12 de janeiro: 14 anos do terremoto que devastou o Haiti
Hoje marcam 14 anos de uma das maiores tragédias da história da América Latina: o terremoto no Haiti, que matou cerca de 300 mil pessoas e deixou outros dois milhões de desabrigados. Não foi uma simples catástrofe da natureza. O terremoto atingiu um país devastado pelo capitalismo, com casas impróprias para habitação e menos resistentes aos terremotos. Na escala Richter, o terremoto no Haiti teve pontuação de 7,3. Um terremoto semelhante, de magnitude 7,6 na mesma escala, atingiu o Japão há menos de duas semanas, matando cerca de 300 pessoas.
O governo haitiano, assim como a MINUSTAH (força da ONU que ocupou o Haiti comandada por tropas brasileiras) nada fizeram para ajudar o povo, dedicando-se a proteger seus próprios quartéis.
Neste dia doloroso para a história haitiana e latino-americana, publicamos o relato de um militante nosso que estava no Haiti no momento do terremoto. O texto foi escrito em 2020 e continua atual.
12 de janeiro, Haiti, 2010
12 de janeiro. Hoje completam-se 10 anos do terremoto que devastou o Haiti. Há dez anos, com um grupo de estudantes, um fotógrafo e um professor, estávamos em Porto Príncipe quando ocorreram os 35 segundos mais devastadores da história daquele país. Esses 35 segundos resultaram numa das maiores tragédias sociais do mundo, fruto de um desastre natural.
Por: Otavio Calegari, militante do MIT Chile
Pessoalmente, a experiência mudou completamente a minha forma de ver a vida e o mundo. Também para compreender como o imperialismo e o colonialismo geram as condições mais bárbaras para uma parte importante dos habitantes do planeta. No dia 12 de janeiro de 2010 também vi como uma cidade historicamente massacrada e saqueada foi capaz de mostrar uma energia e solidariedade impressionantes para sobreviver.
Nunca tinha sentido um terremoto. Quando, anos depois, vim morar no Chile, me acostumei com os tremores. Mas naquele momento, há 10 anos, nunca tinha sentido o poder da natureza com tanta força.
Nos minutos que antecederam o terremoto, eu estava no centro de Porto Príncipe com dois companheiros brasileiros e dois jovens haitianos que nos levavam a uma das Faculdades da Universidade do Estado para fazer uma entrevista com um professor – Jean Anil Juste. No caminho para a Faculdade onde faríamos a entrevista, o nosso carro teve que fazer um desvio, pois havia barricadas numa das ruas próximas. Mais tarde saberíamos que as barricadas eram um protesto de estudantes pela morte de um professor da mesma faculdade. O professor era Jean Anil Juste, o mesmo que íamos entrevistar. Jean foi um forte crítico da Missão de “Paz” da ONU (Minustah) e do trabalho das ONGs no país. Foi cruelmente assassinado em frente à Faculdade por duas pessoas que atiraram nele de uma moto.
As barricadas nos fizeram desviar o caminho. Eram 16h30, mais ou menos. Estávamos ouvindo um rap haitiano que ficou para sempre na minha memória – Pou kont mwen, do grupo Fantom. Descemos do tap-tap que nos levava, uma espécie de ônibus haitiano colorido que serve de transporte público no país, e começamos a ouvir um barulho alto que não sabíamos de onde vinha. O barulho chegou primeiro, como uma forte explosão de relâmpago que tinha atingido o solo. Mas vinha de baixo, não de cima. O tremor veio segundos depois. O primeiro foi forte e durou alguns poucos segundos. O segundo foi devastador. Durou 35 segundos. Não sabíamos o que estava acontecendo. Estávamos em frente ao Champ de Mars, praça principal de Porto Príncipe. Vimos como a praça, os postes e os edifícios se moviam. As pessoas lutavam para permanecer de pé. Perto de nós, as janelas de um museu explodiram. Lembro-me como se estivesse sentindo isso de novo. Foram 35 segundos. Mais tarde percebemos que tinha sido um terremoto – mas não tínhamos ideia do que havia acontecido ao nosso redor. Os haitianos levantaram as mãos ao céu e gritaram “Jesus, Jesus” “Bon dieu, bon dieu”. Começamos a gravar, com câmera, e a caminhar. Paramos de gravar quando vimos o primeiro morto, um homem com tinha ficado apenas com a cabeça e os braços visíveis. Encima dele, um prédio inteiro desabou. Naquele momento, percebemos que algo grave havia acontecido.
