Chile| Uma história de saques: contribuição para as lutas do presente
No presente artigo, realizaremos uma breve revisão histórica do saque dos nossos bens naturais, particularmente na área da mineração (salitre, cobre, lítio), porque historicamente têm sido a principal fonte de pilhagem por parte do imperialismo internacional e da burguesia nacional. Com o objetivo de traçar um fio de continuidade entre as lutas populares do passado e as do presente, mostrando que os fenômenos que estão ocorrendo atualmente (18-O, 2019), são produto das experiências organizativas de milhares de pessoas que deram suas energias para que a riqueza deste território fique efetivamente no país e esteja a serviço das grandes maiorias.
Por: Cristóbal Badilla, historiador e professor de História
O saque colonial
Em primeiro lugar, a exploração das jazidas minerais essenciais para o desenvolvimento nacional/local e social não é algo propriamente do presente, os primeiros remanescentes remontam desde a época colonial na América Latina. Dito isso, em 1541 (século XVI), Pedro de Valdivia e seu grupo de conquista conseguem avançar por estes territórios instalando-se no vale do Mapocho, rapidamente expulsaram os indígenas locais, assentando-se perto das minas de ouro localizadas a quilômetros da futura cidade de Santiago em “Marga- Marga”, roubando as riquezas disponíveis, onde o Cacique Michimalonco se viu “obrigado” a negociar, fornecendo 1200 indígenas para “colaborar” em tal extração, dando os primeiros passos para o sistema de “encomenda” no Chile, estabelecendo um modo de trabalho colonial baseado na escravidão de milhões de indígenas.
Em segundo lugar, nas décadas seguintes, a empresa da conquista continuou avançando para o sul, chegando aos territórios sob administração Mapuche, continuando com o despojo dos bens naturais. Por isso, em resposta à violência da Coroa, os Mapuches, no que hoje é “Arauco” ou “Gulumapu” (oeste da cordilheira dos Andes), se organizam em defesa do território, ocorrendo como marco fundamental, o “Levante de Curalaba” em 1598, onde estabeleceram uma espécie de fronteira, obrigando os conquistadores a negociar através da figura dos “parlamentos”, dando lugar ao reconhecimento dos grupos Mapuche como setores autônomos. Assim, podemos evidenciar que a dominação colonial não foi “linear” como sugerem alguns, os indígenas da região pegaram em armas contra os invasores, dando lugar a uma série de ações para evitar o contínuo saque da Coroa.
Por outro lado, no momento em que o Chile foi um país “independente”, sofreu grandes transformações estruturais não somente em seu ordenamento jurídico e institucional (passou de uma Capitania geral para uma República burguesa), mas também no âmbito da economia e da sociedade, onde o controle dos recursos naturais se expressou em três situações. Em primeiro lugar, durante a primeira metade do século XIX (1818- 1840), configurou-se a entrada na nova ordem mundial, onde nosso papel era de exportador de matérias primas, enquanto que a Inglaterra foi se consolidando como a potência emergente com traços imperialistas, deslocando os impérios coloniais e aplicando mecanismos financeiros em torno do acesso do país ao crédito internacional e à redução das tarifas. Com estas medidas, foi possível financiar o desenvolvimento urbano das nascentes repúblicas, embora de forma contraditória, gerou paulatinamente um processo de dependência em torno do uso dos recursos naturais pelos ingleses, garantindo a subordinação da burguesia nacional ao capital estrangeiro.
O período do imperialismo inglês
Em segundo lugar, entre 1850-1890, a consolidação do imperialismo inglês no território, não somente se expressava na modernização econômica, mas também no fato de que tal processo fazia parte de uma engrenagem de dominação global no marco das novas relações capitalistas, onde a mineração será chave para a produção de explosivos e na criação de fertilizantes, gerando seu próprio desenvolvimento em matéria de exportação à custa de atar nosso país (e o continente) à dependência de matérias primas.
