premarxistas para “emendar” o marxismo. Retroceder, na verdade. Aqui Lênin expressa, pela primeira vez, uma frase famosa: “não pode haver um partido socialista forte sem uma teoria revolucionária…” Ele também afirmou que não é contra o desenvolvimento independente da teoria marxista na Rússia porque o marxismo formula apenas as suas diretrizes gerais e cada país tem suas especificidades. Portanto, é necessário desenvolver um programa para o país cujo centro é a conquista do poder para fazer avançar o socialismo, para combinar a luta econômica prática com a luta política, a classe trabalhadora deve tornar-se a vanguarda da luta pela democracia, etc.
“Nossa tarefa imediata”:
Depois de um começo brilhante que culminou com a fundação do POSDR em 1889, houve um retrocesso (devido à repressão) e um retorno aos trabalhos dispersos. A tarefa imediata do partido, segundo Lênin, era realizar a unificação, buscando a forma adequada. A dispersão e o trabalho artesanal não permitiam uma agitação e propaganda unificada para a elevação da consciência da vanguarda proletária: isso impedia a luta econômica em elevar-se a uma verdadeira luta de classes. “A luta dos trabalhadores contra os capitalistas se converte necessariamente numa luta política, na medida em que se converteem luta de classes”.”
“A social-democracia não se reduz simplesmente a servir o movimento operário, mas é “a fusão do socialismo com o movimento operário” (de acordo com a definição de K. Kautsky que reproduz as ideias básicas do Manifesto Comunista); A sua tarefa é introduzir certos ideais socialistas no movimento operário espontâneo, ligá-lo às convicções socialistas, que devem corresponder ao nível da ciência contemporânea, ligá-lo a uma luta política sistemática pela democracia, como um meio de tornar o socialismo uma realidade, numa palavra, fundir este movimento espontâneo num todo indivisível com a atividade do partido revolucionário.”
Porém, a elaboração do programa e a organização do partido na Rússia forjaria seus próprios meios, diferentes das organizações marxistas europeia ocidentais. Como combinar a liberdade de atividade local com uma ação centralizada nacionalmente? Como combinar uma luta por um partido revolucionário para derrubar a autocracia negando-se a utilizar métodos terroristas ou complôs de gabinete?
Lênin respondeu a tudo isto com uma tarefa mais urgente: a organização de um jornal do partido, que apareceria regularmente, e que unificaria o trabalho de todos os grupos locais, sem relegar a segundo plano a agitação, as manifestações de massas, as greves, etc. Estas atividades no movimento são fundamentais para o partido, porém se não se unificavam nacionalmente, perderiam a eficácia. Esse jornal era vital para a Rússia que não dispõe de atividades legais como os outros partidos da Europa Ocidental, como atividade parlamentar, sindicatos, participação nas eleições, etc.
“Não acreditamos em conspirações, renunciamos a derrubar o Governo através de ações revolucionárias isoladas; O slogan prático do nosso trabalho são as palavras do veterano da social-democracia alemã, Liebknecht: estudar, propagandear, organizar, e o centro desta atividade só pode e deve ser o órgão do Partido.”
“Uma questão urgente”:
“Aqui abordamos o problema urgente do nosso movimento, o seu ponto nevrálgico: a organização. “É uma necessidade urgente melhorar a organização e a disciplina revolucionárias e aperfeiçoar a técnica do trabalho clandestino.”
Advogou pela formação de um partido com militantes ativos, centralizados a partir de um jornal regular e dando importância à organização do partido, a disciplina e a técnica da ação clandestina e a distribuição de tarefas de acordo à especialização individual dos militantes. Lênin dizia que não faltava gente para construir o partido na Rússia.
O jornal deveria ser considerado como próprio por cada militante. A distribuição do jornal devia ser feita com regularidade e em grande quantidade nos centros industriais e cidades fabris, nos bairros operários, nas periferias pobres e o lançamento do partido iria ampliar e aprofundar a propaganda e a agitação do partido.
Ainda em 1899, escreveu “O projeto de programa do nosso partido”:
Lênin argumentou contra a visão de que precisa, antes de elaborar um programa para o POSDR, fortalecer as organizações locais. Ele sustentou, ao contrário, que o partido já deixou pra trás o período das polêmicas teóricas com as outras organizações revolucionárias e está superando o trabalho artesanal de círculos regionais. Justamente estes dois elementos colocavam a necessidade de um programa para expressar os conceitos fundamentais, definir as tarefas políticas imediatas, as palavras de ordem de agitação de conjunto nacionalmente. O partido já cresceu muito em sua influência e necessitava de um programa para solidificar esse crescimento. O programa era uma necessidade para fundir o movimento espontâneo com o socialismo e a luta política, para formar um partido revolucionário. As divergências que existiam na socialdemocracia era mais um argumento a favor da elaboração do programa.
Lênin discorreu sobre o método de elaboração do programa ou mesmo o método para enfrentar os debates polêmicos no interior do partido:
“Por outro lado, para que a polêmica não seja estéril, para que não degenere em conflitos pessoais, para que não conduza a uma confusão de conceitos e não nos faça tomar os nossos inimigos por camaradas e vice-versa, por tudo isso é necessário que a questão do programa figure nessa polêmica. A controvérsia só pode ser útil se esclarecer o verdadeiro conteúdo das divergências, se mostrar até que ponto são profundas, se revelar se são divergências de substância ou de pormenor, se deixar claro se essas diferenças são ou não são um obstáculo ao trabalho conjunto dentro do mesmo partido. Só poderemos obter a resposta que todas estas questões tão urgentemente exigem se o problema de o programa aparecer na controvérsia, se as duas partes em disputa expressarem especificamente as suas opiniões programáticas.”
