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100 anos sem Lênin

O desenvolvimento do capitalismo na Rússia

fevereiro 19, 2024

Introdução: onde Lênin deu um xeque-mate nos populistas, dissecou cientificamente a sociedade russa e construiu a base programática do partido marxista russo.

O terceiro tomo é composto pela obra: “El desarrollo del capitalismo em Rusia”, cuja elaboração começou a ser realizada em janeiro de 1896 e terminou sua redação em 1899, tendo sido publicada neste mesmo ano. Três anos de trabalho e recebeu 1.500 rublos pelos direitos autorais do livro, que correspondia, então, a cerca de 10 anos de salário de um operário.

Por: Nazareno Godeiro

O tomo finalizou com um artigo “Uma crítica não crítica” em resposta a P. Skvortsov, um “marxista legal” que publicou um artigo de crítica ao livro “El desarrollo del capitalismo em Rusia”.

Lênin começou o estudo para este livro com 26 anos, na prisão, enquanto esperava a definição do seu local de desterro na Sibéria.

Duas vezes por semana, durante todo o ano de 1896, ele recebia pacotes de livros na prisão, trazidos por sua irmã, de bibliotecas públicas.

No exílio, seguiu pegando livros de bibliotecas públicas e comprando livros com estatísticas do campo russo.

Desterrado na aldeia de Shúshenskoe, comarca de Minusinsk, provincia de Yeniseisk, próximo da Mongólia, continuou trabalhando na preparação do livro El desarrollo del capitalismo en Rusia.

Em dezembro de 1897,Lênin solicitou livros de filosofia de Marx e Engels e a Crítica da filosofia do direito, de Hegel. Por isso, é duvidosa a afirmação feita por biógrafos mais recentes que Lênin não conhecia os trabalhos de Hegel. Segundo essa interpretação, Lênin viu a necessidade de estudar a dialética hegeliana apenas em 1914, quando superou seu “materialismo tosco”. Se trata de uma subestimação do pensamento de Lênin, que estudou a fundo o Livro I do Capital para escrever seus primeiros escritos sobre a Rússia, inclusive o estudo da dialética materialista foi a base do “Desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, que ora resenhamos.

Em junho de 1898, enfim, recebeu um baú com livros encomendados que levou um ano para chegar.

Em outubro de 1898 enviou uma carta a sua mãe, Maria Alexandrovna Uliánova, onde comunica que terminou o borrador do livro El desarrollo del capitalismo en Rusia.

Neste livro, Lênin cita mais de 500 livros, artigos, estudos científicos e materiais estatísticos.

Ele expôs seu método de trabalho para elaboração do livro em uma carta de 1896:

“A lista de livros está dividida em duas partes, assim como será o meu trabalho: A. -Parte teórica geral. Requer menos livros, por isso espero escrevê-la, de toda maneira, embora exija mais trabalho prévio. B. -Aplicação de princípios teóricos à situação concreta russa. Esta parte requer muitos livros. O mais difícil de obter é: 1) publicações dos zemstvo. Aliás, tenho parte deles, parte pode ser obtida (as pequenas monografias) e parte pode ser obtida através de estatísticos conhecidos; 2) publicações oficiais: trabalhos de comissões, relatórios e atas de congressos, etc. Todas essas publicações são importantes e será mais difícil obtê-las. Algumas estão na biblioteca da Sociedade Económica Livre, creio que até a maioria.

(…)

Agora tenho tudo que preciso e ainda mais do que preciso. A saúde é totalmente satisfatória. Aqui até compro água mineral: eles trazem da farmácia no mesmo dia que eu peço. “Durmo cerca de nove horas por dia e durante o sono vejo diferentes capítulos do meu futuro livro.”

No final de 1898 começou a impressão do seu livro O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Lênin pediu que se mandasse as provas do livro, para ver se havia alguma correção a ser feita.

Em 31 de março de 1899 saiu da gráfica a primeira edição de El desarrollo del capitalismo en Rusia. Proceso de La formación del mercado interior para la gran industria, com a assinatura de de Vladímir Ilín. A primeira edição foi de 2.400 exemplares, que se esgotou rapidamente.

Em abril de 1899, o jornal Russkie Védomosti colocou um anuncio sobre a publicação do livro: “Vladimir Ilin. – El desarrollo del capitalismo en Rusia. Proceso de formación del mercado interior para la gran· industria. Precio 2 rublos 50 kopeks, 480 págs.”

Em 1905-1907, Lênin preparou a segunda edição do seu livro El desarrollo del capitalismo en Rusia, onde introduziu adições substanciais em vários capítulos.

Este livro foi a base fundamental do partido que estava em elaboração. Lenin defendia que o programa devia começar com uma explicação cientifica da sociedade russa (características econômicas fundamentais do sistema, as classes fundamentais em luta, o objetivo estratégico e as táticas do partido). Parte importante destes objetivos era fazer a luta ideológica, teórica e programática com os populistas (que era a maior corrente de esquerda na época), contrapondo a visão de mundo marxista. A partir desta elaboração, se definiu o proletariado como classe dirigente da revolução russa e definiu também o setor fundamental de intervenção do partido (o proletariado industrial) e as alianças de classes possíveis na Rússia de então (e as condições para fazer estes acordos e alianças).

O livro mostrou que Lênin elaborava teoricamente sempre a serviço da ação do partido, tratando de usar o marxismo como um guia para a ação partidária, unindo a ciência social marxista com a luta espontânea do movimento operário.

Quase não há livros do Lênin que não seja entendível por qualquer trabalhador interessado na luta revolucionária. Lênin escrevia para formar combatentes da luta proletária. Escrevia para formar uma intelectualidade operária.

A seguir, apresentamos uma resenha do livro, por capítulos:

No primeiro capítulo, Lênin discutiu os fundamentos teóricos da economia política, baseado em O Capital, de Karl Marx, onde analisou a relação entre o capitalismo mercantil (primeira fase do capitalismo), que correspondia, na Rússia de então, a transição da indústria manufatureira para sua fase superior, o capitalismo industrial maquinizado. Nessa primeira fase mercantil, vai se produzindo uma divisão social do trabalho, onde o trabalho na agricultura vai se diferenciando em muitos trabalhos industriais artesanais, provocando uma divisão social do trabalho e um mercado interno. A agricultura mesma se transformou em uma indústria, na medida em que vai liberando camponeses para o processamento de alimentos na forma industrial e para o mercado. Com isso, diminuiu a população rural e aumentou a população das cidades, onde o agricultor se tornou proletário ao ser expropriado da sua propriedade. Também foi se formando uma burguesia rural, que contratava assalariados para trabalhar na sua fazenda ao mesmo tempo que abria pequenas indústrias rurais que processavam sua produção agropecuária. Essa diferenciação entre burgueses e proletários foi criando o mercado interno, seja pelo consumo maior dos burgueses e proletários, seja pelo consumo de meios de produção por parte da burguesia, que deu um salto no novo ramo produtivo: o de meios de produção. Os populistas afirmavam que como o capitalismo levava ao empobrecimento do proletariado, o capitalismo não podia desenvolver pela atrofia do mercado interno, porque não tem quem consuma os produtos do trabalho. Assim, segundo eles, o capitalismo teria que ir para o mercado externo, pois não tinha futuro nas condições da Rússia de então. Baseado em O Capital, Lênin desmontou este argumento dizendo que o capitalismo criou seu próprio mercado interno quando colocou a produção de meios de produção (capital constante – máquinas e equipamentos) como central, gerando um sistema que tem a produção pela produção, diferente de todos os outros modos de produção anteriores, cujo centro era o consumo de valores de uso (que eram produzidos na família ou comunidade fechada sob encomenda) e não a produção de mercadorias em grande escala para consumidores desconhecidos. Evidentemente que um sistema deste tipo tem que se basear em enormes desigualdades que se combinam no mercado mundial. O sistema capitalista se move através de contradições entre a produção e o consumo, entre a produção social e a apropriação privada, entre as forças produtivas e as relações de produção – propriedade privada – a socialização da produção mundial e as fronteiras nacionais. Lênin demonstrou que o erro dos populistas e da economia política clássica é que não viam o papel central do capital constante neste sistema e como ele cria o mercado interno a partir de saltos no crescimento das forças produtivas da sociedade enquanto aumenta o proletariado, que vai empobrecendo – ao negar a democratização das conquistas técnicas para a classe trabalhadora – enquanto aumenta a acumulação de capital em poucas mãos. “A contradição entre a tendência à expansão ilimitada da produção e o consumo limitado não é a única do capitalismo, que, em geral, não pode existir e desenvolver-se sem contradições. As contradições do capitalismo atestam o seu carácter historicamente transitório, evidenciam as condições e as causas da sua decomposição e transformação na forma superior, mas de forma alguma excluem a sua possibilidade ou o seu carácter progressivo em comparação com sistemas anteriores de economia social.”

Outra questão crucial tratava da polêmica sobre o caráter progressivo do capitalismo na Rússia: para Lênin era uma questão relativa: “Esta necessidade mostra palpavelmente o trabalho histórico progressista do capitalismo, que destrói o antigo isolamento e o carácter fechado dos sistemas econômicos (e, consequentemente, a estreiteza da vida espiritual e política), que une todos os países do mundo numa em um todo econômico único.” Portanto, para Lênin, o papel do capitalismo na socialização da produção no país e no mundo era revolucionário e progressivo em relação aos sistemas feudal ou escravista.

O capitulo 2 trata da diferenciação de classes do campesinato. Aqui Lênin analisou as formas específicas do surgimento das classes sociais no campo russo. Foi uma aplicação do método marxista que partia dos princípios teóricos, mas estuda os elementos específicos e originais do processo russo: 1. O meio econômico-social do camponês russo (incluída a “Comuna Russa”) já era de uma economia mercantil, onde todas as contradições próprias desse tipo de economia capitalista (concorrência entre produtores, compra e arrendo da terra por uma minoria de camponeses ricos, concentração da produção nas mãos da burguesia rural, expropriação da maioria dos camponeses, transformando-os em proletários) já predominava no campo russo. Lênin, polemizando com os populistas demonstrou que

“Atribuímos a esta conclusão uma importância fundamental, e não apenas no problema do capitalismo na Rússia, mas também no que diz respeito ao significado da doutrina populista em geral. Precisamente estas contradições mostram-nos de forma patente e irrefutável que o regime de relações econômicas na aldeia da “comunidade” não representa de forma alguma um tipo econômico especial (“produção popular”, etc.), mas sim um tipo pequeno-burguês corrente. Contrariamente às teorias prevalecentes no nosso país durante o último meio século, o camponês comunal russo não é antagônico  com respeito ao capitalismo. É, pelo contrário, a sua base mais profunda e mais firme.”