Em terceiro lugar, com a expansão territorial tanto para o norte (Guerra do Salitre com Peru e Bolívia 1879-1884), o país obteve novos territórios com jazidas minerais importantes localizadas em cidades como Antofagasta, Iquique, Tarapacá, estando sob controle de companhias inglesas (aproximadamente 70% dos escritórios de salitre), investindo aproximadamente 15 milhões de libras esterlinas até 1889. Além disso, a incursão militar para o sul com a redução de territórios ancestrais e a subordinação de milhares de Mapuches ao Estado. E, a Guerra Civil de 1891, onde um setor da marinha apoiado pela oposição conservadora e financiada pela burguesia latifundiária entra em disputa com José Manuel Balmaceda, que propôs uma política “nacionalista” com relação a um possível freio em torno dos investimentos ingleses no salitre, propondo a criação de empresas de salitre de capitais nacionais.
Sendo uma política “tépida”, já que não propunha que o Estado se encarregasse do minério. alertando ao imperialismo inglês e seus investimentos no país, desencadeando através da influência na oposição chilena (burguesia mineira, comercial, bancária) a guerra civil orquestrada em 7 de janeiro de 1891 com a sublevação da Marinha, com um saldo de 10.000 mortos em combate e finalmente o suicídio de Balmaceda em 19 de setembro do mesmo ano. Entretanto, isto não quer dizer que Balmaceda representasse os interesses populares, os documentos da época sustentam que teve apoio dos EUA e em um momento inclusive da Alemanha. Portanto, podemos considerar que esta guerra civil foi uma expressão de defesa ante o imperialismo, embora com um nacionalismo burguês incapaz de levar a cabo reformas democráticas a serviço das maiorias.
Por outro lado, entrando no século XX, enquanto o imperialismo inglês dispunha do controle e investimento do salitre (não somente em termos de capital, mas também no transporte com o controle das ferrovias), começou-se a configurar uma nova classe trabalhadora que fazia funcionar um incipiente setor industrial nas “cidades” mineiras do Norte. Nesse sentido, entre 1890 e 1912, o proletariado do salitre aumentou de 13.060 até 45.000 mil pessoas nos setores. Contudo, nem tudo era “progresso”, mas que a literatura contemporânea chamou de suas condições de vida, a “questão social”, porque não possuíam saneamento, água potável, as doenças campeavam, alcoolismo, violência de gênero e finalmente o “pagamento” não era em salário, mas em fichas que eram trocadas por alimentos de primeira necessidade nas “mercearias”, que vinham dos mesmos capitais donos das minas.
Além disso, para a burguesia nacional ligada ao capital imperialista, esta bonança econômica do salitre não duraria para sempre. Com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) houve uma paralisação nos lucros, já que a Alemanha (que era compradora do salitre junto com a Inglaterra), produziria um salitre sintético, que, em termos logísticos seria mais barato adquirir no mercado internacional, somado à crise terminal deste produto com a queda definitiva dos preços na grande depressão de Wall Street em 1929, deixando milhares de desempregados em nosso país, produzindo migrações em massa do norte para o centro, desencadeando graves problemas políticos que trariam um novo ator ao conflito pela usurpação dos bens naturais chilenos: os Estados Unidos.
Vila de salitre de Humberstone
Por outro lado, ocorreria uma mudança importante em termos de matriz produtiva na mineração, já que o cobre surgiria como o novo minério para a exportação. Neste sentido, sua estrutura produtiva, se baseará na extração em bruto do nitrato e seu processamento industrial caminhará de mãos dadas com uma reestruturação no cenário internacional. Porque a Europa, com sua própria destruição e a nova ordem mundial pós-guerra havia caído, os Estados Unidos se posicionam como a nova potência imperialista, apropriando-se das empresas de cobre, gerando um processo de dependência de 51% das exportações que o Chile fazia durante a primeira metade do século XX.
O cobre e os Estados Unidos
Assim, o cobre continuou abastecendo o mercado internacional, embora os excedentes via impostos do Estado tenham aumentado, dando lugar ao financiamento de obras públicas, saúde ou educação. Mesmo assim, não acreditamos que a história seja “linear”, nem que, devido ao aumento da participação estatal na economia, tenhamos garantida a “independência econômica” do povo trabalhador, já que, as empresas transnacionais, a maioria de capitais estadunidenses aumentam no país (Grace Dupont Co, Guggenheim Co, ITT, Anaconda Copper, etc.). Ademais, pela metade do século, os EUA consolidaram sua hegemonia com mais de 50% de recepção para as exportações das nossas matérias-primas estratégicas. Somado a isso, outro elemento do capital financeiro para hipotecar o país foi a dívida externa, que exceto no período entre 1929-1935 quando os pagamentos foram suspensos, acumulou para 1964 um total de 1.105 milhões de dólares, dos quais foram pagos apenas 624 milhões para obtenção de crédito internacional.