Lênin começou analisando o projeto de programa de 1895 do grupo Emancipação do Trabalho (predecessor do POSDR) e concluiu que estava bastante atualizado:
“Começaremos, portanto, examinando este projeto. Apesar de ter sido publicado há quase 15 anos, em nossa opinião, cumpre o seu propósito de forma muito satisfatória, em termos gerais, e está ao nível da moderna teoria social-democrata. O projeto indica com precisão a única classe capaz de desempenhar na Rússia (como em outros países) o papel de lutador independente pelo socialismo: a classe operária, o “proletariado industrial”; Indica o objetivo que esta classe deve perseguir: “a transformação em propriedade social de todos os meios e objetos de produção”, “a supressão da produção comercial” e “a sua substituição por um novo sistema, por um sistema de produção social”, que é, “a revolução comunista”; aponta-se “a condição prévia e inescusável” “da reorganização das relações sociais”: “a conquista do poder político pela classe trabalhadora”; Aponta-se a solidariedade internacional do proletariado e a necessidade de “diversidade nos programas dos social-democratas dos diferentes países, de acordo com as condições sociais de cada um deles”; são apontadas as peculiaridades da Rússia, “onde as massas trabalhadoras estão sujeitas ao duplo jugo do capitalismo em desenvolvimento e da economia patriarcal moribunda”; Aponta-se a relação entre o movimento revolucionário russo e o processo de criação (através do capitalismo em desenvolvimento) da “nova classe do proletariado industrial, dotada de maior capacidade de assimilação, com mais liberdade de movimento e mais culta”; Aponta-se a necessidade de estabelecer “um partido revolucionário dos trabalhadores” e que “a primeira tarefa política” desse partido é “a derrubada do absolutismo”; São também indicados “os meios pelos quais a luta política deve ser levada a cabo” e são expostas as exigências fundamentais desta luta.
Porém, Lênin propôs algumas modificações:
- Modificar a estrutura do programa, pois o de 1875 era um programa de um grupo fundacional, com algumas dezenas de militantes, e agora (em 1900) já era um partido de vanguarda, com centenas de militantes. A primeira parte pode se designar exposição de princípios. É necessário, segundo ele, sublinhar o desenvolvimento econômico que dá a base material e espiritual da socialdemocracia e para a luta de classes. Encabeçar o programa com as características fundamentais e o desenvolvimento do regime econômico atual. Seguindo com a tendência fundamental do capitalismo em dividir a população entre burguesia e proletariado e o aumento da miséria (teoria do empobrecimento) deste como subproduto da acumulação do capital. Essas modificações vão no sentido de aproximar o programa do POSDR do programa do PSD alemão (programa de Erfurt). “Mas a imitação não pode de forma alguma tornar-se uma simples cópia. A imitação é completamente legítima, uma vez que na Rússia também observamos os mesmos processos fundamentais no desenvolvimento do capitalismo, as mesmas tarefas fundamentais dos socialistas e da classe trabalhadora, mas isto não deve fazer-nos esquecer em qualquer caso as peculiaridades da Rússia, que deve ser plenamente refletido nas peculiaridades do nosso Programa”. Estas peculiaridades tinham a ver principalmente com a luta contra os restos feudais e a luta contra a autocracia, introduzir a questão camponesa, que se refletia nas tarefas políticas e nas táticas de luta, diferentes das predominantes na Europa Ocidental. A partir daqui, devia entrar a definição da luta de classes do proletariado, seu objetivo final, a propriedade social, o caráter político da luta de classes e seu objetivo imediato: a derrubada da autocracia. Lênin opinava que não se devia introduzir as táticas no programa, exceto as táticas fundamentais como as alianças com outros partidos e classes e a questão do terror (que deve ser rechaçado nesta conjuntura da Rússia, mas não deve ser rechaçado por principio).
- Na segunda parte do programa, a parte da Legislação, Lênin sugeria não seguir o programa de Erfurt e apenas exigir uma “constituição democrática”.
- Na terceira parte (prática) do programa, ele dividia em três partes: transformações democráticas gerais, medidas protetivas ao proletariado e medidas que beneficiem os camponeses. E passa a desenvolver cada uma delas, especialmente uma análise detalhada das classes no campo e da situação do campesinato russo.
Assim, Lênin resenhou, no final de 1899, o livro de Kautsky “Bernstein e o programa social-democrata. Uma anticrítica” que combateu a orientação de Bernstein:
“Kautsky começa a sua anticrítica com o problema do método. Examina as objeções de Bernstein à compreensão materialista da história e demonstra que confunde a noção de “determinismo” com a de “mecanismo”, que confunde livre arbítrio com liberdade de ação, que identifica, sem qualquer fundamento, a necessidade de ligação histórica com a situação desesperada e compulsiva dos homens. A desgastada acusação de fatalismo, que Bernstein repete, já foi refutada pelas próprias premissas da teoria histórica de Marx. Nem tudo pode ser reduzido ao desenvolvimento das forças produtivas, diz Bernstein. Outros fatores também devem ser “levados em conta”. Muito bem, responde Kautsky, mas é isso que todo investigador deve fazer, qualquer que seja a compreensão da história que o guie. Quem tentar nos obrigar a renunciar ao método de Marx, tão brilhantemente justificado e justificado na prática, deve escolher entre dois caminhos: ou renuncia completamente à ideia de lei objetiva, da necessidade do processo histórico – e então ele descarta todas as tentativas de dar uma base científica à sociologia – ou deve demonstrar como, a partir de outros fatores (por exemplo, concepções éticas), a necessidade do processo histórico pode ser deduzida, deve demonstrá-la por meio de uma análise que seja capaz de resistir pelo menos a uma comparação remota com a análise que Marx faz em O Capital”.