Que o desenvolvimento destas contradições levou a uma diferenciação de classes entre os camponeses (a “descampezinação”), “a destruição radical do velho regime patriarcal campesino e a formação de novos tipos de população do campo.” Estes tipos são a burguesia rural (em sua maioria como pequena burguesia) e o proletariado do campo, os operários agrícolas assalariados. A burguesia rural (camponeses acomodados) produzia uma agricultura comercial e era dona de industrias e comércios. Essa burguesia rural se tornou preponderante no campo e “senhora da aldeia”. O outro tipo preponderante era o proletariado rural (camponeses pobres, braceiros, jornaleiros, peões, etc.), que não tinham condições de tocar sua terra, arrendavam para os ricos e terminavam, para sobreviver, sendo obrigado a vender sua força de trabalho. Entre um e outro está o camponês médio. Sua fazenda só garantia sua sobrevivência e justamente por isso era muito instável. Qualquer seca prolongada transformava boa parte em proletários. Lênin concluiu, sempre apoiado em Marx, que “a diferenciação dos camponeses cria o mercado interno capitalista”, onde os novos proletários aumentavam seus gastos em bens de consumo e a nova burguesia investia boa parte do seu dinheiro na forma de capital, comprando meios de produção, desenvolvendo sua fazenda e abrindo novos ramos industriais e comerciais. Todo este movimento em direção à economia capitalista ainda, era motorizado pelo capital mercantil e usurário: “A teses fundamentais da concepção de Marx a este respeito são as seguentes: 1) o capital comercial e usurário, por um lado, e o capital industrial [isto é, o capital investido na produção, seja agrícola ou industrial], por outro, representam o mesmo tipo de fenômeno econômico abrangido pela fórmula: compra de mercadorias para vendê-las com lucro (Das Kapital, I, 2. Abschnitt, capítulo 4, especialmente pp. 148-149 da segunda edição alemã). 2) O capital comercial e usurário sempre precede historicamente a formação do capital industrial e logicamente é uma condição necessária para isso (Das Kapital, III, 1, S. 312-316; tradução russa, pp. 262-265; III, 2, 132-137, 149; tradução russa, pp. 488-492, 502), mas nem o capital comercial nem o capital usurário representam ainda em si uma condição suficiente para o nascimento do capital industrial (isto é, do capital produtivo); nem sempre decompõem o antigo modo de produção, substituindo-o pelo modo capitalista; a formação deste último “depende inteiramente do grau histórico de desenvolvimento e das circunstâncias dadas”

Na Rússia, este capital mercantil precedeu e fomentou ao mesmo tempo a dominação do capital industrial (compra da terra para vender o produto no mercado), que estava em pleno desenvolvimento no campo. Porém, este desenvolvimento do capitalismo no campo russo era freado por estruturas feudais, como a sujeição dos camponeses à terra, o pagamento em trabalho, a usura, a proibição de deslocamentos entre regiões, a proibição da venda dos lotes individuais, a caução solidária que os camponeses das terras comunais tinham que pagar à comunidade e ao governo, o direito à posse dos lotes individuais em usufruto, etc. Lênin via, nestas terras comunais, elementos positivos de posse da terra, porém advertia que elas estavam em processo de decomposição, a partir da diferenciação social interna à própria comunidade camponesa. Os populistas apostavam na posse comunal da terra (que existia ainda em parte importante do território russo) não vendo que a penetração do capitalismo em todas as esferas rurais estava solapando esta “Comuna Rural”, se processando a diferenciação à partir destas comunidades entre burguesia e proletariado rurais.

O capítulo 3 se denominou “Paso de los propietarios de tierra de la economía basada en la prestación personal a la capitalista” onde Lênin continua analisando as formas especificas de desenvolvimento do capitalismo no campo russo. “Economia de prestação pessoal” se tratava da servidão feudal no campo, pois o nobre latifundiário entregava parcelas de terra aos camponeses em troca de trabalho para si: pagamento em forma de trabalho. O nobre entregava parte das terras para a comunidade em usufruto pois era a única forma de ter trabalhadores operando nas suas terras. Ainda era uma economia natural, onde o trabalhador estava preso à terra. Nesse sistema, o camponês tinha seus próprios meios de produção, que utilizava nas terras do senhor feudal. Esse pedaço de terra entregue em usufruto para a “Comuna” era um “salário pago em espécie”, instituição própria de sistemas pré-capitalistas. O sistema capitalista, ao contrário destes sistemas anteriores, expropriou a terra aos camponeses para se assalariar “livremente” enquanto no sistema patriarcal o nobre entregava a terra como condição para ter um trabalhador à sua disposição, sem pagamento de salário. Aqui havia uma dependência total do camponês ao latifundiário e inclusive para se locomover de uma região a outra só tinha permissão com passaporte, estava sujeito a castigos corporais, etc. A abolição da servidão em 1861, com a reforma camponesa, minou o sistema patriarcal. Foi feito uma reforma agrária que separou a terra do latifundiário da terra do camponês que recebeu um “nadiel” (pedaço de terra) em troca de uma “caução solidária”, onde se pagava (resgate) regularmente esse pedaço de terra com trabalho dos camponeses. Se estabeleceu, segundo Lênin, uma transição que reuniu os traços do sistema patriarcal com o capitalismo, sendo este último o mais dinâmico, que estava engolindo o outro, comum  salto da utilização do maquinário revolucionando a produção rural e o sistema salarial remunerando o dobro do “pagamento em trabalho”. Aqui se mostra Lênin utilizando o método marxista, a concepção materialista da história, a dialética, para estabelecer uma visão do sistema de agricultura na Rússia em movimento, de um sistema a outro, histórico, dentro da totalidade mundial. Analisava as contradições da sociedade em seu movimento, para encontrar a formação das classes sociais no campo russo. Os populistas, ao contrário, partiam de um preconceito (“o capitalismo não tem futuro no campo russo pois o camponês tem a posse comunitária da terra”) e negavam essa diferenciação de classe que estava surgindo na base material da sociedade russa e estava se expressando na superestrutura política do país. Os populistas ao defender a “comuna rural” (sujeita e dominada pelos latifundiários) terminavam defendendo a velha economia patriarcal, com pagamento em trabalho, sujeição do camponês ao latifundiário, o pagamento da “caução solidaria”, obrigação de trabalhar de graça para o nobre e ainda sujeito à maus tratos e a proibição de mudar de lugar de residência. Assim, os populistas faziam uma idealização da vida patriarcal russa, do pagamento em trabalho e demais restos feudais da produção camponesa, uma idealização da exploração medieval, dos traços reacionários da pequena burguesia, porque acreditava que tal sistema garantiria a união do camponês com seus meios de produção. Por isso, tentavam mover a roda da história para trás. Os marxistas, ao contrário, analisavam o caráter progressivo dessas relações capitalistas em relação à sociedade feudal, pois impulsionava a revolução do uso de maquinas e do trabalho assalariado no campo, que já se tornavam majoritários. Ao desenvolver as forças produtivas, impulsionava a socialização do trabalho através das grandes empresas e do maquinário moderno e gerava, ao mesmo tempo que separava, as duas classes fundamentais da sociedade capitalista: a burguesia e o proletariado. Aumentou a intensificação do trabalho, a jornada alcançava até 15 horas diárias, em péssimas condições de trabalho e de vida. “Os fatos dizem-nos, com efeito, que o vasto movimento destinado a transformar a técnica agrícola começou apenas no período após a Reforma, um período de desenvolvimento da economia mercantil e do capitalismo. A concorrência e a dependência do agricultor do mercado mundial criada pelo capitalismo tornaram a transformação da tecnologia uma necessidade, que a queda do preço dos cereais agravou”. Com a utilização de maquinas na produção agrícola, aumentou a intensidade de trabalho dos assalariados rurais, aumento da jornada de trabalho, utilização de mulheres e crianças na produção e o trabalho noturno. Criou um exército industrial de reserva no campo de, aproximadamente, dois milhões de proletários rurais de um total de 6,3 milhões de operários agrícolas. Assim, mais da metade dos camponeses já tinham se proletarizado, trabalhando para a burguesia rural e os nobres latifundiários.