Nesse sentido, consideramos que o período abordado entre 1935-1973, pode ser compreendido como um “Estado de Compromisso”, porque o Chile se move a partir de uma economia aberta baseada somente na exportação dos recursos naturais para uma “economia mista”, baseada no modelo de Industrialização por Substituição de Importações (ISI), avançando paulatinamente na industrialização, não somente dos setores estratégicos do país, mas também manufaturando bens cotidianos para a população (couro, calçados, alimentos, etc), tendo uma maior regulação do mercado interno e tentando avançar para a “proteção social” (esta última é igual ao do momento anterior devido às lutas históricas do movimento operário).
Sob este contexto, um dos marcos que queremos destacar, no âmbito das propostas promovidas pela classe trabalhadora no Chile junto com os partidos da esquerda reformista, foi o projeto de Lei intitulado “PROJETO DE LEI NA HISTÓRIA DO CHILE, DE NACIONALIZAÇÃO DO COBRE.”, apresentado pelos Senadores do Partido Comunista do Chile Salvador Ocampo e Elías Lafertte em 21 de Junho de 1951, que destacará entre outros elementos em seu Art. 1°: “Por exigir o interesse nacional, declaram-se de utilidade pública todos os bens de sua propriedade que tenham no país a Chile Exploration Company, a Andes Copper Mining Company, e a Braden Copper Company”. Embora sendo rechaçado, compreende a necessidade do controle de nossos bens naturais frente ao imperialismo norte-americano. Por sua vez, esta ação, se enquadra em uma nova ordem mundial (Guerra Fria: divisão bipolar do globo no capitalismo via EUA e “socialismo” (estalinismo) via URSS, com suas respectivas zonas de influência).
Por isso, desde 1964, no marco desta polarização social, a Democracia Cristã (DC) é governo através de Eduardo Frei Montalva, buscando o “centro” para disputar o movimento operário à esquerda, promovendo a chamada “revolução em liberdade”, com financiamento direto do Vaticano e cumprindo o plano dos USA chamado “Aliança para o Progresso”, com o objetivo de evitar o avanço do “comunismo” dentro do país. O que, em matéria energética ao reformar a legislação anterior, avança para 51% de participação estatal em matéria aquisitiva em relação à propriedade do cobre em negociação com o imperialismo norte-americano, aplicando a “chilenização do cobre”, atuando em uma espécie de empresas mistas de cobre.
Por outro lado, esta situação sofreria uma modificação importante, com a eleição vitoriosa de Salvador Allende em 4 de setembro de 1970, com 36,6 % dos votos (apoiado pelo Congresso via votos da DC) que fazendo uma aliança de classe com a pequena burguesia (Partido Radical) e a Esquerda Reformista que vinha da Frente Popular (PC-PS), propôs ao país, a tese da “via pacífica ao socialismo”, quando a experiência histórica havia demonstrado que para mudar a sociedade do zero, tinha que derrubar a burguesia. Que, com um programa definido como “antioligárquico, anti-imperialista”, pretendia mediante a conciliação de classes avançar para o socialismo, disputando os meios de produção a uma burguesia excludente e déspota, que tinha uma estratégica aliança com o imperialismo para manter o papel histórico de subordinação de atraso e dependência para o Chile.
Da nacionalização do cobre ao neoliberalismo
Nesse sentido, Allende empreende esta ação em relação à mineração, em 11 de julho de 1971, aprovada por unanimidade no Congresso Nacional (de maioria direitista), através da Lei N° 17.450, operando como uma reforma à Constituição de 1925, declarando que o Estado possuía domínio absoluto, exclusivo, inalienável e imprescritível de todas as jazidas de minérios do país, deixando sem efeito todos os contratos com as empresas de origem norte-americana. Entretanto, o imperialismo passa à ofensiva deprimindo o preço do cobre chileno no mercado internacional: proibiram a exportação de peças sobressalentes e insumos para a mineração; somado aos empréstimos internacionais para o Chile. No entanto, apesar destas medidas, a produção não caiu nas minas de Chuquicamata, El Salvador e El Teniente, superando os ritmos anteriores a 1968. Embora, ao baixar o preço internacional, também o fizeram as exportações: se em 1970 o valor das exportações baixou em 85,7 milhões de dólares em relação a 1969, em 1972 caiu aproximadamente 267, 9 milhões de dólares em comparação a 1969.
