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quarta-feira, julho 24, 2024

Por que Putin matou Navalniy?

Por mais que impacte, a morte de Navalniy não pode ser considerada propriamente uma surpresa. O mais conhecido opositor de Vladimir Putin já havia sido vítima de tentativa de assassinato por envenenamento pelo regime de Putin antes, além de ter sofrido inúmeros outros atentados contra sua integridade física. Sua morte era questão de tempo.

Por: Diego Russo

Mais sobre Navalniy aqui e aqui.

Navalniy foi enviado, por uma série de acusações falsas ou duvidosas, ao mais rigoroso regime de punição, num centro penitenciário além do Círculo Polar. Lá, foi enviado para a solitária 27 vezes, num claro sinal de que o objetivo de Putin era livrar-se dele definitivamente.

Não sabemos ainda os detalhes relativos à sua morte, e talvez nunca saibamos, pelo menos não enquanto durar o regime de Putin. Mas isso não nos impede de afirmar que Navalniy não morreu, e sim que foi assassinado. Navalniy era um preso político, talvez o mais famoso do mundo. Estava sob custódia do Estado Russo. Este Estado é, portanto, responsável pela sua morte. E como no Estado Russo nada ocorre sem o aval de Putin, não resta dúvida de que Putin é o assassino de Navalniy.

Todos os opositores de Putin estão mortos ou tiveram que fugir para o exterior. Não há mais nenhum opositor de Putin em liberdade na Rússia.

O regime russo só pode ser definido como uma ditadura brutal, a serviço dos riquíssimos oligarcas russos, das Forças Armadas e da FSB, a polícia política, herdeira da tenebrosa KGB. Isso deveria ser óbvio para qualquer um minimamente bem informado e bem intencionado. Mas não é. Imediatamente após sua morte, já começam a ecoar vozes dizendo que Navalniy era um agente americano, um liberal, que flertava com ideias chauvinistas, que era pró-ocidental, traidor da pátria russa, etc. Em tudo isso há, pode-se dizer, alguns elementos de verdade. Mas elementos de verdade não são a mesma coisa que a verdade.

Na definição de Marx, um grande homem é aquele que se eleva sobre sua própria classe, ou seja, que vai mais longe do que ela. E não, apesar de tudo o que tem sido publicado na imprensa ocidental sobre Navalniy, ele não se encaixa nessa definição. Navalniy era um político burguês. Limitava-se a uma oposição a Putin por dentro do regime, ao redor de dois temas, democracia e corrupção. Pelo menos até o início da guerra contra a Ucrânia, onde corretamente se colocou contra a agressão. Mas nunca questionou o Estado Russo saído da restauração do capitalismo na ex-URSS, nunca se colocou contra seu caráter explorador, racista, xenófobo e colonialista. Também, pelo outro lado, nunca se colocou contra a colonização da Rússia pelos capitais estrangeiros, contra o seu retrocesso econômico e perda de independência e autonomia. Nesse sentido, era um legítimo representante da nova burguesia russa pós-restauração capitalista, defensor das privatizações, mas com uma especificidade – representava o setor desta burguesia que havia ficado de fora da divisão do espólio dessa complexa realidade, a colonização da Rússia pelos capitais estrangeiros por um lado, e seu papel na colonização de regiões, povos e países sob controle russo por outro.

E neste sentido, viu-se obrigado a combater o Governo, na medida em que podia fazê-lo por dentro do próprio regime. De início, como uma oposição legal, dizem que em certo sentido até mesmo incentivada pelo Kremlin. Mas os espaços dentro do regime foram se reduzindo, e junto com isso, reduzindo-se também os limites da ação política de Navalniy.