O capítulo 4 trata do crescimento da agricultura comercial e as formas especificamente russas deste crescimento. Lênin partiu de um fato: o crescimento da agricultura comercial aumentou a produtividade social e a quantidade de cereais colhidos enquanto ocorria uma divisão social do trabalho, com o aumento da população industrial e comercial e a divisão da população agrícola entre patrões e proletários rurais. Analisou cada ramo da agricultura e sua transformação em agricultura capitalista: a agricultura cerealista, a pecuária, de laticínios, de linho (tecidos) e a industrialização da batata, do álcool, do açúcar, da farinha, do azeite, do tabaco, da horticultura e fruticultura. Essa agricultura capitalista não se resumia a pequenas propriedades apenas: boa parte das fazendas tinham mais de 1000 hectares, empregando milhares de operários agrícolas (com média de mais de 100 operários por fazenda). A grande fazenda capitalista absorveu a produção da pequena propriedade, que produzia de forma associada ao grande fazendeiro-industrial-atravessador. Em geral, onde prevalecia o sistema anterior e a pequena propriedade, o nível de vida era ´pior, relativamente, que nas condições de agricultura comercial, pois o pequeno agricultor tinha um nível de vida e rendimentos abaixo do braceiro, do proletário rural. Mas enquanto aumentava o faturamento dos proprietários, com o aumento da produção e a elevação da técnica, ocorria uma piora da alimentação, das condições de trabalho e a ruína dos camponeses pobres. Apareceram as figuras do camponês sem-terra e dos mendigos: “O progresso da agricultura comercial piora a situação dos grupos inferiores de campesinos e os expulsa definitivamente das filas dos agricultores.” Lênin identificava a transformação da agricultura em um ramo industrial capitalista, ao processar os produtos agropecuários, onde as próprias fazendas elaboravam o produto bruto extraído da terra ou vendiam sua produção para industriais já estabelecidas. O progresso da agricultura comercial estimulava a demanda de operários assalariados agrícolas e, com a disseminação de maquinário no campo, a utilização da mão de obra feminina e infantil. Dessa forma se processava uma “descampesinização” e a transformação do sistema econômico semifeudal do pagamento em trabalho para o pagamento de salários por uma jornada determinada. Lênin concluiu este capítulo marcando: 1. O caráter crescente da evolução da agricultura para empresa comercial e industrial, que se especializava num produto específico para venda no mercado. 2. Que este crescimento da agricultura capitalista criava o mercado interno para o capitalismo. 3. Tinha um significado histórico de uma “grande força progressiva” ao superar os marcos do estancamento secular da economia feudal, patriarcal (com a sujeição do camponês à terra do latifundiário/nobre, com o sistema feudal de pagamento em trabalho, os castigos corporais, a condenação a trabalhos públicos, etc) e criava a grande indústria capitalista que deu impulso ao desenvolvimento das forças produtivas e a subsequente divisão nacional e internacional entre classes sociais, socializando a produção nacional e internacionalmente, levando ao crescimento das cidades e rompendo com o embrutecimento e o isolamento da vida rural-feudal-patriarcal: “…Sem a mobilidade da população, o desenvolvimento da sua consciência e atividade é inconcebível.”  

Porém, ao mesmo tempo, o capitalismo agudizava as contradições inerentes ao sistema, como as violentas crises cíclicas que acomete o sistema, que depois de derrubar a produção, geram um impulso maior ainda ao desenvolvimento da produção mundial e da socialização do trabalho, onde as pequenas empresas em crise são engolidas pelo grande capital. O surgimento e desenvolvimento do capitalismo gerou o fortalecimento de uma minoria burguesa, poderosa e rica, que concentrava os meios de produção nas suas mãos e gerava o empobrecimento da classe trabalhadora na outra ponta, criando um exército industrial de desempregados, cuja função era rebaixar os salários do conjunto. Toda uma parte deste capítulo, Lênin se referiu à polêmica sobre a “Comuna Russa” e a opinião de Marx sobre ela: para os populistas “O princípio da comunidade impede que o capital se   apodere da produção agrícola“. Porém, Marx demonstrou em O Capital que o sistema capitalista se apoderava de todas as formas econômicas pré-capitalistas e subordina ao seu sistema, como ocorreu na América, onde subordinou as formas feudais e escravistas ao mercado mundial capitalista em formação. Marx assinalava que “a propriedade comunal é um complemento da pequena propriedade”. Os populistas antepõem uma forma de posse da terra à outra perguntando: “comunidade ou capitalismo?” quando se viu na Rússia de então que o capitalismo penetrou na “comuna russa”[1] e produziu uma diferenciação de classe entre o campesinato. Lênin disse que o centro da discussão não é a forma de possessão da terra: “A questão realmente importante não se refere de forma alguma à forma de posse da terra, mas aos vestígios puramente medievais que continuam a influenciar os camponeses: o caráter fechado da comunidade camponesa como instituição estamental, a caução solidária, as contribuições desproporcionalmente elevadas que pesam sobre as terras camponesas, sem comparação com os impostos cobrados sobre as terras de propriedade privada, a falta de total liberdade para a mobilização das terras camponesas e a restrição da liberdade de circulação e migração. Todas estas instituições ultrapassadas, que de forma alguma garantem o camponês contra a diferenciação, apenas levam à multiplicação das diversas formas de pagamento em trabalho e de exploração usurária, à reter todo o desenvolvimento social numa escala enorme.”

Os populistas utilizavam citações de Marx, em abstrato, para deduzir que o capitalismo era incompatível com posse comunal da terra e com a agricultura racional. Por isso, acreditavam que o capitalismo não se implantaria na Rússia. Porém, Marx afirmou “o papel histórico progressivo do capitalismo na agricultura”:[2]

“Pela sua própria natureza, a pequena propriedade da terra exclui o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho, as formas sociais de trabalho, a concentração social do capital, a pecuária em grande escala e a aplicação progressiva da ciência.

“A usura e o sistema tributário devem levá-la à ruína em todos os lugares. A utilização do capital para a compra de terras retira esse capital da agricultura. Infinita dispersão dos meios de produção e isolamento dos produtores. Deterioração progressiva da força humana. A piora progressiva das condições de produção e o aumento do custo dos meios de produção constituem uma lei necessária da pequena propriedade. Para este modo de produção, os anos de boa colheita representam uma desgraça” (III, 2, 341-342. Tradução russa, 667).[3]

“A pequena propriedade da terra implica que a grande maioria da população seja rural, que o trabalho individual predomine sobre o trabalho social; e  consequentemente, isso exclui a diversidade e o desenvolvimento da reprodução, isto é, de suas condições materiais e espirituais, exclui as condições do cultivo racional” (III, 2, 347. tradução russa, 672).[4]

[Segue Lênin, se referindo a Marx] Longe de fechar os olhos às contradições inerentes à agricultura capitalista em grande escala, o autor destas linhas [Marx], pelo contrário, denunciou-as incansavelmente, sem que isso o impedisse de avaliar o papel histórico do capitalismo.

“…Um dos grandes resultados do modo de produção capitalista é que, por um lado, ele transforma a agricultura de uma ocupação empírica, mecanicamente transmitida por herança, da parte menos desenvolvida da sociedade, em um emprego consciente e científico. da agronomia na medida em que isso é possível com a propriedade privada da terra; na medida em que, por um lado, separa absolutamente a propriedade da terra das relações de senhorio e de escravatura, enquanto, por outro lado, separa completamente a terra, como condição de produção, de propriedade da terra e de proprietário da terra… Por um lado, a racionalização da agricultura, dando pela primeira vez a possibilidade de organizá-la socialmente; por outro, outro, a redução ao absurdo da propriedade da terra: tais são os grandes méritos do modo de produção capitalista. Tal como acontece com os seus outros méritos históricos, este  também é comprado ao preço do empobrecimento completo dos produtores diretos” (III, 2, 156-157. Traduzido Russo, 509-510).[5]

Mesmo apesar destes alertas de Marx, os populistas evitavam confrontá-lo, preferindo atacar os “discípulos russos”.

O capítulo 5 analisou as primeiras fases do capitalismo na indústria russa. A indústria nasceu no campo, a partir dos pequenos produtores rurais que começaram a processar os produtos extraídos da sua fazenda, para vender no mercado. Nestes primórdios, o capital comercial jogou um papel importante na expansão da indústria camponesa, no longo caminho de modesta indústria doméstica até a grande indústria maquinizada. Essa pequena indústria foi montada pelos camponeses acomodados, um regime pequeno-burguês típico, que se avolumou formando a grande burguesia rural e, só foi possível pelo surgimento do proletariado rural, oriundo da quebradeira geral da pequena propriedade camponesa pobre e da conversão das pequenas indústrias camponesas em grandes indústrias capitalistas. Lênin sintetiza todo o processo afirmando:

“O processo de separação entre indústria e agricultura está relacionado com a diferenciação dos camponeses, e opera de formas diferentes em ambos os polos da aldeia: a minoria abastada cria empresas industriais, expande-as, melhora a agricultura, contrata trabalhadores agrícolas para o cultivo da terra, dedica uma parte cada vez maior do ano à indústria e – até certo ponto do desenvolvimento desta última – considera mais vantajoso separar a empresa industrial da empresa agrícola, isto é, deixar a agricultura a cargo de outros membros da família ou vender as instalações, o gado, etc., e tornar-se pequeno-burguês, em comerciante.

A separação entre indústria e agricultura é precedida, neste caso, pela formação de relações capitalistas na agricultura. No outro polo da aldeia, a separação entre indústria e agricultura reside no fato de os camponeses pobres falirem e se tornarem operários assalariados (industriais e agrícolas). Neste polo da aldeia não são as vantagens da indústria, mas a necessidade e a ruína, que obrigam ao abandono da terra e não só da terra, mas também do trabalho industrial independente; o processo pelo qual a indústria é separada da agricultura é aqui um processo de expropriação do pequeno produtor.”

O capítulo 6 analisou o avanço da manufatura capitalista no campo russo. A manufatura é uma fase da técnica do capitalismo de transição entre o artesanato e a indústria maquinizada, onde já existia uma divisão do trabalho avançada, mas ainda com uma produção, todavia manual. No final do século XIX e início do século XX a manufatura se espraiou em toda a Rússia, especializando ramos industriais por regiões e iniciando a separação entre campo e indústria, especialmente criando um proletariado oriundo do campo (às vezes ainda possuindo pequenas parcelas de terra – “nadiel”), mas que não é mais agricultor e sim operário assalariado. Essa manufatura se apoiava fundamentalmente na indústria “kustar” (indústria que nasceu do processamento dos produtos agrícolas realizados pelos próprios agricultores), pequena produção industrial, muitas vezes utilizando o trabalho em casa, e que se tornou fornecedora de operários treinados para a grande indústria maquinizada e daí surgiram, também, os grandes industriais burgueses, que utilizavam esta indústria na produção terceirizada de partes do processo produtivo fabril. Apesar de ser uma extensão (“seções exteriores”) das oficinas industriais, o trabalho doméstico assumiu um peso importante no desenvolvimento da manufatura na Rússia de então porque evitava o gasto com abertura de oficinas, diminuía o gasto com alimentação de operários e permitia que as jornadas fossem auto estendidas até 19 horas diárias. Neste capítulo, Lênin analisa dados dos ramos industriais por região da Rússia. Essa manufatura assumiu característica especifica na Rússia porque se apoiou na pequena industrial rural (“kustar”), mantendo a ligação da indústria com o campo. Nesse tipo de indústria se prolongava a jornada de trabalho e reduzia o nível de vida e de consumo, enriquecendo em grande velocidade a burguesia comercial, se convertendo em burguesia industrial.

