Um olhar sobre a Revolução Cubana, 65 anos depois
É comum dizermos, com razão, que os vencedores contam a história. Isso vale para todos os grandes acontecimentos, e mais ainda para as revoluções. Foi assim em todas as revoluções do passado e também foi, e ainda está sendo, na Revolução Cubana.
Por: Jerônimo Castro
A história oficial e também a semioficial da Revolução Cubana, e por que não, muitas vezes a que nós também contamos, é quase uma marcha triunfal dos 12 guerrilheiros que escapam após o fracassado desembarque do Granma, chegam a Sierra Maestra, montam uma guerrilha e, de vitória em vitória, tomam o poder em 1959. Daí à socialização dos meios de produção é um salto.
Essa história, além de chata e monótona, não é verdadeira. Uma revolução, mesmo as mais bem planejadas, como a Russa de 1917, é uma luta intensa de frações, dentro e fora da organização revolucionária.
Todas as revoluções, burguesas e proletárias, viram isso acontecer, pois seria impossível construir um mundo novo sem que todas as paixões, todas as possibilidades, medos, todos os sentimentos mais profundos brotassem na forma de ideias, propostas e iniciativas. A revolução é, também, um mosaico de vontades.
A Revolução Cubana também viveu uma série de intensos debates, sobre cultura, moral, democracia, internacionalismo, economia, etc. Cada um desses temas teve mais de um debatedor, mais de uma proposta. Nem sempre venceu o mais justo, o mais racional, venceu aquele que, estando melhor preparado, pôde levar sua proposta adiante.
Este texto é a tentativa de localizar, ainda de forma inicial, esse intenso debate, para, quem sabe, tirar algumas conclusões proveitosas para o futuro.
Uma revolução a contragolpes, mas nem tanto
Che Guevara, falando sobre a Revolução Cubana, disse certa vez que ela fora uma revolução a contragolpes, numa alusão a que a revolução não teria tido um programa prévio que a orientasse, mas foi uma resposta à reação norte-americana à vitória da revolução.
Essa afirmação, que contém algo de verdade (falaremos desses aspectos mais abaixo), é também bastante unilateral, pois ignora que a Revolução Cubana foi dirigida pelo Movimento 26 de Julho (M-26), e que este tinha um programa mais ou menos bem delineado. Ele tomava como base o discurso de Fidel em sua defesa no julgamento a que foi submetido pelo assalto a Moncada em 26 de julho de 1953, que ficou conhecido como “A história me absolverá”, o manifesto da Sierra Maestra de 1957 e o pacto de Caracas de 1958, e se propunha a, uma vez derrotada a ditadura, estabelecer um governo provisório que convocaria eleições e reestabeleceria a Constituição de 1940.
Suas principais medidas sociais seriam entregar as terras a assentados, arrendatários e ocupantes precários de pequenos lotes; nacionalizar um setor da indústria elétrica e de comunicações; prover mais recursos estatais para a educação e a saúde pública. Um programa que visava fazer mudanças apenas dentro das margens da democracia burguesa.
Nos marcos desse programa, o M-26 construiu uma ampla aliança para derrubar a ditadura.
Ocorreu que, para ser possível levar esse programa adiante, foi necessário fazer uma guerrilha. Podemos nos questionar se outros métodos também não permitiriam tal fim, mas o fato concreto é que foi assim que se deu. E, ao se dar dessa maneira, ao final do processo, ao tomarem o poder com um programa democrático radical, o M-26 havia de fato destruído a espinha dorsal do Estado burguês, o exército, e levado de roldão a maioria das instituições que sustentavam a ditadura de Fulgêncio Batista
Foi essa realidade, a da destruição de um Estado burguês, que abriu uma situação inesperada: deixou o programa do M-26 caduco logo depois de sua vitória, o que colocou novas tarefas para as quais não se tinha programa, aí sim atuariam a contragolpes.
As tendências internas na Revolução Cubana
Se, como dissemos acima, a Revolução Cubana não foi uma linha reta entre o heroico desembarque do Granma e a expropriação da burguesia cubana, também não houve, pelo menos não da forma como é retratada, uma poderosa organização político-militar que centralizou a luta contra a ditadura desde seus inícios.