Discutimos o que fazer e decidimos ir até a livraria onde deveria estar o resto do nosso grupo, os outros 6 brasileiros. Pedimos aos meninos haitianos que nos levassem. A livraria ficava a cerca de 20 minutos a pé. Ao longo do caminho, vimos a destruição total da capital haitiana. A grande maioria dos edifícios e casas tinham caído. Havia pessoas feridas, queimadas, mortas. Quando chegamos à livraria, para nossa surpresa, a livraria havia caído. Entramos nos escombros e começamos a gritar por nossos companheiros. Nada, apenas destruição. Nenhuma voz, nenhum ruído. Um homem se aproximou. E nos perguntou: “Vocês estão procurando os brancos? Eles saíram há pouco da livraria… estavam do lado de fora quando ocorreu o terremoto. E então eles foram por ali” e nos apontou uma rua.
Continuamos por aquela rua. Quando continuamos, muita gente estava voltando correndo. Um posto de gasolina explodiu e muitas pessoas caminhavam com os corpos completamente queimados em nossa direção. Uma enorme onda de fumaça subiu do posto de gasolina. Tomamos outro caminho.
Por fim, caminhamos até a casa onde estávamos hospedados. Chegamos, a casa tinha muitas rachaduras, mas estava de pé. Nossos amigos estavam vivos, todos estavam bem. Felizmente, em poucas horas tivemos acesso à Internet e pudemos conversar com nossa família e amigos. A notícia já se espalhava pelo mundo nos canais de televisão. Chegaram antes de nossos telefonemas para nossos familiares, que passaram horas de agonia, sem saber se estávamos vivos ou mortos. Estima-se que 70% de Porto Príncipe foi destruído. A Catedral, o Palácio Presidencial, os principais hotéis e edifícios. Tudo, em 35 segundos, desabou. Houve entre 200 e 250 mil mortes, ninguém sabe os números verdadeiros até hoje. Mais de 1 milhão de pessoas perderam suas casas.
O país, naquela época, estava sob ocupação militar da ONU. Só em Porto Príncipe havia mais de 1.000 soldados brasileiros. A ONU também perdeu muitos membros, incluindo alguns dos chefes da missão. Um ou dois dias depois do terremoto, escrevi um texto no nosso blog: Haiti, estamos abandonados. Nele, denunciava a total paralisia dos militares em prestar ajuda ao povo. Os militares da ONU foram resgatar os seus, as pessoas “importantes” que estavam hospedadas nos quartéis e principais hotéis da cidade. Como sempre, os/as trabalhadores/as haitianos/as ficaram em último lugar. Arrisco dizer que milhares de pessoas morreram sob os escombros por falta de resgate. Nada mais poderia ser esperado dos militares. Eles nunca ajudaram o povo haitiano, este não seria o momento para fazê-lo.
Os Estados Unidos reagiram rapidamente e ocuparam, com milhares de fuzileiros navais, o Aeroporto de Porto Príncipe e a cidade. Não para ajudar. Ocuparam-no para reprimir uma possível rebelião que poderia advir da tragédia. Nada mais estúpido. Os haitianos estavam preocupados em salvar suas famílias e amigos e em manter canais de alimentação e transporte para que as pessoas permanecessem vivas.
Saímos de Porto Príncipe 4 dias depois. Não vale a pena contar tudo o que vimos, é muito doloroso.
