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Outro processo constitucional fracassado. O que está acontecendo no Chile?

dezembro 19, 2023

Com mais de dez pontos de diferença, a opção “Contra” derrotou a opção “A favor” no novo Plebiscito Constitucional. A primeira venceu com 55,76% dos votos contra 44,24% da segunda. Com esta votação se encerra um ciclo constitucional aberto em 15 de novembro de 2019 com o Acordo de Paz, que propunha como saída da crise social a realização de um Processo Constituinte que pudesse gerar um novo “pacto social”.

Por: MIT – Chile

Sem pretender fazer uma análise completa de todo o processo social que vivemos nos últimos quatro anos, desde a explosão revolucionária, queremos apontar alguns elementos para ajudar a interpretar os resultados de ontem.

Alguns dados relevantes

Em 71% das comunas do país a opção “Contra” venceu. Das 16 regiões, o “A favor” venceu apenas três: Ñuble, Maule e La Araucanía, regiões do sul com elevado peso do grande empresariado agrícola latifundiário. Na Região Metropolitana (RM), o resultado do plebiscito é muito semelhante ao do primeiro plebiscito constitucional, que questionava se o povo queria ou não uma nova Constituição. No atual plebiscito, a opção “A Favor” venceu apenas em cinco comunas, Vitacura, Lo Barnechea e Las Condes, San Pedro e Colina, entre estas estão as três mais ricas de Santiago e do país, expressando uma clara divisão de classes no eleitorado. Embora possamos explicar a vitória do “A Favor” nessas comunas com base na consciência de classe das famílias burguesas de que esta era a sua Constituição, não podemos fazer o mesmo para explicar a vitória do “Contra” na maioria da Capital, já que as razões do voto “Contra” são mais difusas. Em algumas das comunas mais pobres e operárias de Santiago, como Lo Espejo, San Joaquín, La Pintana, La Granja, Puente Alto, San Ramón, Cerro Navia, Pudahuel, Maipú e outras, o “Contra” obteve mais de 60% dos votos. A própria imprensa burguesa [1] chama a atenção para o fato de, nessas comunas, onde os problemas de “segurança” e “violência” são mais agudos, a opção “A favor” não ter obtido grandes votações, o que mostra que a extrema-direita teve grande dificuldade em relacionar o seu discurso sobre a crise de segurança com a aprovação da sua Constituição.

Mapa de votação na Grande Santiago, faltam alguns municípios da Região Metropolitana.

Além destes dados, vale destacar que a participação eleitoral atingiu 84% (2% a menos que no plebiscito anterior). As justificativas para não votar triplicaram e os votos nulos e brancos mais que duplicaram em relação ao último plebiscito constitucional, este último atingindo 5% dos eleitores.

Como interpretar os resultados?

Muitos “analistas” burgueses dizem que este processo termina com dois fracassos e nenhum vencedor.[2] Não compartilhamos desta opinião. Desde o Acordo de Paz de 2019, analisamos que o Processo Constituinte teve uma dupla face. Por um lado, expressou uma conquista social que permitiu que muitas das reivindicações históricas do movimento social e operário entrassem, com grande dificuldade, no projeto de Constituição aprovado pela fracassada Convenção Constitucional.[3] Por outro lado, o verdadeiro objetivo dos partidos burgueses e reformistas que assinaram o Acordo de Paz era usar o Processo Constituinte para canalizar o descontentamento social para as instituições da democracia burguesa, para uma nova institucionalidade decorrente de um novo “pacto social”. Pretendiam assim encerrar o processo aberto em 18 de outubro: tirar as massas das ruas, acabar com a violência revolucionária e instalar a “paz dos cemitérios” da democracia burguesa, onde políticos profissionais negociam acordos em luxuosas salas climatizadas. Este segundo objetivo foi alcançado.[4]

Para os donos do Chile e seus representantes políticos, não é verdade que o fracasso das duas Assembleias Constituintes tenha sido uma grande derrota. O país permanece hoje, do ponto de vista da sua estrutura jurídica e econômica, quase no mesmo lugar que antes da explosão revolucionária. Continuamos com a Constituição de 80, que é totalmente pró-negócios e as massas já não estão nas ruas exigindo mudanças sociais. Por esta razão, acreditamos que os Processos Constituintes cumpriram, em parte, o seu objetivo: desmobilizar o movimento de massas e desmoralizar uma parte da sua vanguarda.