Na verdade, o M-26 era um dos movimentos que levavam adiante a luta armada e a guerrilha, mas era pouco original. Nenhuma das ações feitas por eles já não tinha sido feita por outras organizações. A primeira tentativa de tomar um quartel foi de outra organização, o MNR, Dirigida por Rafael Garcia Barcena, em abril de 1953, e também fracassou; a primeira tentativa de um desembarque, como o do Granma, vindo do México, foi de Sanches Arango, e naufragou no Golfo do México.
O M-26 surge de uma derrota militar, o assalto ao Moncada, um quartel na cidade de Santiago. Derrota militar, mas vitória política, fruto da repressão exagerada do governo Batista, do senso de oportunidade política de Fidel Castro, que faz de sua defesa um manifesto político (A história me absolverá) e de seu intenso trabalho político, via cartas, sobre um setor do partido ortodoxo, de cujas fileiras ele próprio, e a maioria dos moncadistas, eram originários.
Sua defesa e primeiro documento político do M-26 apresenta uma singela proposta programática de cinco pontos: restabelecimento da Constituição de 1940 (desfigurada por Batista); concessão de títulos de propriedade a colonos, sub-colonos, arrendatários, parceiros e precaristas que ocupem cinco ou menos caballerias (mais ou menos 75 hectares); direito de os operários participarem em 30% dos lucros das empresas; direito dos colonos açucareiros de participação em 50% das entradas; confisco dos bens roubados por governos republicanos corruptos.
Segundo o próprio Fidel, a base social que se buscava era a dos desempregados, camponeses, pobres, operários e trabalhadores braçais de baixos salários, pequenos agricultores não proprietários, professores, pequenos comerciantes, e empresários, jovens universitários e profissionais.
Não por acaso, já antes de a revolução triunfar, surgirá uma polêmica no interior do M-26, entre a “Sierra”, onde está a guerrilha, e o “Llano” onde está a rede urbana de apoio. Essa polêmica girará ao redor da ênfase nas medidas sociais que seriam adotadas pela revolução, mas também em onde deveria se localizar a direção política do movimento. Vencerá a “Sierra”, mas essa será apenas uma das primeiras distensões no interior do M-26 original, cujo fim se dará em um tardio 1968.
Junto com o M-26, o Diretório Revolucionário (outra organização político-militar) se propôs a organizar a luta armada em Cuba, chegaram a assinar juntos, no México, um manifesto sobre a revolução vindoura.
No curso da guerra revolucionária, o Diretório fez a, provavelmente, mais espetacular ação de guerrilha urbana, ao tomar dois pisos do palácio presidencial e encurralar Batista no terceiro. Faltou o impulso final, Batista escapou, e a repressão massacrou os assaltantes, que, no entanto, formaram sua própria guerrilha rural na serra de Escambray. Indica a importância que teve o Diretório o fato de que, quando se tomou Havana, o M-26 tomou o quartel de Columbia (a cargo de Camilo Cienfuegos) e La Cabanha (a cargo de Che Guevara) e o palácio do governo e a cidade universitária (então um dos principais centros urbanos de resistência à ditadura) foram tomados pelo Diretório.
Por fim, depois da tomada do poder, o Diretório Revolucionário se fundiria com o M-26, num partido posterior à tomada do poder, que se chamaria ORI.
Com o PSP (PSP era o nome do partido comunista cubano antes da revolução de 59) a situação era diferente. Esse partido nunca aderiu à luta armada e condenou publicamente o ataque de Fidel a Moncada e os outros ataques e ações guerrilheiras de outras organizações durante a ditadura de Batista.
O PSP considerou todas essas ações golpistas. No final da guerrilha, quando a balança já pendia fortemente a favor desta e havia um apoio massivo ao M-26, o PSP envia alguns quadros para colaborar com Fidel e montam sua própria guerrilha em Escambray, onde terão rusgas com a guerrilha do Diretório e também com a coluna de Camilo Cienfuegos, que atuou na região no período final da guerra revolucionária.
Quando finalmente cai Batista, o PSP adere rapidamente ao novo poder e passa a disputar com força o espaço no aparato do Estado. Nessa disputa eles contaram com alguns trunfos: a relação com Moscou ajudou a localizar melhor alguns de seus quadros; o nível político e a disciplina de seus militantes, em um momento em que o exército de guerrilheiros, espinha dorsal do novo poder, era formado essencialmente por camponeses semianalfabetos, foi outro elemento; também a simpatia de Che e Raul Castro, que preferiam as relações com os quadros do PSP à direita do M-26.