Muito importante a diferenciação entre a “determinação” (ou condicionamento) com o “fatalismo”: essa precisão é o que diferencia o marxismo científico do determinismo vulgar, que vê a realidade como produto de leis mecânicas que ocorrem sim ou sim devido a mecanismos intrínsecos da economia e que se refletem automaticamente na política. Esse marxismo vulgar (levado ao extremo pelo stalinismo) se tentou confundir, muitas vezes pela própria burguesia, com o marxismo.
A partir daqui, Bernstein se rebelou contra “o dogma que aprisiona o pensamento” e começou a derrubar as bases do pensamento marxista: atacou uma suposta teoria da “crise geral capitalista”, que o capitalismo cairia necessariamente a partir de uma crise econômica final. Bernstein buscou dados que demonstravam o crescimento da pequena propriedade para mostrar que o capitalismo está em pleno desenvolvimento e não em crise. Colocava, inclusive, vendedores ambulantes (nossos camelôs) como pequenos proprietários. Kautsky faz uma observação importante (principalmente para o século XXI), onde o surgimento de milhões de “empreendedores” revelou mais a existência de um enorme exército de desempregados, o aumento da miséria, do que o vigor do capitalismo. O surgimento das Sociedades Anônimas mostraria a democratização da propriedade ao invés da concentração capitalista. Bernstein questionava a “lei da miséria crescente” no capitalismo já que via uma melhora do conjunto da sociedade, inclusive da classe operária. Com isso, questionava a lei da acumulação capitalista que engendrava riqueza em um polo cada vez menor enquanto espalhava a miséria para setores cada vez mais amplos da sociedade. Bernstein se amparava numa visão da Alemanha imperialista do início do século XX. Hoje, 100 anos depois, a teoria marxista se vê comprovada na realidade mundial de forma espetacular num punhado de bilionários e num oceano de miséria. Bernstein via também como vitalidade do capitalismo o surgimento de empregados de colarinho branco, uma classe média que tem bons rendimentos como comprovação do erro da teoria marxista. Na verdade, essas novas profissões conformavam um novo setor do proletariado (setor aristocrático ou setores médios do proletariado) que se confundem com a pequena burguesia por suas condições de vida, muito diferentes do proletariado em geral. Historicamente, tem se confirmado a quebra da pequena propriedade pela grande propriedade burguesa e a proletarização (ou semiproletarização, empobrecimento generalizado) da pequena burguesia. Também opinava que os cartéis empresariais poderiam impedir as crises econômicas regulando a produção entre elas.
Por fim, Kautsky afirmava que “Bernstein transforma as condições puramente temporais de uma dada situação histórica numa lei geral”.
E, seguindo o combate à corrente revisionista, Lênin redigiu “Uma tendência retrógrada na socialdemocracia russa”, no final de 1899:
O texto é uma crítica à corrente economicista, surgida no POSDR em finais dos anos 1800. Lênin história o surgimento do POSDR, desde 1883 quando Plekhánov formou o grupo Emancipação do Trabalho e fundiu dois movimentos que andavam separados: a luta socialista e a luta operária. O POSDR é a fusão do socialismo com o movimento operário. Segundo Lênin: “A orientação do socialismo para a fusão com o movimento operário é o principal mérito de C. Marx e F. Engels: criaram uma teoria revolucionária que explicou a necessidade desta fusão e propuseram, como tarefa dos socialistas, organizar a luta de classes do proletariado”.
Aqui ele desenvolve sua visão da relação entre os trabalhadores de vanguarda, militantes do partido, e os setores atrasados do proletariado. Estes terminam seguindo os proletários conscientes, que souberam ganhar a confiança dos setores atrasados
A necessidade de fundar partidos políticos operários independentes vem da experiência secular do movimento operário da Europa. Os economicistas pregavam um programa do próprio movimento, baseado em pequenas reformas, limitando-se aos interesses do momento. A socialdemocracia sempre atuou na luta espontânea para dirigi-la contra a autocracia. Agora, os economicistas queriam manter a luta no patamar das reivindicações por melhorias para os operários.
A diferença foi se ampliando porque os economicistas colocavam a luta política contra o absolutismo nas mãos da burguesia e Lênin afirmava que a burguesia era contrarrevolucionária e que, portanto, não lutaria de forma efetiva contra o absolutismo.
O eixo do pensamento dos “economistas” podia se resumir na seguinte frase:
“Que luta dos trabalhadores seria desejável?” pergunta R. M., e ele mesmo responde: seria desejável a luta que é possível, e é possível aquela que os trabalhadores “sustentam” no “momento atual”!!! Difícil expressar mais claramente o oportunismo sem sentido e sem princípios de que sofrem os editores do Rabochaya Misl, seduzidos pelo “bersteinianismo” que está tão em voga! É desejável o que é possível e é possível o que se tem no momento atual!”
