qua jul 24, 2024
quarta-feira, julho 24, 2024

Em plena crise climática, a revolta dos tratores chega ao Estado Espanhol

Como um rastilho de pólvora, as mobilizações de agricultores e pecuaristas foram se estendendo desde princípios do ano por diferentes países da UE até chegar ao Estado espanhol. Alguns protestos que não são novos, mas que desta vez surpreenderam pela rápida extensão das convocações e a virulência de seus métodos. Isto se traduziu em bloqueios de ruas e rodovias em várias cidades e comunidades autônomas, e em tentativas de bloquear portos e centros logísticos que resultaram em algumas detenções junto a possíveis sanções administrativas.

Por: Corriente Roja

Falamos de um setor que, como em outros setores da economia na fase de capitalismo imperialista na qual nos encontramos, foi centralizando e concentrando em cada vez menos mãos, enquanto a agricultura familiar era condenada à ruína. Enquanto a produção foi aumentando de forma constante, apoiada pelo desenvolvimento da agroindústria que governos e a UE favoreceram, o número de fazendas europeias passou de quinze para dez milhões nos últimos vinte anos e nos próximos 15 anos desaparecerão outros 6,4 milhões, segundo o estudo The Future of the European Farming Model do Parlamento Europeu. 

Quais são as principais demandas?

Salvo as particularidades em cada país, há queixas compartilhadas: os baixos preços pelo qual as grandes cadeias de distribuição compram o produto na origem, o aumento do preço do combustível fóssil ao mesmo tempo em que vários países retiraram os subsídios, o aumento do preço das sementes– cujas patentes são propriedade de grandes empresas multinacionais e dos químicos como fertilizantes e fitossanitários/-, a lentidão na hora de receber os pagamentos das ajudas da PAC(Política Agrícola Comum) ou os temores ante a assinatura de novos acordos comerciais com terceiros países que exigem freio, como o Mercosul. A isto se soma a denúncia das consequências da pior seca nos últimos anos, que tem sido um profundo baque para o campo.

A resposta do novo governo “progressista” é mais do mesmo

Em resposta às suas demandas, Pedro Sánchez, que não quer incomodar muito as patronais agrárias cujas reivindicações considera “legítimas”, já disse que se compromete a reforçar os controles para garantir o cumprimento da Lei da Cadeia Alimentar, pela qual os operadores e indústrias agroalimentares têm a obrigação de pagar aos agricultores e pecuaristas preços que considerem ao menos os custos da produção. O ministro Planas, por sua vez, apoiou Von der Leyen (Presidente da Comissão Europeia) no desmonte da supressão progressiva dos pesticidas.

Também prometeu simplificar a burocracia relacionada à Política Agrária Comum (PAC) e redobrar os esforços para que a UE adote em seus acordos comerciais, as chamadas cláusulas espelho nas importações agroalimentares que fixam as mesmas condições e requisitos às produções de terceiros países e países da UE. Promessa de pouco valor porque sua aprovação requer uma unanimidade que neste momento não existe na Europa.

Como dizíamos em 2020, “se o novo governo continuar olhando a União Europeia de joelhos e a governar sem querer enfrentar as multinacionais agroalimentares e os latifundiários, acabará por ganhar o repúdio de todo o campo e abrindo uma passagem pela qual a direita franquista entre até a cozinha”.

O cinismo da direita e da ultradireita e sua agenda negacionista da mudança climática

Não é preciso ser muito experiente para ver que não é possível separar estes protestos, que nos últimos anos vêm sendo periódicos, do contexto das Eleições Europeias em que nos encontramos e em que as pesquisas preveem um ascenso importante da direita e da extrema direita.

A seca como expressão da mudança climática, é consequência da catástrofe ambiental que estamos vivendo, à qual se somam outras como a perda da biodiversidade ou a contaminação dos solos e dos aquíferos, que são resultado direto da extensão do agronegócio. Segundo diferentes estudos, atualmente 80% dos habitats na Europa estão em mau estado e 70% dos solos, em estado pouco saudável. Apesar desta realidade tão evidente, um setor dos agricultores e pecuaristas médios e pequenos, obrigados a produzir de forma cada vez mais competitiva e em uma situação cada vez mais precária, dão crédito ao discurso negacionista da extrema direita e reagem com virulência à implementação das novas normativas da UE para uma suposta transição verde, que catalogam como uma excessiva burocracia.

A extrema direita tenta influenciar o movimento aproveitando o desespero dos pequenos e médios agricultores e pecuaristas, sua desconfiança nos sindicatos agrários majoritários e as iniciativas autônomas de mobilização. É o caso da chamada “Plataforma 6 de fevereiro”, teoricamente apartidária, mas por trás da qual é fácil encontrar a mão do Vox.