“Em todas as indústrias que examinamos, estruturadas de acordo com o tipo de produção, a grande maioria dos operários não são independentes, estão subordinados ao capital, recebem apenas salários e não possuem nem as matérias-primas nem o produto acabado. Em última análise, a grande maioria dos operários destas “indústrias” são operários assalariados, embora esta relação na manufatura nunca atinja a perfeição e a pureza que é própria da fábrica. Na indústria, o capital industrial está entrelaçado das mais variadas formas com o capital comercial, e a dependência em que o trabalhador se encontra em relação ao capitalista assume infinitas formas e nuances, começando pelo trabalho assalariado numa oficina alheia, continuando com o trabalho a domicílio para o “empregador” e acabando com a dependência da compra de matéria-prima ou da venda do produto. Juntamente com a massa de operários dependentes, permanece sempre na indústria um número mais ou menos considerável de produtores quase independentes. Mas toda esta variedade de formas de dependência apenas esconde a característica fundamental da indústria, que é que a divisão entre os representantes do trabalho e do capital já se manifesta aqui com toda a sua força. Quando ocorreu a libertação dos camponeses, esta divisão já estava consolidada nos maiores centros da nossa indústria pela sucessão de várias gerações. Em todas as “indústrias” que examinamos antes vemos uma massa da população que não tem recursos para viver, fora do trabalho, sob a dependência de pessoas da classe rica, e, por outro lado, uma pequena minoria de ricos industriais que têm em mãos (de uma forma ou de outra) quase toda a produção da região. Este fato fundamental é o que confere à nossa indústria um caráter capitalista muito acentuado, diferentemente da fase anterior. Havia também dependência do capital e do trabalho assalariado, mas ainda não se tinham cristalizado em nenhuma forma firme, ainda não tinham englobado à massa dos industriais, à massa da população, não tinham provocado uma cisão entre os diferentes grupos de pessoas. que participavam da produção.”

A manufatura, baseada na divisão de trabalho sistemática, foi simplificando as tarefas industriais, preparando as operações maquinizadas da grande indústria, porém, esta mesma divisão de trabalho incentivava a pequena produção industrial, até mesmo a terceirização via trabalho em casa. Desta forma, especificamente russa, a manufatura preparou as condições para a grande indústria maquinizada, fase que entrou o capitalismo russo no início do século XX.

Em geral, se deu uma elevação do nível de consumo dos trabalhadores destes centros industriais manufatureiros, não mais agrícolas, que recebiam salários mais altos que a renda média dos camponeses pobres, utilizavam vestimentas modernas, de pano, adquirem produtos industriais como samovares (para fazer chá), aumentava a escolaridade e a cultura em geral. Porém, essa melhora é comparada com a situação de vida dos camponeses pobres, arruinados, porque, no geral, a vida dos operários e as condições de trabalho pioraram com péssimas condições de higiene no trabalho, jornadas de 14 a 15 horas (chegando até 19 horas), adquirindo todo tipo de doenças profissionais. Se para uma pequena parcela dos operários industriais houve uma melhora substancial, para o conjunto da classe trabalhadora houve uma piora das condições de vida e trabalho (que se demonstra no extenso exército industrial de reserva), especialmente para os setores mais explorados e oprimidos do proletariado. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia trouxe consigo a lei do empobrecimento geral do proletariado (miséria crescente) em razão inversa ao crescimento da acumulação de riqueza capitalista. “Empobrecimento completo da massa de produtores, que é condição e consequência da manufatura capitalista.” Sempre ao lado das grandes fábricas, onde as condições salariais e de trabalho são melhores, havia uma profusão de pequenas empresas onde reinava uma exploração brutal dos operários, inclusive utilizando mão de obra feminina e de crianças. As melhoras obtidas sempre foram conquistas da luta dos operários, como foi o caso da redução da jornada, por lei, para 11 horas e meia, na Rússia, em 1897. Nunca foi uma dádiva dos burgueses ou nobres. Porém, estas conquistas não eram estendidas para todas as empresas, especialmente as pequenas fábricas “kustares” (com seu complemento, o trabalho industrial realizado em casa), que empregava cerca de 4 milhões de operários, justamente os setores mais explorados e oprimidos em condições aviltantes, trabalhando quase de graça. O trabalho industrial domiciliar, que é característico da fase manufatureira do capitalismo, ocorre em todas as fases deste sistema. Por isso mesmo, é que hoje, em pleno século XXI, está retornando: nada mais é que uma expressão da utilização do exército industrial de reserva para aumentar a exploração do proletariado.

O capítulo 7 analisa a evolução da fase manufatureira do capitalismo russo para a fase da grande indústria maquinizada.  Lênin começa definindo esta fase do capitalismo:

“Ao passar para a grande indústria mecanizada (fabril), é necessário, sobretudo, estabelecer que a sua concepção científica não corresponde de forma alguma ao senso comum, em uso, deste termo. Nas nossas estatísticas oficiais e na nossa literatura em geral, uma fábrica é entendida como toda empresa industrial mais ou menos grande, com um número mais ou menos considerável de operários assalariados. Por outro lado, a teoria de Marx apenas chama a grande indústria mecânica (fabril) a um determinado grau de capitalismo na indústria, precisamente o mais elevado. O caráter fundamental e mais essencial desta fase é a utilização de um sistema de máquinas para produção.[6] A transição da manufatura para a fábrica representa uma revolução técnica completa, que derruba a arte manual do mestre, acumulada ao longo dos séculos, e esta revolução técnica é inevitavelmente seguida pela mudança mais radical nas relações sociais de produção, a cisão definitiva do diferentes grupos de pessoas que participam na produção, a ruptura completa com as tradições, a agudização e o alargamento de todos os aspectos sombrios do capitalismo e, ao mesmo tempo, a socialização em massa do trabalho pelo capitalismo. A grande indústria mecanizada é, portanto, a última palavra do capitalismo, a última palavra dos seus “aspectos, positivos e negativos”.

Esse salto da produção fabril maquinizada encontrou resistência nos traços de economia feudal que ainda prevalecia em algumas regiões industrias (a mineração nos Urais, por exemplo): as minas eram de propriedades de latifundiários nobres, que utilizavam o monopólio de sua situação estamental para impedir a concorrência e uso de “seus” camponeses como mão de obra, que recebiam salario na forma de pagamento em trabalho, pelo direito de resgatar seu pedaço de terra. Por essas dificuldades de desenvolvimento livre do capital, a mineração e o petróleo se deslocaram para o sul da Rússia, onde chegou a ter um peso de 5% da produção mundial de ferro.

Se comprovou na Rússia, após a abolição da servidão em 1861, o crescimento vertiginoso da grande fábrica, que concentrou a maior parte dos operários:

NÚMERO DE OPERARIOS NAS GRANDES EMPRESAS CAPITALISTAS (EM MILHARES)

Anosna indústria fabrilna indústria mineiranas ferroviasTotal população urbana
1865509165327066.100
18908403402521.43212.000

Assim, o número de operários trabalhando em grandes empresas capitalistas dobrou em 25 anos, crescendo muito mais rápido que a população em geral e urbana. Os operários industriais representavam 12% da população urbana da Rússia de 1890. “En 1866, en las fábricas con 1.000 y más obreros había un 27% del total de los obreros de las grandes’ fábricas; en 1879, un 40%; en 1890, un 46%.” Essa concentração de operários nas grandes fábricas russas foi superior à concentração de operários nas grandes fábricas alemães, segundo Lênin.

Os economistas populistas utilizavam os dados estatísticos com a finalidade de provar sua tese que o capitalismo não tinha possibilidade de prosperar pelo espírito comunista do campesinato, relacionavam os operários industriais com o conjunto da população da Rússia, para concluir que estes operários representavam apenas 1% da população, portanto, um “punhado insignificante” diante da população russa total.

Essa minimização escondia que em 1903 já havia 2.792.374 operários industriais, mineiros e ferroviários que, somados aos cerca de 4 milhões de operários das industrias “kustares”, já alcançava quase 7 milhões de operários industriais, sem considerar o operário agrícola.

A partir destes dados, Lênin ampliou o estudo do conjunto da população e sua relação com a produção, para determinar a localização de classe da população russa a partir do censo geral de 1897 sobre a estadística das ocupações de toda a población:

OcupacionesIndependientesFamiliaresTotal de población
De ambos sexos  
a) Funcionarios y tropa1,50,72,2
b) Clero y profesiones liberales0,70,91,6
c) Rentistas y pensionistas1,30,92,2
d) Recluidos, prostitutas, de profesión indeterminada, desconocida0,600,30,9
Total de población no productiva4,12,86,9
OcupacionesIndependientesFamiliaresTotal de población
De ambos sexos  
e) Comercio1,63,45,0
f) Transporte y comunicaciones0,71,21,9
g) Empleados privados, sirvientes, jornaleros3,42,45,8
Total de población semiproductiva5,77,012,7
OcupacionesIndependientesFamiliaresTotal de población
De ambos sexos  
h) Agricultura18,275,593,7
i) Industria…….5,27,112,3
Total de población productiva23,482,6106,0
Total33,292,4125,6

Deste censo, Lênin concluiu que:

“Deste ponto de vista, toda a população deve ser dividida em três grandes seções: I. População agrícola. II. População industrial e comercial. III. População não produtiva (mais precisamente, que não participa na atividade econômica). Dos nove grupos apresentados (a-i), apenas um não pode ser incluído direta e completamente em nenhuma dessas três seções fundamentais. Trata-se do grupo g: empregados particulares, serventes, diaristas. Este grupo deve estar distribuído aproximadamente entre a população comercial e industrial e a população agrícola. Incluímos no primeiro a parte deste grupo que se indica que residem nas cidades (2.500.000), e no segundo, a parte que vive no campo (3.300.000). Então obtemos a seguinte tabela de distribuição de toda a população da Rússia:

Población agrícola de Rusia97.000.000 (77,4%)
Comercial e industrial21.700.000(17,2%)
No productiva6.900.000(5,4%)
Total125.600.000(100%)

E concluiu:

“Esta tabela mostra nitidamente, por um lado, que a circulação de mercadorias e, consequentemente, a produção de mercadorias, estão firmemente estabelecidas na Rússia. A Rússia é um país capitalista. Por outro lado, verifica-se que a Rússia ainda está muito atrás de outros países capitalistas no seu desenvolvimento econômico.” Agora, Lênin passa a separar por classes sociais e setores de classes:

“Na massa de 97 milhões de camponeses é necessário distinguir três grupos fundamentais: o inferior, as camadas proletárias e semiproletárias da população; o médio, os pequenos proprietários pobres, e o superior, os pequenos proprietários ricos. Acima analisamos detalhadamente as características econômicas fundamentais destes grupos, como diferentes elementos de classe. O grupo inferior é formado pela população despossuída que vive basicamente ou a parciamente da venda de força de trabalho. O grupo médio é formado pelos pequenos proprietários pobres, já que o camponês médio, mesmo nos melhores anos, mal consegue sobreviver, mas a principal fonte de subsistência aqui é a pequena fazenda “independente” (supostamente independente, é claro). Finalmente, o grupo superior são os pequenos proprietários ricos, que exploram um número mais ou menos considerável de trabalhadores agrícolas e diaristas e de operários assalariados de todos os tipos em geral.