Por fim, Lênin tratava de explicar o surgimento desta tendência na socialdemocracia russa. “Mas aconteceu o contrário: a propagação da agitação colocou os social-democratas em contato com os setores mais baixos e menos desenvolvidos do proletariado; A incorporação destes exigiu que o agitador soubesse adaptar-se ao nível mais baixo de compreensão, habituou-o a colocar “as exigências e interesses do momento” em primeiro plano e a adiar os ideais amplos do socialismo e da luta política. (…) “Neste exagero desproporcional de um aspecto do trabalho social-democrata vemos precisamente a causa fundamental do lamentável declínio dos ideais da social-democracia russa.”
Lênin observava a verdadeira relação que devia haver entre os operários de vanguarda e a massa operária. Trabalhava por formar uma “intelectualidade operária” que dirigiria a massa operária atrasada. Falava, inclusive, que o jornal não seria entendido por todos os operários, mas que seu nível não devia ser rebaixado ao nível dos operários atrasados, devia elevar o nível dos leitores e elevar estes operários atrasados para ocupar papel dirigente na luta revolucionária e no partido proletário. Para alcançar o nível da massa operária, Lênin sugeria usar outras formas de agitação e propaganda, como folhetos numa linguagem popular, agitação oral, panfletos dedicados às lutas locais, etc. O partido poderia até utilizar meios educativos legais (alfabetização de adultos, por exemplo) para se aproximar desse setor.
E produziu outro texto polêmico contra o programa “economicista”, no início de 1900, “A propósito da ‘Profissão de fé’’”
Neste artigo Lênin continuou a crítica aos “economicistas” e a sua “profissão de fé” que começa dizendo:
“A primeira frase da Profession de foi já provoca a mais grave perplexidade: “Reconhecendo que a luta pelos direitos políticos do proletariado é a tarefa geral imediata do movimento operário na Rússia, o Comitê não considera, no entanto, que seja possível no “momento atual é exortar a massa de trabalhadores à ação política, ou em outras palavras, à realização de agitação política, uma vez que os trabalhadores russos, em geral, ainda não amadureceram para a luta política”.
A primeira crítica do Lênin era que desde que o marxismo se consolidou mundialmente, partindo do Manifesto Comunista, que considerava toda luta de classes como uma luta política e que o movimento operário para superar sua infância só se converteria em movimento de classe quando passasse a lutar politicamente. Só se educava quando passava a fazer uma luta política geral.
Os economicistas criticavam os marxistas e revolucionários por levar uma luta ininteligível para a maior parte dos operários e Lênin retrucava que o partido marxista ainda que faz uma agitação geral sobre toda a classe trabalhadora e sobre a sociedade, ele sempre será o partido dos operários de vanguarda e não dos operários atrasados politicamente.
“A tarefa da social-democracia é desenvolver a consciência política das massas e não ir a reboque de uma massa sem direitos políticos; Em segundo lugar – e isto é o principal – é falso que as massas não compreenderão a ideia de luta política. Até o trabalhador mais atrasado o compreenderá, desde que, claro, o agitador ou propagandista saiba abordá-lo de uma forma que transmita essa ideia numa linguagem inteligível e com base nos fatos da vida quotidiana conhecidos pelo seu interlocutor. Mas esta condição é também indispensável para tornar compreensível a luta econômica: neste campo o trabalhador atrasado, que pertence aos setores baixo e médio das massas, não é capaz de assimilar a ideia geral da luta econômica; Esta ideia é assimilada por um pequeno número de trabalhadores instruídos que as massas seguem, guiadas pelo seu instinto e pelos seus interesses diretos e imediatos. Isto também é válido no domínio político: a ideia geral da luta política só será assimilada, claro, pelo trabalhador educado, que será seguido pelas massas porque estão perfeitamente conscientes da sua falta de direitos políticos (como reconhece numa passagem a Profession de foi do Comité de Kiev), e porque os seus interesses quotidianos mais imediatos a levam constantemente a enfrentar todo o tipo de manifestações de opressão política. Em nenhum movimento político ou social ou em qualquer país houve, nem poderia haver, qualquer outra relação entre a massa de uma determinada classe ou de um determinado povo e o pequeno número dos seus representantes instruídos que não fosse a seguinte: sempre e em toda parte os líderes de uma classe dada tem sido seus representantes de vanguarda, seus representantes mais cultos”.
Os marxistas, continuou Lênin, utilizam a luta econômica como base para organizar os trabalhadores, para desenvolver essa luta espontânea em luta de classe contra o sistema capitalista. A luta econômica, por si, não tem nada de socialista. A tarefa dos socialistas é contribuir para a fusão da luta econômica com a luta política numa única luta de classes do conjunto das massas trabalhadoras. Para isso, o partido marxista deve realizar uma ampla agitação econômica e política sobre cada fato importante da realidade política do momento, para atrair operários para militar no partido revolucionário e socialista. A agitação é um meio importante para ampliar os conhecimentos e a educação da classe e para avançar em formas mais organizadas de luta política.
Em abril de 1900, saindo do seu confinamento na Sibéria, foi morar em Pskov, região próxima de Petrogrado.
Como a repressão estava perseguindo Lênin muito de perto, teve que ir para o exilio fora da Rússia, onde se juntou à direção geral do grupo Emancipação do Trabalho.
Assim, redigiu as propostas de lançamento de um jornal unificado “Iskra” (A centelha) e uma revista teórica “Zariá” (Aurora) e iniciou um debate com a alta direção de fundadores. Iskra trazia, ao lado do nome, a seguinte frase: “Da fagulha sairá a chama”.