O PSP buscou avidamente controlar a ORI e fracassou em parte, justamente porque atuou de forma demasiadamente apressada.
Guevarismo, ala esquerda do castrismo pré-estalinista
Durante os anos prévios à estalinização do Estado cubano, vários debates atravessaram a direção cubana.
Os mais importantes foram sobre a profundidade da reforma agrária, sobre como elevar a produtividade do trabalho, sobre qual a relação entre a centralização econômica e a planificação e a autonomia das empresas estatizadas, sobre a industrialização de Cuba (esses três ficaram conhecidas como “o debate econômico em Cuba”, em que, entre outros, intervirão Mandel e Bettelheim), sobre como se deveria relacionar a Revolução Cubana com o imperialismo e com os movimentos revolucionários e as revoluções em curso e, por fim, sobre a relação com os países do Leste Europeu e a China.
A questão da reforma agrária e sua profundidade era uma discussão já no interior do M-26. Sua ala direita defendia uma reforma agrária burguesa, com venda em condições especiais das terras improdutivas, que deveriam ser compradas dos grandes latifundiários. Essa política fracassa por dois motivos centrais: os grandes latifundiários se demonstraram inimigos da revolução desde o princípio dela, eram necessárias medidas que os enfraquecesse; além disso, a base social da Revolução Cubana tinha como um de seus principais sujeitos os camponeses sem terra, ou com terras insuficientes para sua subsistência, e, no processo de vitória da própria revolução, começaram, mesmo antes de se legislar a respeito, a ocupar terras. Os revolucionários não podiam mais do que legalizar uma situação que de fato já estava dada.
Che, então no INRE (Instituto Nacional de Reforma Agrária), aproveita a situação para também expropriar empresas norte-americanas proprietárias de grandes extensões de terra na ilha. Essa medida desencadeia uma reação norte-americana, num processo que, como disse Che, a contragolpes, levará à expropriação de todas as empresas norte-americanas e, logo, de toda a burguesia cubana.
Esse processo encontrará resistência dentro do próprio M-26, que se verá cindido entre uma minoria, que está contra o passo socialista da Revolução Cubana, e uma maioria, que verá nesse passo a conclusão lógica do enfrentamento com o imperialismo americano e a burguesia nativa.
Nesse processo, Guevara será um dos artífices e entusiasta da aproximação com a URSS e com o chamado mundo socialista.
Já os debates que ficaram conhecidos como “o debate econômico em Cuba” formam uma totalidade, em que Guevara, como um dos principais ministros da área econômica de Cuba, discutirá com diversos dirigentes, quase todos oriundos do velho PSP, sobre a inserção de Cuba no mundo socialista.
Guevara defenderá que Cuba deve se industrializar a passos rápidos e que, para tal, deveria contar com a ajuda dos países do Leste Europeu, coisa que não se daria, ou se daria com muita má vontade e algumas sabotagens mais ou menos conscientes por parte dos técnicos enviados à ilha.
Nesse marco, da necessidade de uma industrialização a passos rápidos, Che defenderá uma planificação centralizadora da economia, enfrentando-se com o modelo iugoslavo de “autogestão”, ou o soviético de liberdade relativa das empresas e estímulos materiais e prêmios especiais para aumentar a produtividade do trabalho, que na verdade significava autonomia das empresas estatais na busca de lucros e desobrigação delas de centralizar os lucros existentes nas mãos do Estado para que este os reinvestisse em base à planificação.
Esse debate terá um aspecto teórico, o de saber até que ponto a Lei do Valor segue vigente em uma economia em processo de planificação econômica, na economia de transição, e também um aspecto profundamente prático, a remuneração dos operários e dos trabalhadores em geral e o problema da produtividade do trabalho.
Os estalinistas, em geral, defenderam a ideia da liberdade orçamentária das empresas, que permitiam a elas, depois de devolvido um determinado valor ao Estado, previamente estabelecido, poder investir o restante como bem entendera e distribuir parte dos lucros para seus funcionários (deixando, claro, a parte do leão para a burocracia). Era a aplicação da lógica stakhanovista, em que aqueles trabalhadores que se destacavam na produção recebiam prêmios que variavam: um relógio, uma casa nova, férias, viagens ao exterior etc. Dentro dessa concepção, também se enquadrava Cuba como fornecedora de açúcar aos países do campo socialista e com uma industrialização bastante reduzida (ou diretamente nenhuma).