A parte aproximada desses grupos na soma geral é: 50%, 30% e 20%.”

Portanto, no campo a população agrícola se dividiu assim: 48.500.000 de população proletária e semiproletaria, 29.100.000 de pequenos proprietários pobres e cerca de 19.400.000 de camponeses acomodados.

Para toda a população da Rússia, agrupando a população agrícola, comercial e industrial e a não produtiva, Lênin encontrou a seguinte divisão de classe no conjunto da população russa de 1897:

  Toda la población
Gran burguesía, terratenientes, altos funcionarios y demásunos3.000.000 (2,3%)
Pequeños patronos acomodados23.100.000(18,4%)
Pequeños patronos pobres35.800.000(28,5%)
Proletarios* y semiproletarios63.700.000(50,7%)
Totalunos125.600.000
  • Proletários são, pelo menos, 22 milhões.

Os aspectos positivos desta fase capitalista eram:

  1. A divisão de trabalho foi tão simplificada que se generalizou o uso de máquinas na produção industrial para reproduzir movimentos repetitivos na produção.
  2. Isto permitiu um salto na produtividade do trabalho, isto é, da produção por trabalhador.
  3. Incentivou a entrada de mulheres e adolescentes na produção de mercadorias, ainda que com objetivo de superexplorar, terminou por impulsionar a independencia da mulher frente à sua escravidão doméstica. Nas fábricas da Rússia de 1890, já havia 24% de mulheres trabalhando na produção.
  4. Levou ao conhecimento social da produção de riquezas, um salto na contabilidade social da produção.
  5. A socialização completa da produção de mercadorias, que rompeu com a produção artesanal, individual, para uma produção social, de toda uma fábrica, de todo um ramo produtivo.
  6. A internacionalização da produção que se expandiu para o mundo, onde a produção de uma mercadoria tinha a participação de milhões de operários de vários países, com matérias primas originarias de vários continentes.
  7. Movimento que rompeu o estancamento produtivo medieval e destruiu as tradições patriarcais e pequeno-burguesas, o isolamento e o embrutecimento da vida rural e a dependência total do camponês ao senhor feudal.
  8. A elevação do nível de vida da população nas regiões industriais e da sua cultura, instrução, etc.
  9. Esse salto na socialização e internacionalização da produção exigiu, requeriu, todos os dias, por uma regulação internacional da produção, pelo controle social da produção mundial de mercadorias que chegou ao seu auge em todo o mundo. Essa socialização é a base da nova formação econômica-social socialista.

Os aspectos negativos (ou “sombrios” como fala Lênin) desta fase superior do capitalismo eram:

  1. O uso de máquinas de forma generalizada torna supérflua uma parte importante dos trabalhadores, gerando um enorme exército industrial de desempregados que pressionou o salário para baixo.
  2. O uso de máquinas de forma generalizada também pressionou pelo prolongamento da jornada de trabalho.
  3. O surgimento de todo tipo de doença profissional devido à intensificação do ritmo da produção de mercadorias.
  4. O salto na acumulação de riqueza da burguesia provocou o empobrecimento geral da população, ainda que tenha havido uma melhoria das condições de vida e trabalho em relação às relações de trabalho medievais, patriarcais.

Os populistas tentavam demonstrar que a grande indústria capitalista não prosperaria na Rússia, pela força da pequena propriedade que mantinha os laços com o campo e a posse comunitária da terra.

“Assim, os últimos 3/4” (de toda a produção anual) correspondem a empresas de tipo relativamente pequeno. As raízes deste fenômeno podem estar em muitos elementos substancialmente importantes da economia nacional russa. Deve-se incluir aqui, entre outros, o regime de propriedade da terra na massa da população agrícola, a vitalidade da comunidade (sic!), que, na medida das suas forças, dificulta, no nosso país, o desenvolvimento da classe profissional dos operários fabris. Com isto também se combina (!) a difusão da forma doméstica de transformação de produtos, precisamente naquela área da Rússia (a central) onde nossas fábricas estão localizadas principalmente” (ibid., itálico do Sr. Karishev).”

Assim, os economistas populistas distorciam os dados para comprovar sua tese pré-concebida. Os dados da tabela abaixo, comprovaram uma tese contraria a dos populistas:

Relação de fábricas com valor da produção de mais de 1000 rublos

tiponúmero fábricas%número operários%valor da produção anual%
grandes6.89174,5%342.47397,9%276.211.00099,7%
pequenas2.36625,5%7.3272,1%987.0000,3%
total 9.257100,0%349.800100,0%277.198.000100,0%

Fonte: Anuário do Ministério da Fazenda

Com estes dados, Lênin demonstrou que a grande indústria concentrou o grosso dos operários e do valor da produção.

Porém, a questão não se resumia a um problema quantitativo: a grande indústria permitia multiplicar o valor da produção com a utilização de máquinas, que modificava as relações da fábrica com o campo, dissociando completamente uma da outra, enquanto a pequena produção seguia ligada ao campo e com trabalho manual. São relações sociais de produção diferentes que remontavam a três fases diferentes da produção industrial capitalista: pequena produção artesanal (camponesa), a manufatura capitalista e a grande indústria maquinizada.

“As três formas básicas de indústria mencionadas acima distinguem-se sobretudo por um estado diferente da técnica. A pequena produção comercial é caracterizada por uma técnica manual completamente primitiva, que quase não mudou desde tempos imemoriais. O industrial continua sendo um camponês, que tradicionalmente adota os métodos de transformação das matérias-primas. A manufatura introduz a divisão do trabalho, que proporciona uma transformação sensível da técnica, transformando o camponês em operador, um “trabalhador que fabrica peças específicas”. Mas a produção manual é preservada e, com base nela, o progresso dos modos de produção caracteriza-se inevitavelmente por uma grande lentidão. A divisão do trabalho ocorre de forma espontânea, também é adotada pela tradição, como o trabalho camponês. Somente a grande indústria mecânica introduz uma mudança radical, lança a arte manual ao mar, transforma a produção em princípios novos e racionais, aplica sistematicamente os dados da ciência à produção.

Até onde o capitalismo não organizou na Rússia a grande indústria maquinizada, e também nos ramos da indústria onde ainda não a organizou, observamos uma estagnação quase completa da técnica, vemos o uso do mesmo torno manual, do mesmo moinho de água ou vento que foi usado na produção há séculos. Pelo contrário, nos ramos da indústria que a fábrica colocou sob a sua influência, vemos uma revolução técnica completa e um progresso extraordinariamente rápido nos modos de produção mecânica.

Em relação aos diferentes estados da técnica, vemos diferentes fases de desenvolvimento do capitalismo. A pequena produção mercantil e a manufatura comercial caracterizam-se pelo predomínio de pequenas empresas, das quais se destacam apenas algumas grandes. A grande indústria de máquinas substitui definitivamente as pequenas empresas.

Finalmente, o capítulo 8, denominado “formação do mercado interior”, traçou um quadro geral do desenvolvimento do capitalismo na Rússia, começando pelo crescimento do trabalho assalariado. Lênin avaliou em 15,5 milhões de proletários, sendo 3,5 milhões operários agrícolas, 1,5 milhão de operários industriais, mineiros e ferroviários, 5 milhões de assalariados em geral, 1 milhão de operários da construção, 2 milhões de operários da extração de madeira, carga e descarga, peões de trecho, 2 milhões de operários que trabalham em casa. Deste total, havia 2,5 milhões de mulheres e adolescentes na produção. Produziu-se um deslocamento de trabalhadores da agricultura para a indústria, criando grandes centros industriais que atraiu milhões de trabalhadores rurais, por oferecer melhores salários e uma vida em cidades com mais direitos.

Os populistas afirmavam que o capitalismo não tinha futuro na Rússia pelo pequeno peso dos operários no conjunto do país. Lênin retrucou dizendo que:

“O papel dirigente do proletariado foi plenamente enfatizado, bem como que a sua força no movimento histórico é incomensuravelmente maior do que a sua proporção numérica na massa total da população.”

Essa tese se demonstrou verdadeira tanto na revolução de 1905 como na de 1917.

Lênin mostrou também que o desenvolvimento do capitalismo na Rússia podia ocorrer sem existir, necessariamente, um mercado exterior. Mas, o salto da industrialização do país, obrigou os capitalistas a buscar os mercados externos, através da colonização interna e externa, onde regiões inteiras foram colonizadas para exportação de petróleo, mineração, madeira e produtos alimentícios, vinhos e outros produtos que ocuparam um espaço importante no mercado mundial. A industrialização e colonização do Cáucaso (Geórgia, Armênia, Azerbaijão, Chechênia etc), junto com outras regiões que compunham a Rússia deu um impulso ao desenvolvimento do capitalismo na Rússia.