Escreveu em abril de 1900, o “Projeto de declaração da redação de ‘Iskra’ e ‘Zariá’”:
Lênin identificou o surgimento de um situação pré-revolucionária e constatou um salto no crescimento das ideias socialdemocratas na intelectualidade. Que esse movimento tende a se unir com o movimento operário espontâneo. Essa situação obrigou os revolucionários a superar os métodos artesanais de organização.
Lênin opinava que estavam surgindo matizes de opinião no interior do movimento e do partido, que acredita ainda não haver uma cristalização das posições e esperava ser possível trabalhar juntos com estas correntes. Mostrou uma metodologia de trabalho em comum com as posições distintas (dentro de um mesmo programa marxista) e defendia o debate franco e a camaradagem entre debatedores. A criação de um jornal periódico e de uma revista teórica iriam universalizar a ação de centenas de círculos locais e colocar todos os matizes e diferenças regionais ao serviço de um todo único, que seria o POSDR reconstituído.
“Comum também no sentido de que une todos os literatos à nossa disposição e expressa todas as nuances de opinião e pontos de vista existentes entre os social-democratas russos, não como ativistas isolados, mas como camaradas unidos nas fileiras de uma única organização por um programa e luta comuns”.
A proposta era que estes órgãos de imprensa, ao unificar todos os círculos locais, se transformasse numa poderosa força política nacionalmente.
O programa destes órgãos previa um espaço grande para os problemas teóricos marxistas e a relação desta teoria com o movimento operário europeu. Repercutiria nos órgãos de imprensa os acontecimentos políticos nacionais e internacionais da conjuntura.
A imprensa devia servir de meio para estudar o movimento social intelectual da década de 1890 da Rússia e estudar a situação da classe operária.
Devia servir também de alavanca para “A incorporação em larga escala das massas juvenis trabalhadoras e intelectuais no movimento.”
O objetivo fundamental desta imprensa é que “todo operário consciente forme uma opinião concreta sobre todos os problemas fundamentais: sem esta condição, a propaganda e a agitação amplas e sistemáticas são impossíveis.”
Portanto, o objetivo era unir o socialismo marxista com o movimento operário espontâneo para originar a reconstituição do POSDR. Segundo Lênin, partindo da visão do Manifesto Comunista “A social-democracia consiste em unir o socialismo ao movimento operário.”
Então, discutiu os métodos de organização e disciplina, não como um fim em si mesmo, mas para obter uma agitação e propaganda para amplas massas, para isso, o caráter do periódico era diferente do caráter da revista teórica e servia a propósitos distintos, ainda que em uma unidade partidária:
“Os temas e problemas por nós apontados serão distribuídos entre a revista e o jornal apenas de acordo com as diferenças de volume e caráter de ambas as publicações: a revista deve servir principalmente de propaganda, e o jornal, de agitação. Mas é necessário que tanto a revista como o jornal reflitam todos os aspectos do movimento. E gostaríamos de destacar de forma especial a nossa desaprovação ao plano que consiste em que o jornal operário publique exclusivamente o que afeta direta e imediatamente o movimento operário espontâneo, deixando para o órgão “destinado aos intelectuais” tudo o que se relaciona com a teoria do socialismo, ciência, política, organização partidária, etc. Pelo contrário, é essencial unir precisamente todos os fatos e manifestações concretas do movimento operário com os problemas indicados, é essencial julgar cada fato parcial à luz da teoria, é essencial fazer propaganda entre as mais vastas massas da classe operária dos problemas relacionados com a política e organização do Partido e incluir esses problemas na agitação.”
Porém, ao ir ao movimento operário não se podia esquecer que o partido representava os interesses estratégicos da classe operaria internacional. Devia-se utilizar todas as táticas, não ter veneração por nenhum meio de luta. Seu apoio a todo setor que lute revolucionariamente contra a autocracia não pode esquecer que o POSDR é o partido da revolução social, inimigo implacável de todas as classes exploradoras.
Insistiu em definir o caráter dos órgãos de imprensa, ainda que observando um critério de unidade programática com as bases do marxismo,
“Mas, ao dar uma certa orientação à nossa obra literária, não pretendemos de forma alguma apresentar todas as particularidades das nossas opiniões como a opinião de todos os social-democratas russos; Não nos propomos de forma alguma negar, velar ou relegar para segundo plano as divergências existentes. Pelo contrário, queremos que os nossos órgãos de imprensa sejam órgãos de discussão de todos os problemas por parte de todos os sociais-democratas russos, por mais diferentes que sejam as nuances das suas opiniões. Longe de rejeitar a polêmica entre camaradas nas páginas dos nossos órgãos, estamos dispostos, pelo contrário, a dedicar-lhe muito espaço. A controvérsia pública perante todos os social-democratas e trabalhadores conscientes russos é necessária e desejável para esclarecer a profundidade das discrepâncias existentes, para discutir as questões controversas em todos os seus aspectos e para lutar contra os extremismos em que inevitavelmente caem representantes de diferentes opiniões, de diferentes localidades ou diferentes “profissões” do movimento revolucionário. Consideramos mesmo que um dos defeitos do movimento atual é a falta de controvérsia pública entre pontos de vista claramente discrepantes, é o desejo de esconder dissensões que dizem respeito a problemas muito essenciais.”