No entanto, este é apenas um aspecto do problema porque um dos objetivos do Processo Constituinte, colocado principalmente pelos partidos que o defendiam, como os socialistas, a Frente Ampla e o Partido Comunista, era criar um novo pacto social que daria estabilidade a longo prazo para a dominação burguesa no país, com mais concessões às massas (seguridade social pública, direito ao aborto, mais direitos sindicais, etc.). Isto para que o Chile não irrompesse novamente em manifestações violentas nos próximos anos ou décadas. Nesse aspecto, o Processo Constituinte também tem dupla face. Embora por um lado tenha conseguido encerrar, de maneira imediata o processo revolucionário, não conseguiu gerar um “pacto social” estável e duradouro para a burguesia. Os problemas sociais continuam aumentando, como descrevemos em outro artigo, e as grandes empresas não estão dispostas a fazer quaisquer concessões ao movimento de massas, como foi demonstrado nos últimos quatro anos.

A derrota da atual proposta constitucional, da direita, evitou um maior retrocesso na área dos direitos sociais (embora os ataques continuem através do Parlamento). Mas resta saber se as massas avançarão em novas articulações para enfrentar o que está por vir. Só o tempo e a luta de classes demonstrarão se esta derrota relativa da direita se transformará numa vitória relativa das massas, causando consequências positivas para a rearticulação do movimento de massas.

Com o fracasso dos dois Processos Constituintes, os partidos reformistas foram os mais afetados. Isto porque tanto o Partido Comunista como a Frente Ampla foram os grandes defensores de um programa que colocava no centro a necessidade de uma “Assembleia Constituinte” para “acabar com o neoliberalismo”. Bem, a realidade mostrou que esse caminho fracassou. Em primeiro lugar, porque a própria proposta de Constituição da Convenção Constitucional, escrita e defendida por esses partidos e pelos independentes de esquerda, não acabava com o neoliberalismo e mantinha intacta a estrutura semicolonial do Chile, com a privatização do cobre e o domínio de dez famílias em toda a economia. Em segundo lugar, porque nem a Convenção, nem o governo Boric, nem o último Processo Constituinte deram respostas concretas aos problemas mais sentidos pelas massas. Assim, podemos dizer que amplos setores das massas fizeram experiência com o programa do PC/FA e viram que este programa leva a um beco sem saída, é mais do mesmo (o que não significa que estes partidos estejam mortos socialmente e/ou eleitoralmente).

A direita, por outro lado, pensava ter capitalizado o descontentamento contra Boric e a “esquerda” da Convenção Constitucional anterior. Embora seja verdade que num primeiro momento o seu discurso conseguiu conectar-se com amplos setores das massas, não é verdade que toda a “rejeição” no Plebiscito anterior se tenha transformado em apoio às propostas de direita. Isto é evidentemente demonstrado pelo resultado do atual Plebiscito, onde a Constituição que foi a plebiscito foi escrita inteiramente pela direita.

As rejeições das duas propostas constitucionais mostram que a crise do regime democrático-burguês continua. O descontentamento social contra instituições e partidos políticos ainda está presente e os problemas sociais que geraram a explosão continuam vigentes. Para se manter, no seu declínio, o regime democrático burguês precisou “oxigenar-se” com dois processos constituintes e a incorporação total da Frente Ampla, do Partido Comunista e também da extrema direita republicana ao regime político do país. Agora o regime precisava de incorporar estes “novos” atores para manter a “governabilidade”.

Dizer que a crise do regime democrático-burguês ainda está presente não significa dizer que morrerá por si só ou que está em declínio terminal. Se não houver alternativa revolucionária, as coisas permanecerão como estão, com um aumento da repressão para responder ao descontentamento social.

O discurso de Gabriel Boric ao saber do resultado do plebiscito apontou o caminho que seu governo seguirá. Chamou a direita a fazer novos acordos transversais, para “resolver” os problemas de segurança, aposentadorias e chegar a um pacto fiscal. Como já vimos nos últimos dois anos, o principal objetivo destes acordos é manter a propriedade capitalista dos grandes empresários, com a continuidade das AFPs, das ISAPRES, e por outro lado, salários de fome para os trabalhadores. Tudo isso enquanto aprovam leis mais repressivas como a Lei AntiTomada, a Lei de Infraestrutura Crítica, os Estados de Exceção na Araucanía e o Leu Naín Retamal, entre outras.