Depois de seu bom resultado nas eleições para a prefeitura de Moscou em 2013, não conseguiu mais ser candidato, por uma série de acusações judiciais. Tampouco teve a possibilidade de lançar algum outro candidato de seu movimento, o Fundo de Combate à Corrupção, ilegalizado pelo regime. A partir daí, passou a defender uma tática política que chamou de “votação inteligente” – votar em qualquer candidato (de preferência o melhor posicionado nas pesquisas) que não fosse do partido de Putin, para enfraquecê-lo. Mas os outros três partidos legais, incluído o Partido Comunista Russo (PCFR), também são parte do regime e pilares de apoio de Putin, em especial na guerra atual contra a Ucrânia. Não por acaso, há uma piada muito disseminada na Rússia, de que estes partidos são a “oposição a favor”.

Essa tática levou a situações inusitadas, como Navalniy chamar o voto em candidatos, por exemplo do PCFR, que não defendiam sequer a sua liberdade! Não à toa, sua tática foi apelidada de “votação não-inteligente”. O resultado dessa tática totalmente equivocada foi cruel, jogou toda a juventude anti-Putin para uma política pró-regime, ao chamar a votar nos candidatos aprovados pelo regime, referendando-o. Assim, os votos de Navalniy ajudaram a eleger muitos parlamentares do PCFR e de outros partidos como o Liberal Democrata e o Rússia Justa (agora Nova Gente), que depois aprovaram a prisão de Navalniy e a guerra de Putin contra a Ucrânia. Um beco sem saída.

E que simplesmente reflete o beco sem saída de um setor da burguesia russa alijada do poder, mas ao mesmo tempo dependente economicamente tanto da recolonização da Rússia pelos capitais externos, quanto das vantagens obtidas pelo controle de povos, países e regiões oprimidas pela Rússia. Ou seja, em última instância, dependente de Putin. A morte de Navalniy é a última pá de cal na esperança de que a burguesia liberal poderia conduzir, legalmente e por dentro das instituições do regime, a uma mudança real no país, a uma democratização, à interrupção da guerra. As ilusões democratistas se esvaem.

Por outro lado, no momento de sua morte, devemos reconhecer que Navalniy, com todas as suas limitações de classe, é quem foi mais longe e de forma mais radical nessa política de combater Putin por dentro do sistema, e por isso mesmo, pagou com a vida. Navalniy não era o típico político burguês, covarde, mesquinho e corrupto. Após o envenenamento que sofreu, ao ser tratado na Alemanha, poderia ter ficado por lá. Estaria ainda vivo. Era o que a Alemanha queria, aliás, assim como os EUA – tê-lo guardado como uma carta na manga em suas negociações com Putin, para uma hipotética futura transição de governo.

Mas não, Navalniy decidiu retornar e enfrentar os riscos. Foi imediatamente preso, ainda no aeroporto. Sua condicional foi convertida em pena real, de três anos de prisão. Em 2022, a justiça somou à sua pena mais 9 anos de prisão por corrupção e “desrespeito ao sistema judiciário”. Em 2023, recebeu mais uma pena de 19 anos por “extremismo”. A Anistia Internacional e o Memorial consideram Navalniy um preso político, e que as acusações contra ele foram politicamente motivadas. Navalniy foi enviado para prisões de segurança máxima, uma mais brutal que a outra. Estava já com uma pena acumulada de mais de 30 anos. Enfrentava permanentemente a administração das prisões por seu desrespeito aos mínimos direitos dos presos, tendo por isso sofrido inúmeros castigos disciplinares. Foi enviado 27 vezes à solitária, um recorde que, sem dúvida, debilitou e muito sua saúde, como denunciavam seus médicos. Nos tribunais, sempre enfrentou e desmascarou os absurdos jurídicos de seu caso e todo o sistema legal russo com determinação. Neste sentido, nunca se curvou. E morreu por isso.