Contra essa posição, Guevara propunha, como já dissemos mais acima, que Cuba se industrializasse, que houvesse um plano único centralizado, o que ele chamou de plano orçamentário, em que o centro do estímulo ao aumento da produtividade fosse a emulação socialista, o chamado permanente à adesão para a construção de um novo país e de um novo mundo.
Obviamente, ele não negava que era necessário elevar o nível geral de consumo das massas nem mesmo que eram necessários prêmios e estímulos em alguns casos, mas, nesses casos, inclusive, propunha que os prêmios estivessem ligados ao estudo, à formação profissional e à promoção dentro das empresas onde trabalhavam.
A discussão, que sempre foi um tanto áspera, pois as múltiplas tendências no interior da Revolução Cubana ainda estavam em um processo de consolidação, se azedará ainda mais quando entra como parte do debate da relação de Cuba com as revoluções que se desenvolvem no restante do continente e do mundo, em especial no terceiro mundo.
Contra a política soviética de coexistência pacífica, Guevara defenderá uma política de apoiar ativamente as revoluções vindouras, com homens, armas e, inclusive, com a sua participação pessoal. Na medida em que sua intervenção aumenta, seus choques com Moscou se aprofundam. Finalmente, em seus textos e aparições finais, Guevara criticará abertamente a orientação dos russos, dirá que mantêm um comércio exterior injusto com os países do terceiro mundo que lutam por sua libertação, que não contribuem de verdade na luta contra o imperialismo e que abandonaram à própria sorte o Vietnã. Contra a coexistência pacífica, lançará o grito de guerra “criar dois, três, mil Vietnãs” e partirá pessoalmente para o campo de batalha, primeiro no Congo, depois na Bolívia.
Nesse conjunto de lutas políticas e teóricas, Fidel jogará sempre o papel de árbitro. Com zigue-zagues mais ou menos importantes, a balança terminará por pender contra Che, em todos os aspectos. Pese isso, a rupturas entre eles será parcial.
O programa incompleto do guevarismo, a falta da democracia operária
O guevarismo apresentou um programa incompleto, mais ou menos improvisado, nunca sintetizado em uma proposta única e com alguns rasgos de idealismo para se enfrentar com a estalinização da Revolução Cubana.
Em rasgos gerais, podemos dizer que seu programa era: a) uma reforma agrária radical em Cuba; b) a industrialização da ilha; c) a defesa de uma série de medidas que ficaram conhecidas como incentivo moral para a produção; d) a centralização da economia em um plano econômico, que ficou conhecida como plano orçamentário; e) o apoio à revolução internacional, socialista e anti-imperialista; f) a crítica mordaz ao imobilismo dos partidos estalinistas e a construção de guerrilhas como forma de organização dos revolucionários; g) a crítica à política exterior do estalinismo, seja sua relação comercial com os países recém libertos, seja sua política em relação às revoluções em andamento, com especial atenção à revolução vietnamita. O “programa” de Che superava a compreensão estalinista de que a revolução na América Latina seria primeiro democrático-burguesa e depois socialista.
No entanto, o guevarismo era uma ala do movimento castrista mais geral. Sua ala esquerda, sua ala mais progressiva, a que resiste à estalinização total da corrente castrista, mas, ainda assim, parte dela.
Como tal, o programa de Guevara jamais chegou à única medida que poderia de fato impedir a burocratização da Revolução Cubana, a construção de uma verdadeira democracia operária.
O contraditório dessa situação é que essa era, ao mesmo tempo, a única possibilidade real de que o programa do Che fosse completado, ganhasse coerência interna, concatenando as tarefas democráticas e econômicas de Cuba com as revoluções anticoloniais em curso no mundo e o enfrentamento necessário ao estalinismo.
Esse passo, no entanto, exigiria algo que de fato nunca aconteceu de forma categórica, uma ruptura do Che com Fidel.
No plano internacional, o programa de Guevara alimentou uma série de rupturas nos velhos partidos comunistas, acomodados a serem sucursais da política de Moscou. Sua crítica ao imobilismo desses partidos, seu chamado à revolução, sua interpretação de que a América Latina estava pronta para a revolução e que essa seria socialista, armou politicamente uma geração.