Lênin concluiu este capítulo explicando a “missão” do capitalismo na Rússia, qual o papel histórico no desenvolvimento econômico da Rússia:

“O reconhecimento do carácter progressista deste papel é inteiramente compatível… com o pleno reconhecimento dos aspectos negativos e sombrios do capitalismo, com o pleno reconhecimento das profundas e múltiplas contradições sociais inevitavelmente inerentes ao capitalismo, contradições que revelam o caráter historicamente transitório deste regime econômico. Precisamente os populistas – que tentam com todas as suas forças apresentar a questão como se reconhecer o caráter histórico progressista do capitalismo significasse ser o seu apologista…”

Afirmação importante do Lênin pois, em geral, se passa uma ideia que Lênin era defensor do capitalismo enquanto os populistas seriam opositores desse sistema. Nada mais equivocado. Lênin reconhecia o capitalismo como um sistema progressivo em relação ao sistema feudal que imperou no país até 1861 e que manteve, principalmente no campo, as relações medievais de produção. Os dois elementos centrais progressivos do capitalismo que estava surgindo na Rússia era, em primeiro lugar, o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, que deu um salto na fase da grande indústria maquinizada, deixando para trás o trabalho manual e a técnica primitiva (arado de madeira, moinhos de agua como força motriz, fabricação manual de roupas)[7]. Outro aspecto importante do desenvolvimento das forças produtivas, segundo Lênin, é o crescimento da fabricação de meios de produção (para o processo de produção fabril) numa velocidade superior à produção de meios de consumo da sociedade. Essa é uma característica central do sistema capitalista, que impulsiona seu desenvolvimento por saltos, a produção pela produção, gerando seu próprio mercado consumidor. Porém, pela produção ser realizado por proprietários privados, sem um planejamento nacional e internacional, leva a auge e crises capitalistas cada vez mais fortes, onde o desenvolvimento das forças produtivas (a produção maquinizada em grande escala ao nível internacional) se choca com as relações de produção baseadas na propriedade privada dos meios de produção. Em segundo lugar, o elemento progressivo do capitalismo é a socialização do trabalho, que supera a produção dispersa em pequenas empresas, próprias do sistema anterior com consumo restrito local e produção individual, artesanal, criando um enorme mercado nacional e internacional. A produção individual para si ou sob encomenda se transforma em produção para toda a sociedade e “quanto mais desenvolvido está o capitalismo, mais forte é a contradição entre este caráter coletivo da produção e o caráter individual da apropriação”, contradição central do capitalismo e que provoca crises e a necessidade de avançar para o socialismo, suprimindo essa contradição ao suprimir a grande propriedade burguesa e colocá-la sob controle social. Essa socialização da produção significa uma concentração nunca vista da produção de mercadorias, tanto na agricultura quanto na indústria, por uma quantidade cada vez menor de grandes empresas. Significa também a superação da economia feudal, medieval, baseada na sujeição do camponês à terra e ao seu senhor feudal (nobre, latifundiário), trabalhar de graça para seu senhor, como forma de pagamento em trabalho pelo seu lote de terra (que pertencia à “comuna” e era entregue em usufruto ao camponês e sua família. “Em comparação com o trabalho do campesino dependente ou sujeito a exploração usurária, o trabalho do operário assalariado é um fenômeno progressivo em todos os terrenos da economia nacional.” O capitalismo mobilizou a população que se deslocou da agricultura para os grandes centros industrias, que impulsionou a luta entre as classes e a associação em grandes grupos (classes socais) de acordo com o papel desempenhado na produção de mercadorias na sociedade. O salto do capitalismo na Rússia atraiu cerca de 2,5 milhões de mulheres para trabalhar nas fábricas, movimento que debilitou a velha família patriarcal, permitindo uma independência da mulher em relação ao homem, igualando em direitos ainda que não igualou em salários. A industrialização da Rússia e a concentração da população trabalhadora em grandes cidades permitiu o aumento da instrução escolar, da consciência de classe do proletariado, que podia superar o capitalismo, como sociedade historicamente transitória, que criava as condições materiais da sua superação pelo socialismo.

Assim, a visão de que Lênin defendia o capitalismo como sistema progressivo em si mesmo e que se desenvolveria por uma longa etapa não passa de um mito. Os apologistas do capitalismo nesta discussão eram os “marxistas legais” (Struve, Tugán-Baranovski e outros) que utilizaram o marxismo como ponte para fundar o partido Kadete, da burguesia liberal-constitucionalista.

Diferenças de Lênin com Struve e Plekhánov em 1895

Apesar de Lênin ter acordo com estes dois marxistas, especialmente Plekhánov que foi o fundador da primeira organização marxista da Rússia e era inspirador do Lênin em boa parte das suas posições, sua análise da Rússia e sua visão de mundo do marxismo já diferia tanto do objetivismo fatalista de Struve quanto do materialismo mecanicista de Plekhánov. Essas diferenças ficaram patentes no livro “Contenido económico del populismo y su crítica en el libro del señor Struve” de 1895.

Ao utilizar o marxismo, não como um dogma, mas como ferramenta de análise científica da Rússia, Lênin foi original.

Ele tinha a mesma opinião que Struve de que a penetração do capitalismo na Rússia era progressiva, mas Struve acreditava que o capitalismo traria o progresso e a democracia para a Rússia e que sua implantação era inevitável, como uma lei histórica inelutável, como uma fase que todo país teria que passar, era a roda da história que se movia de atraso para o progresso.

Lênin atacava essa posição de objetivismo fatalista, que transformou Struve em um apologista do capitalismo. Lênin falou isso em 1895, quando Struve ainda era considerado um socialdemocrata, um marxista. 10 anos depois Struve se converteria em um dos líderes do partido Kadete, o partido da burguesia liberal russa.

Lênin considerava a implantação do capitalismo na Rússia como progressivo apenas em relação ao feudalismo: retirava o campesinato do seu isolamento rural e o desenvolvimento das cidades, o surgimento do proletariado e da burguesia, abriria as condições para uma luta de classes aberta pelo socialismo. Lênin tinha claro que com o desenvolvimento do capitalismo na Rússia aumentaria a pobreza e o desemprego em uma ponta enquanto aumentaria a acumulação de capital na outra ponta. Sua progressividade residia apenas que se mostraria o capitalismo como apenas uma sociedade de classes, com profundas desigualdades sociais e uma brutal exploração, que deveria ser superada pelo socialismo. Lênin extraía desta visão que a tarefa central dos marxistas era de impulsionar a luta de classes contra os capitalistas, elevando a consciência de classe dos trabalhadores.

A diferença com Plekhánov, que nesse então, era seu dirigente (a maioria dos historiadores dizem que era seu “mestre” a quem Lênin seguia de olhos fechados, em todos os aspectos políticos, filosóficos, teóricos e programáticos – veremos que não foi bem assim) via a implantação do capitalismo na Rússia como uma marcha inexorável da história com sucessivos modos de produção que iam do atraso para a modernidade, para a civilização. “O socialdemocrata nada na corrente da história[8] e as causas do desenvolvimento histórico “não tem nada que ver com a vontade humana ou a consciência”.[9]

Já em seu quarto livro, “Contenido económico del populismo y su crítica en el libro del señor Struve”, de 1895, Lênin se diferenciava dessa visão marxista vulgar, deixando claro que o marxismo não concordava com “a crença de que cada país deve passar necessariamente pela fase capitalista”.

Essa apologia do desenvolvimento capitalista feita por Plekhánov levou a uma posição diferente do Lênin quanto ao enfrentamento do proletariado com a burguesia russa. Plekhánov e Axelrod, dirigentes do grupo Emancipação do Trabalho, que Lênin era adepto, criticaram a visão de Lênin hostil à burguesia russa, exposta neste livro de 1895. Plekhánov era adepto da aliança do proletariado com a burguesia russa e disse na cara de Lênin: “você está virando as costas para a burguesia, quando devemos marchar juntos com ela”.

Essa diferença vai explodir em toda sua magnitude na revolução de 1905, mas já havia vindo à luz nos debates programáticos do congresso de 1903, onde a aliança com a burguesia passaria, dentro de 2 anos, a ser o eixo central do programa dos mencheviques.

Lênin também via o papel dos narodniki como progressivos, principalmente seu aspecto democrático-revolucionário dos seus primeiros dirigentes e não se recusava a utilizar o terror revolucionário em todas as circunstâncias. Lênin dizia que se neste momento a tática terrorista era contraproducente, poderia ser usada em outras circunstâncias. Lênin sempre reivindicava o lado heroico dos lutadores narodniki e aprendeu muito com seus métodos de clandestinidade. Por outro lado, para Lênin, era inadmissível um acordo com a burguesia russa, mas era admissível um com o campesinato pobre que lutava pela terra.

Essas diferenças que, em 1895, eram embrionárias, adquiririam grande importância no futuro que trataremos no devido momento.

A polêmica de Lênin com os populistas

A polêmica de Lênin com os populistas era de outro calibre: os populistas tiveram um papel progressivo na crítica ao capitalismo, porém faziam esta crítica desde o ângulo de defesa da sociedade patriarcal (feudal) em nome da vida natural camponesa, da “comuna rural russa”. Os populistas atacavam os marxistas dizendo que estavam contra o campesinato e a favor do capitalismo e não entendiam as contradições do desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Opinavam que o capitalismo não ia se desenvolver na Rússia porque havia uma agricultura e um indústria camponesa baseada na propriedade coletiva da terra, por isso, os camponeses não trocariam sua vida regrada no campo pela vida escandalosa e libertina das cidades:

“É importante sublinhar o significado da nossa conclusão sobre a relativa superpopulação (ou o contingente do exército de reserva dos desempregados) criada pelo capitalismo. Os dados relativos ao número total de trabalhadores assalariados em todos os ramos da economia nacional revelam com especial evidência o erro básico da economia populista em particular. Como já tivemos oportunidade de salientar noutro local (Estudos, páginas 38-42*), este erro consiste no fato de os economistas populistas (Srs. V. V., N.-on e outros), que muito falaram sobre a “libertação” dos operários para o capitalismo, nem sequer pensaram em investigar as formas concretas da superpopulação capitalista na Rússia; depois, que não compreenderam de todo a necessidade da enorme massa de operários de reserva para a própria existência e desenvolvimento do nosso capitalismo. Através de palavras dolorosas e cálculos curiosos sobre o número de operários “fábris” eles transformaram uma das condições fundamentais do desenvolvimento do capitalismo em prova de que o capitalismo é impossível, errado, carece de terreno favorável, etc. (…) Seria um erro profundo ignorar esta diversidade; n entanto, aqueles que raciocinam, como o Sr. V. V., que o capitalismo “se trancou num ponto de um milhão ou um milhão e meio milhão de operários e não sai dele” caem neste erro. (…) Portanto, aquele “ponto” que parece tão insignificante para alguns populistas, na realidade encarna a quintessência das relações sociais contemporâneas, e a população deste “ponto”, isto é, o proletariado, é, no sentido literal da palavra, apenas a primeira fila, a vanguarda de toda a massa de trabalhadores e explorados. Portanto, somente examinando todo o regime econômico contemporâneo do ponto de vista das relações formadas naquele “ponto” poderemos compreender as relações fundamentais entre os diferentes grupos de pessoas participantes da produção e, consequentemente, perceber a orientação fundamental do desenvolvimento do regime dado. Pelo contrário, quem se afasta deste “ponto” e examina os fenômenos econômicos do ponto de vista das relações de pequena produção patriarcal, o curso da história transforma-o num sonhador ingênuo ou num ideólogo da pequena burguesia e os agrários.