Ao receber uma nova pena de mais 19 anos, afirmou que a pena não era contra ele, mas contra todos aqueles que pretendiam levantar-se contra Putin, e tinha razão nisso. Afinal, por que Putin necessitava dar um fim a um opositor que mal juntava 3% nas intenções de voto no país? Que estava queimado na população por seu programa liberal, associado ao de Yeltsin? Por que não poderia deixá-lo em liberdade, como um opositor liberal, dessa forma legitimando o regime com um verniz de democracia? Afinal, ninguém acreditava que Navalniy poderia vencer Putin no voto. Inclusive, diz-se que no início de sua carreira política, o próprio Navalniy teria sido uma manobra do Kremlin, um candidato palatável de oposição, que não ofereceria riscos. Não sabemos até onde esta lenda possui alguma base de verdade, mas isso ocorreu com muitos outros candidatos de “oposição”, como Ksenia Sobchak em 2018 ou Mikhail Prokhorov em 2012.

Para as eleições deste ano, cogitou-se algo parecido, na figura de Boris Nadezhdin, mas que teve sua candidatura barrada pela Comissão Eleitoral, controlada por Putin. O impedimento da candidatura de Boris Nadezhnin ajuda a jogar luz sobre este aparente paradoxo. A verdade é que o envenenamento, acusações judiciais, prisão, solitárias e agora morte de Navalniy eram uma NECESSIDADE para o regime de Putin, por sua debilidade! E é isso que explica também que um candidato dócil como Nadezhnin tenha sido há poucos dias impedido de participar das eleições. Há grande insatisfação na Rússia. Há um imenso sentimento de que o país está caminhando para a direção errada. E a vida vem piorando, em especial para os setores mais explorados e oprimidos.

O que explica que, mesmo assim, Putin se mantenha no poder? Costuma-se dizer que é pela repressão, e isso não deixa de ser, em parte, verdade. Mas nem de longe explica tudo. Hoje, junto à imensa desilusão, existe uma imensa passividade na Rússia. Pela absoluta falta de alternativa. Essa falta de alternativa é a base de toda a ideologia do regime: “Quem, senão Putin?”, “Só Putin pode nos salvar”, “Ruim com Putin, pior sem ele”, é o que mais se escuta ao conversar com os russos. Lembremo-nos que o povo russo já tentou de tudo, desilusão tanto com os “comunistas”, como com os “democratas” liberais. Aparentemente, não há alternativa, e assim Putin segue no poder. Por isso é fundamental eliminar qualquer vestígio de alternativa a Putin.

Nadezhnin poderia ser o vetor que concentrasse os votos contrários à guerra, arriscando fazer não os desmoralizantes 2% de votos de Ksenia Sobchak, mas alcançando o 2º lugar, à frente dos demais candidatos dos partidos “legais”, o que seria um golpe para o regime, mostraria a dimensão daqueles contrários à guerra, e que a tal grande unanimidade ao redor de Putin não existe. Da mesma forma, Putin se viu obrigado a eliminar Prigozhin, depois de sua aventura militar. A morte de Navalniy se insere neste contexto. O regime de Putin está tão fragilizado, que não pode suportar nem a mínima oposição a si. Por isso um adolescente de 16 anos que faz um post nas redes sociais sobre a guerra é condenado a 9 anos de prisão, uma criança que desenhou na aula uma bandeira ucraniana é enviada a um orfanato e seu pai preso. Esse é o regime de Putin.

Navalniy poderia consolidar o descontentamento popular ao seu redor? Muito improvável, mas sempre seria um plano B para a própria burguesia russa em caso de necessidade. As mortes de Prigozhin e Navalniy são, em primeiro lugar, um recado a essa mesma burguesia: “não há alternativa a Putin”.

Quando dizemos que Putin é o assassino, nos referimos a que é sua toda a responsabilidade política pela morte de Navalniy. Mas não significa que tenha necessariamente partido dele uma ordem explícita para executar Navalniy, ainda mais às vésperas das eleições presidenciais no país. Existe uma segunda hipótese, de que um setor do regime, a ala mais linha-dura, ligada aos militares, tenha decidido dar fim ao “inimigo/traidor” sem consultar-se com seu chefe. Por exemplo, um setor diretamente contrário a qualquer negociação com Ucrânia, EUA e UE. Se for isso, é uma mostra de que as fissuras dentro do regime são ainda mais sérias, como já apontava o caso Prigozhin.