Quando falam de uma burocracia excessiva, apontam contra medidas como a obrigação de deixar o solo em repouso – tempo de espera sem cultivar para que a terra recupere nutrientes – uma determinada extensão de terreno de cultivo. Também são contra a tímida Lei de Restauração da Natureza, colocada em destaque  diante de possíveis futuras reduções da superfície cultivável [1] e da regulação dos fertilizantes[2]. Esta Lei foi recém paralisada pela Comissão Europeia como resposta aos protestos do setor. Em particular, suspenderam o plano de redução do uso dos pesticidas, que é uma das peças-chave do “Pacto Verde” (Green New Deal). Também atacam a Lei de Biodiversidade ou inclusive contra a Lei estatal do Bem-estar Animal.

A partir de alguns destes grupos influenciados pela extrema direita se exige a revogação de toda legislação promulgada nos últimos anos relacionada às políticas verdes procedentes da União Europeia, que se permita cultivar em terras declaradas como zonas protegidas e um plano hidrológico nacional com obras hidráulicas necessárias para que não falte água para irrigação.

Convém “separar o joio do trigo”

Quando falamos dos agricultores e pecuaristas, não se trata, em absoluto, de um coletivo homogêneo, mas que abarca desde as explorações familiares condenadas à ruína até os grandes empresários da agroindústria (sem esquecer as grandes corporações da indústria alimentícia, as grandes cadeias de distribuição, os grandes oligopólios químicos e de sementes, assim como os setores financeiros associados). Não é o mesmo um agricultor familiar ecológico de verduras e frutas que vende no mercado local e as macros explorações suínas e as mega estufas do sul da Andaluzia. Não existe uma única realidade que afete de forma homogênea os agricultores e pecuaristas dos países que registram mobilizações ou as convocaram, embora seja verdade que compartilham desafios e ameaças.

Grandes latifundiários do campo que levam a maioria das subvenções do Estado e da UE, como os fundos da PAC, no Estado Espanhol, também buscam intencionalmente aparecer associados com pequenos agricultores e pecuaristas, alguns deles cooperativistas, quando são seus inimigos. Enquanto os primeiros são responsáveis por manter a mão de obra no campo em condições quase que de escravidão, negando-se inclusive a aplicar os irrisórios aumentos do Salário Mínimo Interprofissional; os segundos estão cada vez mais condenados a desaparecer diante de um modelo de produção e distribuição, cuja lógica mina as bases materiais de sua existência.

A “agricultura industrial” e as “macro granjas”, ecologicamente insustentáveis, devastam os territórios enquanto as províncias do interior se esvaziam. Diminuem as explorações agrícolas e pecuaristas, mas aumentam seu tamanho, ao mesmo tempo em que a agricultura e a pecuária se tornam “industriais” e surgem as chamadas “empresas integradoras” (vinculadas a fundos de investimento e de capital de risco). É o resultado da lógica capitalista de concentração da riqueza, em que a cadeia agro alimentícia (insumos, produção, distribuição, comercialização) vai ficando nas mãos dos grandes grupos capitalistas, entre eles, Mercadona, Carrefour, Lidl, Eroski, Ebro ou Nestlé. Enquanto isso, a UE e os governos liberam o comércio em relação ao Mercosul, Marrocos ou África do Sul, colocando em concorrência direta os agricultores e pecuaristas familiares com os agronegócios de outros países em condições muito diferentes de regulação e custo.

O pacto verde europeu ou a farsa da transição energética

Nas palavras da UE, o Pacto Verde europeu (Green New Deal) seria um “roteiro” que responde à “emergência climática” declarada em novembro de 2019 pelo Parlamento Europeu.

Mas se há algo que possamos dizer das medidas que o Pacto Verde europeu contém, além de sua fraqueza e falta de financiamento, é que são uma farsa e uma hipocrisia absoluta, também no que se refere ao campo.

É uma ilusão pensar que mantendo o atual modelo agropecuário produtivista, todas as explorações poderão fazer uma transição pacífica à agroecologia, uma vez que cada agricultor se convença de que é um poluidor. A completa liberação do mercado, a globalização dos cultivos e a busca cega de benefícios do agrobusiness que a UE e seus governos protegem, são os responsáveis peal crise atual.

E quanto à PAC, é uma fraude completa em todos os campos, exceto nos generosos benefícios que os grandes empresários agrícolas recebem. Em seu início, a PAC estabeleceu medidas efetivas de proteção através de uma forte regulação e durante muito tempo não houve necessidade de subvenções ou ajuda direta aos agricultores. Porém a partir de 1992 – coincidindo com o Tratado de Maastricht- foi substituída por uma política neoliberal, que instituiu a ajuda por hectare (independentemente da produção) e nenhuma condicionalidade a favor de uma agricultura sustentável nem do meio ambiente, pois ia contra o livre mercado e começou com os tratados de livre comércio em benefício dos oligopólios industriais e dos grandes empresários agrícolas.