Os populistas acreditavam que o socialismo russo seria um produto automático da “comuna russa”, cuja vanguarda seria o camponês, o mujik russo que, pela existência da posse comunitária da terra, saltaria diretamente do feudalismo para o socialismo.

A história deu um rotundo não a essa concepção socialista utópica: o capitalismo se desenvolveu na Rússia, com todas as contradições, indicadas por Lênin neste livro. O camponês russo não foi a vanguarda da luta pelo socialismo e mesmo depois da tomada do poder pelo proletariado foi instrumento do renascimento do capitalismo via a pequena propriedade camponesa, que não foi expropriada nos primeiros anos da revolução, e foi a base da contrarrevolução armada burguesa e imperialista, onde 17 exércitos tentaram invadir a Rússia e derrubar o poder soviético.

A discussão de Marx com os populistas

Algum camarada pode pensar: será que tem alguma serventia ficar remexendo nessas polêmicas do passado?

Sim, vale muito a pena, principalmente porque um setor da intelectualidade marxista está recuperando as posições populistas para os dias de hoje. E o pior é que dizem que Marx tinha a mesma visão dos populistas e não tinha acordo com os marxistas russos.

Esse setor da intelectualidade está liderado por Kevin Anderson, acadêmico inglês, e por Marcello Musto, professor e sociólogo italiano. Eles dizem que Marx, já no fim da sua vida, estudou muito a Comuna camponesa russa e sua vida baseada na comunidade rural. Eles vão concluir que Marx acreditava que na Rússia se podia saltar direto do feudalismo para o socialismo, sem passar pelo capitalismo, baseado na Comuna rural. Inclusive, estes autores retomam para o século XXI a idealização das comunidades camponesas indígenas e na pequena propriedade rural, assim como o campesinato em geral, indígenas em geral, como força motriz revolucionária, em substituição ao proletariado.

A evolução do pensamento de Marx e Engels diante da “Comuna russa”

Alguns marxistas creem, equivocadamente, que esta evolução se deu apenas no Marx “maduro”, na década de 1880.

Em O Capital, já vemos a análise da acumulação originária na América que, a partir da invasão europeia, deu um “salto” de 5 mil anos, do comunismo originário ao capitalismo, sem passar por uma escadinha histórica.

Marx e Engels viram a possibilidade de um salto histórico desse calibre na Rússia:

“O Manifesto Comunista tinha por tarefa proclamar a iminente dissolução da propriedade burguesa moderna. Mas, na Rússia encontramos, face à trapaça capitalista em rápido florescimento e à propriedade fundiária burguesa que precisamente só agora começa a se desenvolver, mais de metade do solo na posse comum dos camponeses. Pergunta-se agora: poderá a comunidade, aldeia russa (…) transitar imediatamente para a [forma] superior da posse comum comunista? Ou, inversamente, terá de passar primeiro pelo mesmo processo de dissolução que constitui o desenvolvimento histórico do Ocidente? A única resposta a isto que hoje em dia é possível é esta: se a revolução russa se tornar o sinal de uma revolução proletária no Ocidente, de tal modo que ambas se completem, a atual propriedade comum russa do solo pode servir de ponto de partida para um desenvolvimento comunista.”

Esse foi um passo importante da teoria marxista, em oposição ao materialismo mecanicista, que via a sociedade se desenvolvendo em uma noção de progresso histórico, partindo do comunismo “primitivo” até o socialismo, passando necessariamente pelo escravismo, feudalismo e capitalismo.

Porém, Marx e Engels desenharam essa possibilidade de “saltos” conservando a visão materialista e dialética, onde os homens fazem a história sob determinadas condições que independem da sua vontade.

Assim, este salto poderia se realizar não pelas virtudes da propriedade comunal da terra, mas, devido à existência prévia do capitalismo na Europa Ocidental, a Rússia não teria que passar pelo calvário do capitalismo, desde que a revolução russa se convertesse num ponto de partida para a revolução europeia.

Notem que neste caso também, Marx e Engels não contrapõem a revolução democrática russa à revolução socialista na Europa Ocidental, mas colocam uma relação de transformação de uma revolução em outra, onde a revolução russa seria uma alavanca, subordinada à revolução europeia.

O erro teórico de Kevin Anderson e Musto diante dos “saltos” e do “velho Marx”

Estes autores extraíram do contexto histórico a parte da elaboração de Marx e Engels que mudou (os “saltos”) e esqueceram o que permaneceu (a subordinação da revolução democrática russa à revolução proletária na Europa).

Para Musto, Marx passou a ter uma concepção política correta de 1881 em diante, pois a partir daí [Marx foi]: “Conduzido pela dúvida e pela hostilidade aos esquematismos do passado...”

Anderson deixa entrever sua posição: “o movimento anticapitalista está buscando vias ‘autônomas’ a uma nova sociedade.” () “a questão em 1881 era se as formas comunais poderiam dar à luz novos tipos de socialismo.” () “Um novo tipo de revolução comunista”.

Para legitimar uma posição de “novos sujeitos” revolucionários, eliminam, na análise, a base material da sociedade, transformando os indígenas/camponeses na força dirigente de um novo tipo de revolução, nem burguesa nem proletária.

Lênin incorporou a revolução russa como prólogo da revolução europeia

Lênin acompanhou este debate de perto, enquanto escrevia “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”. Como vimos, anteriormente, ele não compartia a visão fatalista e mecanicista de Plekhánov e concordava que, teoricamente, se pode saltar etapas do desenvolvimento histórico de um determinado país, inclusive a Rússia, mas este salto não era o que estava ocorrendo na Rússia, mas estava em pleno desenvolvimento do capitalismo, apoiado na divisão social do campesinato e da Comuna russa.

Porém, ao contrário dos populistas que viam uma excepcionalidade no caminho do socialismo nacional russo, Lênin agarrou o fundamental da resposta de Marx a Vera Zasúlich: “pode haver um salto na Rússia do feudalismo ao socialismo, baseado na Comuna, desde que a revolução democrática russa se combine com a revolução socialista europeia, que a revolução russa seja o prólogo da revolução europeia e internacional.”

Lênin se apegou a essa resposta de Marx (dando importância ao final da afirmação) e tornou um dos seus eixos programáticos: a revolução russa (por ser um país atrasado do ponto de vista capitalista) será o prólogo (o estopim) da revolução europeia e mundial, tendo na sua vanguarda o proletariado russo, aliado ao campesinato pobre. Assim, a revolução russa poderia ser um sinal para a revolução europeia, que por sua vez, alentaria a revolução russa.

Os populistas buscavam um socialismo russo (nacional), tendo como classe dirigente o campesinato (com seus três setores unidos – pobre, médio e burguês) sem aliança com o proletariado, portanto, lutavam por um socialismo utópico, pequeno burguês.

Em uma carta de 1899, Lênin disse que as relações dos intelectuais populistas, como Danielson, ainda que foi traduzido e publicado pelos marxistas alemães, não eram tão “amistosas”. Segundo Plekhánov, Engels pretendia “triturar” (hacerlo polvo) a Danielson. Esta opinião mostrou que Lênin estava completamente a par do debate dos populistas com Marx e Engels e a correspondência com Vera Zásulich, que era da mesma redação de Iskra que Lênin.

Trotsky se refere a esse debate dizendo, no seu livro “A juventude de Lênin”, que: “O próprio Marx via na comuna rural do sistema russo não um “princípio” socialista, e sim um sistema histórico de servidão dos camponeses e a base material do tzarismo”.

UNA CRITICA NO CRITICA – 1900

(CON MOTIVO DEL ARTICULO DEL SR. P. SKVORTSOV EL FETICHISMO MERCANTIL EN NAUCHNOE OBOZRENIE; NUM. 12 DE 1899)

Lênin escreveu este artigo em resposta a um artigo do “marxista legal” P. Skvortsov, sobre o livro El desarrollo del capitalismo en Rusia. Foi escrito em 1900, já no final do seu desterro na Sibéria.

O artigo tratou fundamentalmente do método de trabalho (marxista X eclético), pois o artigo de Skvortsov detonou com o livro do Lênin sem fazer uma crítica direta, mas utilizando um método de fugir pela tangente e usar citações de Marx – “a metade delas não relacionadas com o assunto” – como argumento de autoridade.

Lênin disse “o temível crítico retrocede da análise da realidade, concreta e com história própria, a uma simples cópia de Marx.”

“Está apenas evidente que o meu pecado mortal reside na “tradução livre” ou – deve ser – em que exponho Marx “com as minhas palavras”, como o Sr. Skvortsov expressa noutra parte do artigo. Imagine! Expor Marx “com suas próprias palavras”! O marxismo “autêntico” consiste em decorar O capital e citá-lo, seja relevante ou não… à la Nikolai-on”

Lênin não se contenta com o método de usar “lugares comuns completamente abstratos” e concluiu:

“Para concluir, algumas palavras sobre a “ortodoxia”, que não serão supérfluas tendo em conta que a intervenção do Sr. P. Skvortsov no papel de marxista “autêntico” torna especialmente necessária a determinação mais exata possível da minha posição se eu tenho permissão para me expressar assim. Sem a menor vontade de colocar o Sr. B. Avílov ao lado do Sr. Skvortsov, considero necessário, no entanto, remeter para um parágrafo do artigo que o primeiro insere neste mesmo número de Naúchnoe Obozrenie. No final do Pós-escrito, o Sr. B. Avilov diz: “O Sr. Ilyin (está) a favor da ‘ortodoxia’. Mas, ao que parece, para a ortodoxia, isto é, a simples interpretação de Marx, ainda há muito espaço …” (pág. 2308).