Da cadeia, Navalniy deixou um recado para o caso de sua morte. “Não desistam! Se eu for morto, significa que é porque somos incrivelmente fortes. É necessário usar esta força: não desistam, lembrem-se que somos uma imensa força, oprimidos pelo mal somente porque não percebemos o quanto somos realmente fortes. Tudo o que o mal necessita para triunfar é a inação das pessoas boas. Por isso, jamais rendam-se à inação”. No que diz respeito ao movimento em si de Navalniy, é claramente um exagero. Mas que contém uma parcela de verdade. Putin se baseia na inação, por falta de alternativas. Mas é um regime apodrecido, que necessita endurecer cada vez mais a repressão, para evitar qualquer faísca que possa incendiar o imenso descontentamento popular que existe por baixo, nas camadas mais profundas da sociedade russa e dos países vizinhos.

A prova do medo do regime é a ordem explícita aos meios de comunicações da Rússia e deputados em evitarem ao máximo o tema da morte de Navalniy, ausente das manchetes dos principais jornais e portais do país. Podem somente comunicar laconicamente a morte de um extremista preso por corrupção que sofreu um caso de embolia, um incidente infeliz, daquelas coisas que acontecem. Que qualquer outra conotação à sua morte seria uma tentativa dos EUA e UE de aproveitar-se da situação, com objetivos hostis à Rússia, e que o ocidente seria o único a ganhar com a sua morte, insinuando que seria inclusive o responsável. Outra prova do medo do regime é a proibição e repressão aos que estão tentando, no dia de hoje, depositar flores nos monumentos aos presos políticos. Isso onde estes monumentos ainda existem, pois nos últimos anos foram sendo removidos sistematicamente. No momento em que escrevíamos este artigo, já havia dezenas de presos e impedia-se a imprensa de fazer a cobertura dessas manifestações de luto.

A morte de Navalniy é a morte de uma estratégia falida, que dominou a oposição russa ao longo das últimas duas décadas – a aposta numa transição pacífica, legal e por dentro do sistema, em direção a uma “democracia de tipo ocidental”. Como afirmou uma fonte anônima de dentro da Administração Presidencial da Rússia: “Uma determinada possibilidade de futuro para nós, que alguns desejavam e outros temiam, desapareceu para sempre”. Os milhares de ativistas, jovens simpatizantes de Navalniy, têm muito a refletir e muitas lições a extrair de sua morte.

Nenhuma transição pacífica a uma democracia-burguesa é possível na Rússia. O único caminho para se derrotar Putin é aquele apontado pelos povos da Ucrânia e Belarus, uma revolução! Levantar o povo contra o regime, os trabalhadores contra a exploração, os povos vítimas do chauvinismo russo contra a opressão, derrubando o regime de Putin de conjunto, todas as suas instituições apodrecidas, seja a presidência de Putin, a Duma de Estado, o sistema judicial, a Igreja Ortodoxa, as Forças Armadas, a polícia e, em especial, a mais importante de todas, a FSB.

É uma tarefa que, portanto, a burguesia liberal não pode cumprir, o que se demonstra cabalmente com a morte de Navalniy. Somente uma revolução, popular, operária e das nacionalidades oprimidas pode realizá-la. Este é um chamado a todos que estão na oposição a Putin: é mais que hora de inverter a estratégia: nada de “votações inteligentes”, manifestações isoladas e distantes da classe trabalhadora e de suas reivindicações, “fiscalização” das eleições ou confiança em “parceiros internacionais”.

É hora de colar as reivindicações democráticas de “abaixo a ditadura de Putin” e “libertação de todos os presos políticos”, com “abaixo a guerra”, “devolução dos territórios ocupados à Ucrânia”, com as reivindicações econômicas da classe trabalhadora num único movimento, que por isso mesmo não pode ser liberal! O caminho para pôr fim ao regime de Putin passa hoje, antes de mais nada, por derrotá-lo na guerra da Ucrânia!

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