No entanto, sua estratégia guerrilheira e sua ausência de vínculos e referências na classe operária, parte do mesmo problema que apresentava em relação à democracia operária em Cuba, esterilizou boa parte dessa iniciativa. A guerrilha, como estratégia permanente, mostrou-se, na maioria das vezes, um beco sem saída. Os guevaristas foram dizimados em uma série de guerrilhas, os sobreviventes buscaram respostas para suas derrotas, migraram para outras correntes, de liberais a trotskistas.
A assimilação de Castro ao estalinismo
É difícil dizer em que momento passou a existir um castrismo. Há um primeiro “castrismo” na ruptura de Castro com os ortodoxos, na ação de Moncada e na construção do M-26. Este Castrismo essencialmente se coloca contra a via pacífica da derrota de Batista e incorpora medidas sociais ao programa político contra a corrupção. Será com esse programa que Castro dirigirá, ainda que com solavancos, a construção de seu movimento e também a primeira parte da Revolução Cubana.
Haverá, em determinado momento da luta guerrilheira, o surgimento de um novo castrismo, quando começa a polêmica entre “Llano” e “Sierra”, ou seja, entre a ala do M-26 que estava na rede urbana e a ala que estava na guerrilha rural.
Aqui está em disputa a ênfase a ser dada no programa social da revolução, reforma agrária e melhoria nas condições de vida do povo. Também estará em discussão que reforma agrária seria feita, a ala direita do M-26 defenderá uma reforma agrária totalmente capitalista, em que os camponeses pagariam pelas terras que recebessem.
Mas também está em jogo quem é a direção da Revolução Cubana, em dois sentidos: em primeiro lugar, uma disputa do M-26 com todos os outros setores que são oposição, armada ou não. No próprio interior do movimento, há diferenças, a rede urbana tende a uma frente de todas as forças que são oposição ao regime, aceitando que o M-26 é mais um personagem nessa luta. Isso não é gratuito, essa ala do movimento dá mais ênfase à redemocratização de Cuba que às reformas sociais propostas em seu programa. No entanto, essas propostas sociais são o que dão ao grupo da “Sierra” o apoio necessário para recrutar camponeses e ganhar a simpatia da maioria da população pobre.
No bojo desse debate, o de se o M-26 é ou não a principal força da revolução e que seus acordos com as demais forças pressupõe uma certa hegemonia deles e subordinação dos demais, entra também quem é a direção do próprio M-26 e qual o grau de autonomia dos que não estão na guerrilha. No final desse debate, fica claro, no interior do M-26, que eles se consideram a força central da Revolução Cubana, e que Fidel, apoiado pelos comandantes guerrilheiros, era a direção inconteste do M-26. Este é um segundo castrismo.
Com a tomada do poder, emerge uma nova configuração das forças políticas e sociais em Cuba. Castro se firmará como árbitro das disputas internas da revolução ao mesmo tempo em que buscará forjar uma nova organização; fundindo os distintos setores que lutaram na revolução, criará, nesse momento, uma relação única com as massas, de onde tirará todo o seu poder.
Castro contará nesse processo com as melhores cartas. A fidelidade da ala esquerda do M-26, a aproximação do PSP, que não tinha condição, dentro de Cuba, de disputar o poder, a demora dos EUA em tomar medidas contra seu governo. Mesmo assim, será um processo longo e cheio de idas e vindas. Fidel só é senhor de toda a situação a partir de 1968.
Neste zigue-zague que faz, pesa sua origem de classe e o caráter de classe da própria revolução.
Che Guevara o vê com nitidez quando diz em uma carta a Rene Ramos Latour: “(…) considerei sempre a Fidel como um autêntico líder da burguesia de esquerda, ainda que sua figura esteja realçada por qualidades pessoais de extraordinário brilho que o coloca por cima de sua classe.”
Esse caráter de classe de Castro se estenderá a toda a direção da Revolução Cubana, quase sem exceção.
Sua assimilação ao estalinismo se dá de forma subordinada, mas com relativa autonomia. No campo nacional, Fidel subordinará o velho aparelho estalinista, o depurará, inclusive prendendo uma parte dos velhos quadros. No campo internacional, cumprirá um papel de ala esquerda do estalinismo, não sem antes ter várias rusgas com os PCs da América Latina, onde disputará o papel de liderança.
O castrismo reassimila ritualisticamente o guevarismo e o esteriliza
As notícias sobre a morte de Che Guevara chegaram a Cuba através das notícias internacionais. No dia 15 de outubro, Fidel reconheceu a morte de Che; no dia 18, reuniu cerca de um milhão de pessoas na “Plaza de la Revolución” para prestar a primeira de uma série de homenagens solenes ao comandante morto.