Medidas para uma transição a uma agricultura e pecuária justa e em equilíbrio com o meio ambiente

Nós de Corriente Roja pensamos que é impossível dissociar a luta social da questão ambiental. A partir das organizações políticas e sindicais de classe e combativas, é preciso organizar-se e lutar, buscando a aliança com as explorações familiares, por medidas de transição para uma agricultura e pecuária menos consumidoras de petróleo, fertilizantes, herbicidas e fitotóxicos, respeitosa com os animais e em equilíbrio com a natureza. Temos que colocar em marcha um plano para fechar as macro granjas, limitar a agricultura industrial, reorientá-la para uma agricultura sustentável e de proximidade e recuperar o cultivo de terras férteis abandonadas.

Isto, garantindo ao mesmo tempo salários e condições trabalhistas justas e alimentos saudáveis ao alcance de todas e de todos. Eliminar produtos químicos e diminuir máquinas também suporia criar empregos, porque o número de trabalhador@s agrícolas teria que aumentar drasticamente.

Temos que exigir a regularização da população migrante que trabalha no campo, a punição efetiva à patronal que não cumpra com os acordos coletivos, assim como aqueles que não contribuam pelos seus empregados/as, em vez de punir estes últim@s como ocorreu no caso de Baena Franco e Agrícola Espino na Andaluzia.

Compartilhamos a exigência de um preço justo para os produtos agrícolas e pecuários que cubra os preços de custo e permita um nível de vida digno às explorações familiares, acabando com a exorbitante diferença entre os preços que se pagam na origem e os que se cobram dos consumidores que, em sua grande maioria, são da classe trabalhadora. Uma diferença que é o resultado do domínio exercido pelos oligopólios da indústria alimentícia e da distribuição e comercialização dos produtos agrícolas e pecuaristas.

Temos que proibir e punir severamente a venda com prejuízo que as grandes cadeias de distribuição impõem aos pequenos e médios agricultores. Temos que estabelecer um órgão público que garanta o monopólio estatal da distribuição, fixando os preços de origem e finais. Tal órgão deve estar sob controle da classe trabalhadora do campo, pequenos produtores e consumidores.

Não se pode responder à crise do campo sem atacar os latifundiários, as “empresas integradoras”, as grandes empresas de pecuária industrial, os oligopólios comerciais, as grandes corporações químicas e de sementes e a UE que os protege. Temos que acabar com a escandalosa distribuição de ajudas da PAC comunitária, a serviço da grande propriedade e da grande indústria agro alimentícia onde a quantia das ajudas agrícolas está baseada no tamanho da propriedade e não nos cultivos.

No Estado Espanhol, nunca foi realizada uma verdadeira reforma agrária que modificasse substancialmente a estrutura da propriedade da terra e que a pusesse a serviço dos que a trabalham. Atualmente, 6,10% dos proprietários controlam 57,83% das terras (13 milhões de ha.). As sociedades mercantis possuem já 14% das terras agrícolas. Entre 1999 e 2020 desapareceram um total de 49 fazendas diariamente, esvaziando os campos. Uma das primeiras medidas dessa reforma agrária pendente deve ser expropriar os grandes latifúndios para que passem a ser explorados coletivamente pela classe trabalhadora agrícola, sob critérios de sustentabilidade ambiental.

Temos que acabar com o uso disparatado e irracional dos recursos hídricos. Reequilibrar profundamente a relação entre as grandes cidades -verdadeiros buracos negros ambientais- e o meio rural, cada vez mais contaminado, desatendido e despovoado.  Não pode ter uma sociedade ecologicamente sã sem resolver este enorme problema provocado pelo capitalismo.


[1]. A Lei de Restauração da Natureza propõe incluir nas terras “elementos paisagísticos de grande diversidade” como sebes, fileiras de árvores, canais ou reservatórios. Nestes espaços podem viver animais polinizadores e outras espécies que possam realizar também o controle biológico de pragas e reduzir a necessidade de pesticidas. Os partidos conservadores europeus afirmaram que a legislação “obrigará os agricultores a abandonar alguns de seus campos, colocará em perigo as cadeias de abastecimento europeias ou que disparará os preços dos alimentos”. Assim, entre as mensagens que circularam na Espanha pelas redes sociais, alguns asseguram que se esta Lei avançar, os agricultores espanhóis “deverão abandonar 40% de suas terras”.

[2]. Esta Lei estabelece objetivos concretos como reduzir pela metade o uso de pesticidas até 2030, reduzir os fertilizantes em pelo menos 20%, aumentar a superfície agrícola dedicada à agricultura ecológica até 25% e reduzir em 50% os antimicrobianos utilizados nos animais de criação. Também a normativa europeia lhes obriga a reduzir a densidade de animais nas explorações de criação, eliminar as gaiolas ou restringir o uso de fertilizantes e pesticidas.

Extraído de http://corrienteroja.net 12/02/2024

Tradução: Lílian Enck

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