Penso que as palavras que sublinhei são provavelmente um lapso de língua, pois afirmei com toda a precisão que por ortodoxia não entendo de forma alguma a simples interpretação de Marx. No mesmo artigo ao qual o Sr. B. Avilov se refere, após as palavras “Não, é melhor permanecermos ‘sob o signo da Ortodoxia'”, é dito: “Não acreditemos que a Ortodoxia nos permite tomar qualquer coisa como artigo da fé, que a ortodoxia exclui a transformação crítica e o desenvolvimento posterior, o que permite que as questões históricas sejam cobertas com esquemas abstratos. Se há discípulos ortodoxos envolvidos nesses pecados verdadeiramente graves, a culpa recai inteiramente sobre esses discípulos, e de qualquer forma sobre a Ortodoxia , que se distingue por qualidades diametralmente opostas” (Naúchnoe Obozrenie, 1899, no. 8, 1579). Assim, tenho dito abertamente que a aceitação de algo como um artigo de fé, a exclusão da transformação crítica e do desenvolvimento é um pecado grave, e para transformar e desenvolver, a “simples interpretação” é claramente insuficiente. A divergência entre os marxistas que apoiam a chamada “nova corrente crítica” e os partidários da chamada “ortodoxia” consiste no fato de alguns quererem transformar e desenvolver o marxismo em diferentes sentidos: alguns querem continuar a ser marxistas consistentes , desenvolvendo as teses fundamentais do marxismo de acordo com as condições em constante mudança e as peculiaridades locais dos diferentes países, e desenvolvendo ainda mais a teoria do materialismo dialético e a doutrina da economia política de Marx; outros rejeitam alguns aspectos mais ou menos importantes da doutrina de Marx, colocando-se, por exemplo na filosofia, não do lado do materialismo dialético, mas do lado do neokantismo, e na economia política, do lado daqueles que atribuem uma “caráter tendencioso” a certas doutrinas de Marx, etc.

Os primeiros acusam os segundos de ecletismo e, na minha opinião, acusam-nos com todo o fundamento. Estes últimos qualificam os primeiros de “ortodoxos” e, ao usar esta expressão, nunca se deve esquecer que foi assumido pelos adversários na controvérsia, que os “ortodoxos” não rejeitam a crítica em geral, mas apenas a “crítica”. ” dos ecléticos (que só teriam o direito de se autodenominarem partidários da “crítica” na medida em que na história da filosofia a doutrina de Kant e seus seguidores é chamada de “crítica”, “filosofia crítica”). Nesse mesmo artigo mencionei os escritores (p. 1569, nota, e p. 1570, nota) que, a meu ver, são representantes do desenvolvimento consistente e integral do marxismo, e não eclético, e que contribuíram para esse desenvolvimento — tanto no campo da filosofia como no da economia política, como na história e na política — incomparavelmente mais, por exemplo, do que Sombart ou Stammler, cuja simples repetição das opiniões ecléticas é hoje considerada por muitos como um grande passo em frente . Não precisarei acrescentar que os representantes da tendência eclética ultimamente se agruparam em torno de E. Bernstein.”

Enquanto estava no exilio siberiano, Lênin se correspondeu com seus camaradas do exterior, preocupado com a luta teórica contra o revisionismo que estava manifestando-se no marxismo, em todas partes.

Em uma carta a Potrésov, de 1898, desde o desterro, reclamou que os populistas estavam escrevendo livros “contra o materialismo e a lógica dialética” e que Plekhánov (que era a pessoa entendida em filosofia do grupo e que publicava artigos filosóficos na revista teórica da PSD alemão) devia responder nas publicações russas, “manifestando -se resolutamente  contra o neokantismo” que expressava o revisionismo de Bernstein, os “marxistas legais” e os populistas russos. Lênin queria estas opiniões filosóficas para publicar nas revistas russas ou mesmo em livro. Lênin dizia “Devo confessar que não sou competente para tratar os problemas que coloca o autor [populista].”

Numa carta ao mesmo destinatário, de 1899, Lênin emite uma opinião sobre o partido alemão, se referindo ao seu setor revisionista:

“No sentido histórico-filosófico a tese que coloca…é indiscuível, a saber, que entre nossos atuais camaradas [alemães] há muitos liberais disfarçados.”

Nesta mesma carta, mudando de assunto, Lênin recorda a Potrésov que havia opinado em um debate com Plekhánov que a concepção materialista da história era um “método” e que Plekhanov tinha retrucado maldosamente. Lênin reafirmou a opinião e diz que Kautsky opinava o mesmo que ele.

Sobre as polêmicas com os “economistas”, Lênin reclama que o debate deveria ser feito publicamente, por escrito, como fará em toda sua vida política:

“Considero que é extremamente prejudicial que esta polêmica com os ultraeconomistas não tenha sido ventilada de forma totaley completa na imprensa: teria sido o único meio sério de elucidar as coisas e estabelecer algumas teses teóricas exatas de principio. ¡ao contrário, agora reina um caos completo!”

Na carta de 1899 a Potrésov, Lênin insistiu que se devia responder ao neokantismo (Bernstein e os economistas russos, “marxistas legais” e populistas):

“Digo “não pude me conter más”, porque tenho nítida consciência de minha falta de cultura filosófica e não me proponho a escrever sobre esses temas até ter estudado mais. Precisamente a isso me dedico agora: comecei com Holbach e Helvecio e me proponho passar a Kant. Consegui as principais obras dos principais filósofos clássicos, mas não tenho os livros neokantianos (pedi somente ol de Lange). Digam-me, por favor, si o Senhor ou seus camaradas os têm e se podem compartilhá-los comigo.”

Como se vê, Lênin seguiu estudando filosofia. Estamos em 1899, 15 anos antes da guerra, onde supostamente Lênin teria se dado conta da sua ignorância em matéria de filosofia e foi ler Hegel.

Em seguida, na mesma carta Lênin arremeteu contra o surgimento do” economismo”.

“Em geral, sou adversário cada vez miss decidido da nova “orientação crítica” no marxismo, assim como do neokantismo (que engendrou, aliás, a ideia de que as leis sociológicas estão separadas das econômicas). Plekhánov tem muita razão, em Ensaios sobre a história do materialismo, quando declara que o neokantismo é uma teoria reacionária da burguesia reacionária, e quando se rebela contra Bernstein.”

Escreveu em 20 de junho de 1899. Mostrou-se um dirigente super preocupado com a luta teórica, a delimitação teórica-programática com as correntes que pretendiam revisar o marxismo.

O neokantismo estava expressando um ecletismo entre materialismo e idealismo, um abandono do peso da base econômica, material, no condicionamento da ação humana, jogando todo o peso na “ação do homem”, desvinculado da base material.

Krupskaya confirmou essa dedicação ao estudo da filosofia em 1899: “Vivemos como sempre, Volodia lê com prazer todo tipo de filosofiaa (é agora sua ocupação oficial): Holbach, Helvetius, etc. Zombo dele dizendo-lhe que logo será terrível falar com ele, porque estará impregnado de filosofia.”

Outra carta de Lênin, de 1899, em pleno desterro siberiano, mostrou outra faceta, que carregará em toda sua vida: o cuidado e a atenção com a saúde dos militantes:

A S. M. ARKANOV

31.X.99

Prezado Sr. Doutor:

Se a suas ocupações permitir, você não faria a gentileza de vir esta tarde ver meu companheiro doente, Oscar Alexandrovich Engberg (que mora com Ivan Sosipatov Ermoláev)? Ele está de cama há três dias com fortes dores de estômago, vômitos e diarreia, então nos perguntamos se pode ser uma intoxicação.

Por favor, aceite meu sincero respeito, Vladimir Ulyanov.”


[1] Comunidade composta por pequenos proprietários que receberam lotes de terra com a reforma agrária de 1861, mas que tinham que pagar, em trabalho, o valor destas terras aos latifundiários e nobres.

[2] Lênin faz um comentário sobre as posições dos intelectuais populistas, que estavam em contato com Marx e Engels: “Seus comentários sobre meu livro me deram muita alegria. Em todo caso, acho que você está exagerando quando fala em traduzi-lo: duvido que os alemães queiram ler algo tão cheio de fatos de importância puramente local e secundária. É verdade que Danielson foi traduzido (mas naquela época ele já tinha grande fama e provavelmente contava com a recomendação de Engels, embora este pretendesse destruí-lo, segundo Plekhanov)..” Carta a A.N. Potrésov, de 27 de junho de 1899. Tomo 46, página 30.

[3] C. Marx. El Capital. C. Marx y F. Engels. Obras, t. 25, parte II, pág. 372.-353.

[4] C. Marx. El Capital. C. Marx y F. Engels. Obras, t. 25, parte II, pág. 378.-353.

[5] C. Marx. El Capital. C. Marx y F. Engels. Obras, t. 25, parte II, págs. 166-167.-354.

[6] Das Kapital, I, cap. 13.

[7] “Pela própria natureza do capitalismo, o processo desta transformação não pode prosseguir mais que entre uma série de desigualdades desproporcionais: os períodos de florescimento são substituídos por períodos de crise, o desenvolvimento de um ramo da indústria leva ao declínio de outro, o progresso da agricultura abrange em uma zona a um de seus ramos, em outra área, outro ramo, a ascensão do comércio e da indústria supera a ascensão da agricultura, etc.” Esta passagem mostra que Lênin não tinha uma visão materialista vulgar e manejava a lei do desenvolvimento desigual e combinado, base da dialetica materialista do marxismo.

[8] Plejánov, Izbrannie Filosofskie Proizvedeniia, volume 4, Moscú, 195, p.113-114. Citado por Tony Cliff en “Lenin y la construcción del partido 1893-1914”.

[9] Ibid, volume 4, p. 86.

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