Os herdeiros do PC: o fetiche da Assembleia Constituinte

No âmbito da esquerda extraparlamentar e mais ligada aos movimentos sociais, mantém-se a ideia de que o Chile precisa de uma “verdadeira” Assembleia Constituinte para resolver os problemas do país e que alcançá-la é uma tarefa colocada para o momento atual. Esta visão vai desde organizações estalinistas como o PC(AP) [5] até setores que se autodenominam trotskistas como o PTR [6], passando por uma ampla gama de organizações sociais e “rubro-negras”.

Este entendimento tem um problema central: idealiza uma suposta “constituinte livre e soberana” e não entende que no Chile houve duas experiências nos últimos quatro anos que não conseguiram resolver os problemas. das massas.

As Assembleias Constituintes no capitalismo são sempre organismos da burguesia, por mais “livres” e “soberanas” que sejam. Isto porque a sua forma de eleição, baseada no sufrágio universal e com enormes campanhas financiadas pelos grandes empresários, faz com que a burguesia tenha um peso muito maior do que o seu peso real na sociedade, ao mesmo tempo que os representantes da classe trabalhadora são sempre minoria (se houver). As Assembleias Constituintes não são organismos revolucionários do povo ou da classe trabalhadora, são Parlamentos, onde as diferentes classes sociais se reúnem para negociar um novo “pacto social”. São organismos de colaboração de classe.[7] E na grande maioria das vezes, as ACs também não têm o poder nas mãos, pois as demais instituições permanecem nas mãos da burguesia (Executivo, Forças Armadas, Justiça, etc.). Se na época do surgimento do capitalismo as Assembleias Constituintes tinham um carácter revolucionário, isso tinha a ver com o papel da burguesia naquele período histórico na sua luta contra as monarquias. Atualmente são sempre de natureza muito limitada e, no máximo, conseguem permitir algumas reformas democráticas parciais.

Assim, podemos afirmar que nenhuma Assembleia Constituinte no Chile, com a burguesia dentro dela e controlando o resto do aparelho estatal, será capaz de acabar com as AFPs, nacionalizar o cobre, expropriar proprietários de terras e grandes empresas pesqueiras, etc. Antes de permitir isso, os detentores do poder dariam um novo golpe de Estado e fechariam a Assembleia Constituinte.

Por esta razão, sempre dissemos que o centro do problema para acabar com a dominação burguesa não é a realização de uma Assembleia Constituinte, mas sim a tomada do poder pela classe trabalhadora, através das suas organizações de massas e com a autodefesa operária e popular. A palavra de ordem “AC” é uma reivindicação democrática que tem importância na realidade na medida em que as massas identificam a necessidade de mudar a Constituição para resolver os seus problemas, embora isso seja impossível de ser realizado a fundo. Por esta razão, nós, revolucionários, acompanhamos as massas na sua experiência para lhes mostrar que nenhuma Assembleia Constituinte burguesa resolverá os seus problemas. No caso do Chile, devido à permanência da Constituição Pinochet-Lagos, a tarefa de mudar a Constituição de forma democrática continuou e continuará a ser uma tarefa pendente. Por esta razão, a palavra de ordem de uma Assembleia Constituinte livre e soberana deve continuar no programa das organizações de massas. No entanto, não podemos ignorar que nos últimos três anos foram realizadas duas experiências (com mais ou menos democracia) e que as massas já não têm as mesmas expectativas de que uma terceira resolva os seus problemas. A palavra de ordem da “Assembleia Constituinte” como catalisadora do movimento de massas, pelo menos por um período, perdeu a sua força vital. Não entender isso é não entender que o fracasso da Assembleia Constituinte foi a demonstração mais exemplar do fracasso do programa do PC e da Frente Ampla. Esta é uma lição fundamental que aqueles de nós que se dizem revolucionários devem aprender. Caso contrário, continuaremos alimentando ilusões de que uma “verdadeira assembleia constituinte” será capaz de resolver as reivindicações populares, quando no mundo real as massas já experimentaram duas constituintes com lideranças diferentes (ambas burguesas). Por isso dizemos que as organizações que hoje continuam a colocá-la como uma reivindicação central dos movimentos sociais e do movimento operário, nada mais fazem do que manter a herança do Partido Comunista e da Frente Ampla, mas agora totalmente desligada do sentimento das massas.