Em Júlio de 1900, Lenin foi viver na Suíça para concretizar o plano de edição de “Iskra” e “Zariá”.
Ademais das dificuldades com a censura e a clandestinidade para elaborar e levar para a Rússia estes órgãos de imprensa, ainda se deram diferenças fundamentais na própria redação, proveniente não tanto de diferenças políticas (neste momento de fundação), mas de métodos de trabalho diferentes entre as gerações de revolucionários. A diferença fundamental se deu entre os novos dirigentes (Lênin, Mártov e Potrésov) com os fundadores (Plekhánov, Vera Zásulich e Axelrod), pois estes tinham uma relação “familiar”, de “círculo”, de simpatias e antipatias pessoais ao invés de uma relação partidária, profissional.
No próximo texto, Lênin relatou o choque de opiniões e o enfrentamento dos jovens dirigentes com Plekhanov (em nome dos velhos fundadores), “De como quase se extinguiu a ‘Iskra’ (A fagulha)”:
O texto é quase um diário de Lênin relatando o choque que houve entre ele e Plekhánov sobre a edição dos órgãos de imprensa “Iskra” e “Zariá”. Foi o primeiro choque que ocorreu entre os dois e é um dos textos mais autobiográficos do Lênin, que escreveu não para ser publicado, mas como uma memória da discussão.
Este choque se deu entre Lênin e Plekhánov e refletiu as diferentes gerações que estavam formando o POSDR, que terminaram conflagradas na redação destes órgãos de imprensa que era composta por 6 membros: Plekhánov (44 anos), Vera Zásulich (51 anos), Axelrod (50 anos) – estes 3 foram fundadores da corrente marxista na Rússia e viviam no estrangeiro, sem contato ou militância pratica na Rússia – mais Lênin (30 anos), Mártov (27 anos) e Potrésov (31 anos) – estes 3 compunham a nata da nova geração revolucionária marxista da Rússia e recém estavam saindo de 3 anos de confinamento na Sibéria e dirigiam praticamente as tentativas de organizar o POSDR. Estas duas gerações vão se encontrar na Suíça para debater o caráter dos órgãos de imprensa – veja no texto anterior a proposta de Lênin – e naturalmente houveram choques políticos violentos que ainda não refletia diferenças políticas ou teóricas/programáticas, refletia a metodologia de construção do partido: os três fundadores tinham um funcionamento camarilhesco baseado em simpatias e antipatias pessoais enquanto Lênin queria imprimir uma relação política profissional na direção do partido, onde os redatores dividiam tarefas e eram promovidos de acordo com o trabalho para o partido e não em base as estrelas pregadas no peito pelo passado militante. Uma diferença política latente se refletiu em como trabalhar com a corrente “marxista legal”, dirigida por Struve. Lênin defendia atuar conjuntamente, porém fazendo uma crítica política, como já vinha fazendo publicamente na Rússia. Plekhánov silenciava no enfrentamento a essa corrente, mas aparecia nesta reunião da redação como que havia recebido “ordens” para não polemizar com Struve, quando na verdade, não queria polemizar com esta corrente que apresentava um marxismo ao gosto da burguesia liberal. Este debate “inocente” estava refletindo uma diferença que vai ficar mais clara adiante: Lênin criticava duramente a burguesia russa por sua covardia enquanto Struve e Plekhánov tendiam a outra tática, de aliança estratégica com a burguesia liberal russa. Também se produziu choques sobre o caráter dos órgãos: Plekhánov estava totalmente contra de expressar diferenças (matizes) na revista teórica Zariá ou no jornal Iskra. Lênin se opôs a publicar cartas privadas nas polêmicas públicas, coisa que Plekhánov acabava de fazer na polêmica com os “economicistas”. Plekhanov criticou a proposta dos “novos” para a publicação de Iskra e Zariá (veja resenha anterior) dizendo ser “oportunista” porque permitia polêmica entre os colaboradores e queria fazer a polêmica de forma leal entre camaradas, mas buscando a unificação em um partido único socialdemocrata. Esta proposta dos “novos” tinha sido apresentada a Plekhánov anteriormente e ele não havia dito nada sobre ela. Na verdade, Plekhánov estava enciumado com a nova geração que estava assumindo a direção do partido em nascimento e isto era insuportável para ele que era o “fundador”, o “teórico”, e que tinha razão absoluta em tudo.
Em seguida se realizou o Congresso com 3 dirigentes antigos de Emancipação do Trabalho e os 3 jovens dirigentes (Mártov só chegaria depois). A atitude de Plekhanov no Congresso levou a que Lênin o caracterizasse como “um ditador”. Ou se aceitava o mando ditatorial de Plekhánov ou ele saía da redação. Método de ultimátums: “Isto demonstrou claramente que já não existiam relações normais entre ele e nós.” Aqui se produziu a primeira ruptura de Lênin com Plekhánov. Embora se centrasse no “método”, já transparecia diferenças políticas de todo tipo, por exemplo, as relações com o Bund (partido de trabalhadores judeus). O reflexo do choque geracional já estava e a característica “senhorial” de Plekhánov já tinha estropeado as relações: “Meu “amor” por Plekhanov também desapareceu como num passe de mágica; me senti ofendido e amargo ao extremo. Nunca, nunca na minha vida experimentei uma estima e um respeito tão sinceros, uma veneration[4] tão grande, por qualquer homem; “Nunca me comportei com tanta “humildade” diante de ninguém e nunca recebi um “pontapé” tão brutal.