Hoje faz 10 anos desde o terremoto. Já se passaram 16 anos desde que a MINUSTAH entrou no Haiti – tropas norte-americanas, chilenas, brasileiras, canadenses, bolivianas e de outros países. A Minustah, embora totalmente controlada pelo imperialismo norte-americano, foi levada a cabo por governos de direita, como Piñera, e também de “esquerda”, como Lula, Evo Morales, Bachelet. Essa ocupação, porém, foi praticamente esquecida pela esquerda latino-americana que hoje defende esses personagens. Eles nunca se importaram com o Haiti. No final, o Haiti nunca importou para ninguém. O povo negro que foi o segundo na América a alcançar a independência, que derrotou as tropas francesas lideradas pelo genro de Napoleão Bonaparte, que recebeu Simón Bolívar e o apoiou para conseguir a libertação da Grande Colômbia das mãos dos espanhóis… o povo que foi um exemplo para a libertação de toda a América Latina e a África. Com esse povo, nunca ninguém se importou. Eles são negros, são pobres. Temos que ajudá-los, precisam de ajuda. Este é o discurso que nos ensinaram.
A tragédia haitiana de 2010 não foi um desastre natural. Foi um desastre social. O Haiti foi um país conscientemente atacado e destruído durante mais de 2 séculos, desde a sua libertação. Primeiro, pela França, depois pelos Estados Unidos. O imperialismo nunca perdoou a primeira revolução negra da América. O campo haitiano, nas últimas 5 décadas, foi completamente devastado pelos Estados Unidos. De país autossuficiente em arroz na década de 1970, tornou-se quase inteiramente dependente do arroz importado dos Estados Unidos. Através da USAID, a ajuda humanitária dos Estados Unidos inundou, nas últimas décadas, o país com arroz norte-americano e levou à falência a maioria dos agricultores haitianos. Este é apenas um exemplo de como a destruição quase completa da zona rural haitiana foi conseguida conscientemente; há muitos outros. O plano norte-americano, pelo menos desde a década de 1970, era transformar o Haiti num pequeno México, onde pudessem produzir diferentes tipos de produtos (principalmente têxteis) com mão-de-obra muito barata e exportá-los para os Estados Unidos e outros países. Para criar essa classe operária empobrecida e quase escrava dos Estados Unidos, destruíram o campo para que os agricultores fossem para as cidades. Conseguiram destruir o campo, mas nunca conseguiram controlar o país, que se transformou em uma colônia totalmente rebelde graças à insistência do povo haitiano em lutar por uma vida digna.
O material das casas no Haiti é muito deficiente. A principal fábrica de cimento foi privatizada na década de 1990 e depois fechada. Nenhuma grande empresa de construção está interessada em construir casas modernas para os pobres, muito menos com tecnologia antissísmica.
O terremoto de 2010 foi o golpe devastador para uma nação completamente saqueada pela voracidade do capital internacional. Se nos tempos coloniais os europeus foram para África em busca de escravos, hoje o capital internacional vai para o Haiti e para África em busca de um proletariado obrigado a trabalhar pelos piores salários e com as piores condições de trabalho. Black lives don’t matter, as vidas negras não importam, como diz o movimento negro nos Estados Unidos.
Após o terremoto, a imprensa internacional fez um espetáculo. Da cobertura imediata até os meses seguintes. Todos os países e grandes personalidades prometeram doar dinheiro para a reconstrução do Haiti. A maior parte dos 12 bilhões de dólares prometidos nunca chegou. Do que chegou, quase nada passou pelas mãos do Estado haitiano ou de organizações operárias ou camponesas. O que não passou pela ONU ou de bancos estrangeiros, passou pelas mãos das ONGs, que praticamente colonizaram o país. As ONGs são um câncer em todos os países pobres. Existem para manter estes países na miséria. Save the Children, Médicos Sem Fronteiras, Viva Rio e muitas outras. Os seus agentes vivem como reis, têm acesso a camionetas, internet, água potável, eletricidade – o que a maioria dos trabalhadores não tem. Vão aos shoppings, nadam na prostituição. Pagam salários miseráveis aos trabalhadores que empregam. E, mais do que isso, não resolvem nenhum dos problemas que deveriam resolver. Se resolvessem algum problema, teriam que sair. E se tiverem que sair, deixam de receber o dinheiro que chega das doações. Portanto, as ONGs não estão interessadas em resolver problemas. Estão interessados em reproduzi-los, para que possam continuar existindo e lucrando com a miséria alheia. São “os senhores da pobreza”, como disse Graham Hancock no seu livro Lords of Poverty, sobre a famosa “ajuda internacional”.