Nós, revolucionários, devemos explicar às massas, com muita paciência, que a única maneira de resolver os problemas do Chile (e do mundo) é com uma revolução que varra toda a democracia burguesa e coloque o poder nas mãos da classe trabalhadora organizada em suas próprias organizações de poder (conselhos, assembleias populares, sindicatos, etc.). Somente com o poder da classe trabalhadora poderá ser realizada uma Assembleia Constituinte que responda verdadeiramente às demandas sociais.

As tarefas atuais

Por fim, convidamos a todos a revisarem o último artigo que publicamos sobre o momento atual. Nele desenvolvemos de forma mais sistematizada o que acreditamos serem os desafios e tarefas do momento.

Aqueles de nós que se dizem revolucionários devem saber explicar a cada trabalhador porque é que, depois de enormes lutas e mobilizações, não conseguimos nenhuma mudança de fundo. Devemos saber explicar porque é que nenhum dos Processos Constituintes conseguiu resolver os problemas da nossa classe e porque nesta democracia será impossível fazê-lo.

É necessário que nos reconectemos com as lutas da classe trabalhadora, da juventude, do povo pobre, pelas suas reivindicações imediatas e históricas, elaborando uma lista de reivindicações em nível nacional e exigindo que as direções das organizações sindicais e sociais (CUT, ANEF, CTC, CONFECH, etc.) mobilizem suas bases para essas reivindicações, independentemente do governo de Gabriel Boric, que apenas busca cooptar dirigentes sociais e sindicais, esvaziando-os de representatividade e democracia direta, abrindo caminho à despolitização, à apatia e ao individualismo.

Por último, mas não menos importante, é essencial que construamos um partido revolucionário que possa dirigira a próxima explosão social, uma ferramenta política que permita aos trabalhadores tomar o poder nas suas mãos e mudar pela raiz a estrutura econômica e social do Chile, nacionalizando o cobre e o lítio sob o controle dos trabalhadores, expropriando as grandes propriedades e grandes empresas florestais, devolvendo as terras históricas ao povo Mapuche, e executando um programa para garantir o pleno emprego e condições de vida dignas para os trabalhadores, fazendo com que a crise econômica em curso seja paga pelos capitalistas. A construção deste partido revolucionário deve ocorrer através da participação em todas as lutas estudantis, operárias e sociais. Para esta reflexão queremos convidar aos ativistas que hoje estão sozinhos ou decepcionados com as derrotas que sofremos nos últimos anos.

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[1] Veja: https://digital.elmercurio.com/2023/12/18/C/4I4CCCHB#zoom=page-width

[2] Veja as colunas de Fernando Átria (Frente Amplio), Cristián Warnken (Amarillos) e Paz Anastasiadis na edição de hoje do El Mercurio, 18/12/23.

[3] Apesar de termos votado pelo  Aprovo no projeto anterior da Nova Constituição, sempre fomos nítidos em dizer que a Nova Constituição era, no seu conjunto, burguesa e não resolveria os problemas do país, apesar das conquistas jurídicas que o movimento social conseguido configurar no projeto.

[4] O papel dos partidos reformistas e dos independentes de esquerda na Convenção Constitucional foi fundamental para permitir o desvio das mobilizações sociais para a institucionalidade burguesa, como desenvolvemos noutros textos. Veja: https://www.vozdelostrabajadores.cl/a-3-anos-del-18-de-octubre-donde-estamos-como-seguimos

[5] Veja a posição de sua principal figura pública: https://twitter.com/artes_oficial/status/1736448839068893478

[6] Numa nota controversa connosco, o PTR propõe que as lutas sociais contra as AFPs, pela educação pública, etc., devem ser orientadas para a conquista de uma Assembleia Constituinte “autêntica” que surge da queda revolucionária do regime democrático burguês. Esta Assembleia Constituinte seria um primeiro passo na luta por um governo da classe trabalhadora. Veja https://www.laizquierdadiario.cl/El-MIT-desde-el-Apruebo-hasta-el-En-Contra

[7] Ver Trotsky, Problemas da Revolução Italiana https://www.marxists.org/espanol//trotsky/ceip/permanente/p5.problemasdelarevolucionitaliana.htm

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