Esse foi um dos poucos textos de Lênin autobiográfico, que ele fala em primeira pessoa, revelando seus sentimentos:
“Mas, a partir do momento em que um homem com quem queremos colaborar para um trabalho comum, estabelecendo relações mais estreitas, emprega manobras semelhantes para com os seus camaradas, já não há dúvida de que este homem é uma pessoa má, verdadeiramente má, dominada por motivos pessoais de amor próprio mesquinho e vaidade, que não é sincero. Esta descoberta – para nós foi uma verdadeira descoberta! – teve um efeito relâmpago sobre nós, porque até então ambos adorávamos Plekhanov e perdoávamos-lhe tudo, como se perdoa a um ente querido; Havíamos fechado os olhos a todos os seus defeitos, procurámos com todas as nossas forças persuadir-nos de que esses defeitos não existiam, que eram ninharias às quais só davam importância aqueles que não valorizavam suficientemente os princípios. E de repente nós mesmos tivemos que nos convencer com nossos próprios olhos de que esses “pequenos” defeitos eram capazes de repelir os amigos mais devotados e que a convicção de que ele estava certo no nível teórico não poderia nos fazer esquecer suas características repelentes.”
“Foi um verdadeiro drama, uma ruptura total com aquilo que, como um filho querido, embalei durante muitos anos; com o qual liguei inextricavelmente o trabalho de toda a minha vida.”
O conflito foi suavizado, mas as relações entre Lênin e Plekhánov jamais seriam as mesmas de antes desse episódio. Prevalecerá daí em diante o: “amigo amigos, negócios à parte” ou “Se queres a paz, prepara-te para a guerra”.[5]
Já identificamos 5 diferenças importantes entre Lênin e Plekhanov:
Porém, é necessário dizer que Lênin estimava muito a posição de Plekhanov, especialmente, neste momento, o combate feroz ao economicismo que ameaçava o partido russo e o bernsteinismo, que avançava no partido alemão e que Plekhanov tinha um papel de vanguarda, inclusive criticou Kautsky pela tibieza no enfrentamento com Bernstein em uma carta aberta.
Estamos em setembro de 1900. Dentro de 3 anos, no II Congresso, com a ruptura entre bolcheviques e mencheviques, esse conflito se politizou e dentro de 5 anos (na revolução de 1905), a ruptura foi definitiva teórica-programática-política e metodológica.
Depois desse conflito, Lênin escreveu uma proposta de acordo e uma declaração da redação de Iskra que definiu os “novos” como redatores de Iskra e os velhos como colaboradores. Da redação de 6 membros, Plekhanov ficou com 2 votos, para o caso de haver empate. Em compensação, a redação de Iskra ficou em Munique, que era a vontade dos jovens dirigentes.
Krupskaya escreveu uma breve opinião sobre essa desavença que expressava o miolo da questão:
“Nunca experimentamos o tipo de vida na emigração que o grupo “Emancipação do Trabalho” conheceu. Estávamos constantemente em contato próximo com a Rússia e sempre recebíamos gente de lá para nos ver. Estávamos mais bem informados do que se vivêssemos em alguma cidade provinciana da própria Rússia. Não tínhamos vida fora dos interesses de nosso trabalho russo. As coisas na Rússia estavam melhorando, o movimento da classe trabalhadora estava crescendo. O grupo “Emancipação do Trabalho” havia sido isolado da Rússia, vivendo no exterior durante o pior período de reação, quando um estudante chegando da Rússia foi um acontecimento. Os viajantes tinham medo de visitá-los. Quando Klasson e Korobko os visitaram no início dos anos 90, foram chamados à polícia assim que voltaram e perguntados por que tinham ido ver Plekhanov.”
Plekhanov representava o passado do grupo fundador e já era uma trava para os novos dirigentes que estavam assumindo o trabalho de ir para uma nova etapa de construção do partido, de se ligar ao movimento operário, de construir um partido marxista revolucionário, onde o livro “O que fazer?” expressava as tarefas do novo partido.
Em novembro de 1900, Lênin rematou o ano, escrevendo: “Tareas urgentes de nuestro movimento”, publicado como editorial do número 1 de Iskra:
Lênin começou definindo a tarefa central do partido: derrubada da autocracia e conquista da liberdade política. Criticava os “economicistas” que queriam dar um papel preponderante a luta econômica, deixando a política para os intelectuais burgueses. Definiu este período como de vacilações, onde certos revolucionários queriam separar o socialismo do movimento operário.
As deficiências do movimento operário russo se deviam, segundo Lênin a três questões: a primeira, era a inércia de fazer propaganda apenas em pequenos círculos e quando passou a fazer agitação de massas, caiu em outro extremo agitativista. A segunda, no princípio foi uma luta grande contra os populistas que viam a política como terrorismo individual, ação divorciada do povo. Os socialdemocratas saíram de um extremo a outro. Se se acostumou com atuação isolada por círculos locais e não se deu muita importância a organização geral do país. Essa visão dispersa em círculos se somou à defesa do predomínio da luta econômica.
Estas deficiências levaram os “economicistas” a transformar a estreiteza economicista em teoria geral e se uniu com o revisionista de Bernstein, que prosperava na Alemanha.