Além disso, esta experiência somada a milhares de organizações de trabalhadores (Cordões Industriais, Comandos Comunais, tomadas de fundos, bairros pobres autogestionados), que se levantaram de forma autônoma por fora das iniciativas da UP -Unidade Popular (embora com centenas de militantes de base nelas), foram o inimigo real a ser combatido pelo imperialismo e pela burguesia nacional, que agiu financiando e organizando o Golpe de Estado, em 11 de setembro de 1973, derrubando não somente Allende e seu governo de conciliação de classes, mas milhares de lutadores sociais que deram suas vidas por um projeto socialista para o Chile. Ante o exposto, a ditadura militar varreu todas as conquistas prévias do povo trabalhador (somado aos assassinatos, torturas, desaparecimentos), com uma onda de privatizações de empresas públicas, flexibilização trabalhista, liberalização do mercado, privilegiando as exportações em detrimento das importações, quebra de empresas estatais(18% de desemprego), incluindo a mineração: pagando indenizações às empresas dos EUA, iniciando a desnacionalização da grande e pequena mineração, onde a CODELCO (atualmente)- Corporação Nacional do Cobre -com os governos da pós-ditadura passa a controlar cerca de 30% da produção de cobre frente aos 70% de controle pelas empresas estrangeiras.
Finalmente, com a queda da ditadura e a chegada dos governos da Ex Concertación, esta situação só piorou, os partidos da “esquerda” institucional (PS, DC, PPD, PR) e por fora o PC sendo cúmplices dos pactos privatizadores, continuaram aprofundando a dependência ao imperialismo em matéria mineira e as privatizações desses lucros aos bolsos da burguesia nacional (privatização da SQM-Sociedade Química e Mineira do Chile- ao ex -genro de Pinochet, Julio Ponce Lerou), onde a estatal COLDELCO só conta com 35 % do controle produtivo na mineração nacional, enquanto que empresas estrangeiras como a Mineira Escondida (propriedade da BHP BILLITON) entre outras, controlam 65% do minério, continuando com o saque transnacional dos bens naturais.
Por último, depois de 30 anos de democracia restrita, quatro governos neoliberais “socialdemocratas” e dois governos de direita, chegou ao poder a coligação de Apruebo-Dignidad (AD), com um discurso reformista “antineoliberal”, procuraram capitalizar as demandas sociais que o povo chileno impôs nas ruas em 18 de outubro de 2019, sob a estratégia de conciliação de classes frente ao capital estrangeiro que domina as riquezas nacionais. O qual se pode ver nos chamados ao “investimento estrangeiro” no marco da suposta criação da Empresa Nacional do Lítio, onde novamente o imperialismo norte-americano quer apoderar-se das riquezas nacionais, embora existam outros atores, como capitais chineses, canadenses, alemães, etc.
Para concluir, tal como se pode ver ao longo deste artigo, o saque dos nossos bens naturais não é desde o presente, mas tem uma longa trajetória, dado que, passando pelo império espanhol, a Coroa britânica e os Estados Unidos, historicamente o imperialismo em seu afã dinamizador do mercado mundial, viu este território como um lugar de conquista, tanto de um ponto de vista militar, como geopolítico, expressado fundamentalmente no controle da mineração como uma mola de acumulação para a alta burguesia internacional e com isso a subordinação dos povos oprimidos. Ante o exposto, para emendar a histórica dependência do país e a opressão da classe trabalhadora, é necessária uma transformação substancial das relações de produção, onde a matriz de desenvolvimento esteja sob a direção da classe trabalhadora em conjunto com as comunidades locais, para assim poder desenvolver um projeto industrial nacional, aproveitando as novas tecnologias, respeitando a reprodução da vida operária e popular.
Referências:
- América Latina e Caribe como reservas estratégicas de minerais, Gian Carlo Delgado Ramos.
- Interpretação Marxista da história do Chile – Luis Vítale.
- História econômica do Chile desde a Independência – Manuel Llorca-Jaña, Rory Miller.
Publicado em http://vozdelostrabajadores.cl 26 de setembro de 2023
Tradução: Lílian Enck