Os limites políticos e programáticos da diferenciação entre Che e Fidel, que ainda cursava seu caminho em direção à total assimilação ao aparato estalinista mundial, mas também as diferenciações inconclusas com o próprio estalinismo, do qual, como demonstramos acima, Che era um crítico, permitiram uma reassimilação, uma integração total do Che na iconografia oficial da Revolução Cubana.
Suas críticas, dispersas em uma série de escritos, alguns nós citamos acima, sua prática diferenciadora em relação aos privilégios e ao exemplo pessoal, entrou para um tipo de mitologia revolucionária mais ou menos estéril.
O guevarismo, como corrente política, virou um acessório de esquerda do castrismo, uma crítica ao imobilismo, um chamado a uma moral revolucionária mais alta, mais altruísta; seus elementos mais progressivos viraram quase ditames morais.
Por fim, seus seguidores em Cuba foram em parte colocados em posições subalternas, em parte se reincorporaram com tudo no aparato estalinizado da revolução, em parte viraram figuras folclóricas sem poder nenhum de decisão.
Alguns poucos seguiram em missões internacionais com o fim de levar a revolução a outras terras. Benigno, um dos sobreviventes da epopeia boliviana, exilou-se e escreveu uma biografia crítica a Fidel e não muito elogiosa em relação ao próprio Che.
Conclusões (?)
No início de 1970, Cuba se encontrava em uma profunda crise econômica. Pese um esforço hercúleo para chegar a uma safra de 10 milhões de toneladas de açúcar, o resultado cai abaixo disso.
Fidel resolve girar uma vez mais o timão. Abandona a ideia de uma inserção autônoma no campo socialista, aceita a “ajuda” de Moscou para a planificação e o desenvolvimento técnico. Aproxima-se de forma definitiva do modelo soviético estalinizado de sociedade e economia.
Em 10 anos, a revolução avançou de uma luta estudantil, de classe média contra o regime ditatorial de Fulgêncio Batista, a uma revolução vitoriosa, à construção de um novo Estado, à vanguarda da revolução mundial, até a estalinização e esterilização do exemplo cubano.
Nos anos posteriores, Cuba lentamente deixaria de cumprir um papel de vanguarda política da revolução socialista. Em 1978 aconselhará aos sandinistas de que a Nicarágua não deve ser outra Cuba, nos 80/90, será o promotora do acordo de Contadora, que liquidará com a revolução salvadorenha.
Fidel, artífice da revolução, será também o patrono da restauração e dirigiu Cuba até quase sua morte. Cuba volta a ser um país semicolonial e uma ditadura burguesa.
Esse final, por hora melancólico, não invalida o esforço feito, senão que nos coloca a tarefa nada fácil de estudar e entender o processo revolucionário cubano, explicá-lo e tirar dele o máximo de lições possíveis. As respostas fáceis do estalinismo em primeiro lugar, mas também dos dogmáticos em geral, em que tudo já estava dado e pode ser explicado aplicando duas ou três categorias aprendidas de cor, não nos servem. A história, felizmente, não apenas é mais rica que qualquer esquema, mas também oferece ensinamentos muito mais ricos que o de categorias pobremente aplicadas. Se este texto serviu para aguçar a curiosidade sobre a luta no interior da Revolução Cubana, serviu de muito.
Para além disso, das respostas fáceis ou dogmáticas, o estudo da evolução do próprio castrismo, como o principal, mas não único nem onipotente, fator subjetivo da Revolução Cubana, nos permite ver como uma corrente democrática burguesa se transforma até chegar a expropriar a própria burguesia, e como nessa transformação política ela também se transforma ideologicamente.
No seio do castrismo, surgiu uma corrente que nunca se desvinculou dela totalmente, o guevarismo, mas avançou até a revolução internacional e a crítica ao estalinismo. Esse fenômeno, de evolução e mudanças de correntes políticas durante a revolução, não é algo exclusivo da Revolução Cubana, na verdade é um traço comum a todas as revoluções. Somente um estudo minucioso desses processos nos permitirá ver e entender essa transformação.
Todos esses elementos que tocamos rapidamente neste texto podem e devem ser desenvolvidos. Com certeza, novas nuances surgirão, novos elementos para possibilitar uma melhor compreensão da difícil tarefa de construir uma direção revolucionária.