“A social-democracia é a união do movimento operário com o socialismo. A sua tarefa não é servir passivamente o movimento operário em cada uma das suas fases, mas representar os interesses do movimento como um todo, indicar a este movimento o seu objetivo final, as suas tarefas políticas e salvaguardar a sua independência política e ideológica. Separado da social-democracia, o movimento operário encolhe e adquire necessariamente um carácter burguês: ao apoiar exclusivamente a luta econômica, a classe operária perde a sua independência política, torna-se um apêndice de outros partidos e trai o grande preceito: “A emancipação da classe operária deve ser o trabalho da própria classe operária”.
O centro das atividades, segundo Lênin, era levar as ideias socialistas e a consciência política à massa proletária e organizar o partido revolucionário, ligado indissoluvelmente ao movimento operário espontâneo.
Aqui formula pela primeira vez a visão do militante como um membro ativo, ponto que vai “rachar” o partido em torno do ponto 1 do estatuto, que se discutirá no II Congresso do POSDR. “Devemos preparar homens que não dediquem as suas tardes livres à revolução, mas sim toda a sua vida. Devemos preparar uma organização tão numerosa que possa aplicar uma divisão rigorosa do trabalho nos diferentes aspectos da nossa atividade.
Também expressou uma lição fundamental para todo partido revolucionário:
“A social-democracia não ata as mãos, não limita a sua atividade a algum plano previamente preparado ou a um único procedimento de luta política, mas admite todos os procedimentos de luta desde que correspondam às forças reais do Partido e permitam alcançar os melhores resultados possíveis sob determinadas condições.” “Isso é o fato de o partido usar todas as táticas no movimento operacional, portanto não transforma nenhuma das táticas desta na situação atual predominante (por exemplo, o parlamentarismo, mesmo em momentos de legalidade partidária).”
E, por fim, retomou seu tema fundamental de análise do campo russo e das classes sociais em março de 1901: “O partido operário e o campesinato”:
O texto é um resumo de toda a elaboração de Lênin e do partido sobre a questão do campo russo. Começou com uma caracterização da reforma agrária de 1861, que na verdade representou uma redivisão das terras a favor dos latifundiários. As terras camponesas foram tomadas e repartidas novamente, em piores condições e tendo que pagar caríssimo pelas terras que eram dos próprios camponeses. Pagaram um tributo por décadas, inclusive trabalhando para o nobre feudal em troca do resgate da terra. Tal reforma agrária foi aplicada debaixo de baionetas, para quem recusasse suas condições draconianas. A isso se somou a opressão dos capitalistas rurais. “Os quarenta anos que se passaram desde a abolição da servidão são um processo ininterrupto de proletarização, de extinção lenta e dolorosa do campesinato. O camponês foi reduzido a um padrão de vida miserável: vivia com feras, vestia-se com trapos e se alimentava de ervas.” Depois dessa caracterização, Lênin discorreu sobre a proposta para o campo e para os camponeses: convidando os camponeses a se unir com os operários da cidade para lutar pela socialização dos meios de produção. Lênin explicava que não se tratava de defender a pequena propriedade do camponês pois isso representava uma luta pelo passado e que levava uma ilusão aos camponeses que é possível um bem-estar no capitalismo. Defendeu o fim do pagamento de resgate da terra, a devolução do que foi pago, derrubar as travas feudais, por exemplo o pagamento na forma de trabalho ao invés de trabalho assalariado. Enfim, se tratava de levar a luta de classes ao campo. Desenvolver sua consciência política, pela convocação de uma assembleia representativa, pela derrubada da autocracia. Para Lênin, não se tratava de girar os militantes para fazer agitação no campo, mas para que os operários da cidade apoiassem a causa camponesa e pedissem seu apoio à luta operária da cidade, apoio à luta pelo socialismo. Os militantes deviam se concentrar nas fábricas e centros industriais pois o proletariado era a única classe que podia garantir a derrubada da autocracia e essa tarefa, o proletariado só podia levar adiante se contasse com o apoio do campesinato. Quando se produzisse a união do proletariado urbano com os camponeses pobres, seria o fim da autocracia.
Em dezembro de 1901, Vladimir Ilyich Uliánov assinou seu primeiro artigo com o pseudônimo Lênin: “A questão agraria e os críticos de Marx”, no número 2 da revista Zariá.
[1] Dentro de alguns anos se tornará o líder dos mencheviques, mas que neste período, no exilio siberiano era, segundo Lênin “o único que toma tudo isto [os interesses da revista e do Partido] com energia e com grande sinceridade”
[2] Obras Completas, tomo 46, Carta a A.N. Potrésov, de 27 de abril de 1899.
[3] Em julho de 1899, Lênin tomou conhecimento do Credo, o manifesto dos “economistas” e do livro de Bernstein “Premisas del socialismo y objetivos de la socialdemocracia”.
[4] Em francês, no original.
[5] “Somos um grupo literário independente. Queremos permanecer independentes. Não acreditamos que seja possível avançar sem forças como Plekhanov e o grupo Emancipação do Trabalho, mas ninguém está autorizado a concluir disto que renunciaremos à mais pequena partícula da nossa independência. Isto é tudo o que podemos dizer neste momento às pessoas que querem saber acima de tudo qual é a nossa atitude em relação ao grupo Emancipação do Trabalho. (…) Poderá perguntar: que tipo de relações irá manter com a União? De momento nenhuma, porque a nossa decisão irrevogável é continuar a ser um grupo independente e contar com a colaboração mais próxima do grupo Emancipação do Trabalho”. Carta a um destinatário não identificado, 5 de setembro de 1900. Tomo 46, página 45.