Poucos meses depois do terremoto, outra tragédia. Um surto de cólera, doença praticamente eliminada do país há décadas. Centenas de milhares de pessoas contaminadas, mais de 8 mil mortos nos anos seguintes. A propagação da cólera começou com o uso da água do rio Artibonite. Em pouco tempo ficou comprovado que as bactérias que contaminaram o rio provinham das fezes das tropas nepalesas da Minustah. Inúmeros protestos eclodiram em todo o país e foram duramente reprimidos pela ONU, resultando em algumas mortes.
Hoje o Haiti vive mais uma vez uma enorme onda de protestos. A Minustah, há alguns anos, foi substituída por novas missões, com novos nomes. O país já não está ocupado por militares estrangeiros, mas a ONU mantém especialistas e conselheiros estrangeiros encarregados de aconselhar a Polícia Nacional Haitiana e outras instituições estatais. A possibilidade de uma nova ocupação militar nos próximos meses ou anos, contudo, não é uma fantasia. A polícia haitiana, treinada por soldados estrangeiros, não consegue controlar a crescente onda de protestos.
Foram mais de 13 anos de Minustah e mais 2 anos de outras missões. Militares de vários países passaram pelo Haiti. Nenhum dos problemas do país foi resolvido. Nem antes nem depois do terremoto. O Haiti continua praticamente uma colônia norte-americana. Há poucos dias tornou-se público que muitos soldados estrangeiros deixavam mulheres haitianas grávidas. Isto não é novidade, todos já sabíamos, mas a ONU não o reconhecia. Infelizmente, muitas mulheres tiveram ou terão filhos em consequência de violações da ONU. Esta também não é uma prática nova nas ocupações militares da ONU. E as denúncias quase nunca são investigadas e os responsáveis raramente são punidos. A ONU é uma instituição hipócrita e assassina.
Nas últimas décadas, o povo haitiano demonstrou uma enorme capacidade de se reinventar e de lutar. Compelidos pela necessidade, procuraram melhores condições de vida em vários outros países do mundo, mas não foram bem recebidos. O racismo é uma marca do capitalismo. Mas continuam lutando e mostrando ao mundo como resistir.
O dia 12 de janeiro de 2010 mudou a vida de milhões de haitianos e haitianas, que perderam suas casas, familiares, amigos ou tiveram que deixar o país. Já se passaram 10 anos desde a tragédia. São 10 anos de aprendizado com essa gente maravilhosa e corajosa. Aos meus muitos amigos do Haiti, envio um abraço forte e fraterno nesta data.
O capitalismo nos leva à barbárie, mas com a força do povo haitiano aprenderemos como nos libertar e construir uma nova sociedade, mais humana, onde os seres humanos não se explorem e massacrem uns aos outros, onde a riqueza produzida seja distribuída, onde haja condições de vida dignas para todas as pessoas. Haitianos e haitianas, chilenos e chilenas, franceses e francesas nas ruas hoje mostram que esta nova sociedade é possível.
Professor Jean Anil Luis-Juste, presente!
(Foto de Cris Bierranbach, fotógrafa que nos acompanhava em 2010. O homem na foto aparece com creme dental no nariz para nãos sentir o odor dos corpos que estavam nas ruas.)