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Peru

A esquerda (bamba) e o Congresso

novembro 26, 2023

Fracassada, sem pena nem glória, a moção de vacância por incapacidade moral permanente apresentada contra Dina Boluarte pelas bancadas que se autodenominam de esquerda no Congresso (Juntos por el Perú-Cambio democrático e inclusive Perú Libre), a absoluta impotência destes grupos parlamentares na luta contra o governo ficou bastante evidente.

Por: Víctor Montes

Mais ainda, sua atuação mostra a mais absoluta desconexão com as organizações operárias e populares, às quais impõem sua estratégica e tentam subordinar permanentemente.

Por isso, vale a pena voltar a perguntar: que papel desempenham estes grupos políticos, que dizem representar o povo no Congresso, na luta contra o governo assassino de Boluarte? Qual deve ser o papel de uma verdadeira representação parlamentar dos trabalhadores e trabalhadoras, e do povo?

Outra vez sobre o parlamento

O Congresso da República, o parlamento, é uma das instituições que compõem o Estado peruano. Um Estado que, desde sua origem, representa e defende os interesses das classes dominantes, racistas e discriminadoras, absolutamente submetidas ao poder das potências imperialistas (primeiro Inglaterra e depois Estados Unidos), das quais recebem as migalhas do festim que significa o saque de nossas riquezas. E com essas migalhas, fizeram sua fortuna.

Em todo o mundo, os Estados representam os interesses e o poder da classe que vive da exploração do trabalho alheio: a classe dos capitalistas, a burguesia, dona dos bancos, minas, fábricas, poços petroleiros e todas as grandes empresas que existem no mundo. E esse Estado está desenhado para resguardar esse poder pela força das suas leis e das balas.

Nesse marco, o Congresso é o cenário onde se desenvolve a mais triste das pantomimas: enquanto a burguesia e o imperialismo têm os votos assegurados para aprovar todas as normas que desejarem, fazem o povo acreditar que também faz parte da tomada de decisões. Para isso, precisa da existência de alguma representação parlamentar “popular”, que por algum poder misterioso, poderá ‘convencer’ os demais partidos a aprovação de medidas ‘favoráveis’ à classe trabalhadora e ao povo pobre.

No entanto, a história demonstrou mais de uma vez que isto não é possível. O exemplo mais recente tivemos no país irmão o Chile, onde a poderosa explosão iniciada em outubro de 2019, uma poderosa revolução contra 30 anos de neoliberalismo, saque e desigualdade crescente, impôs, pela via da mobilização, a convocação de uma Convenção Constitucional (Assembleia Constituinte).

A eleição a tal organismo, uma justa demanda do povo trabalhador chileno que expressava seu desejo de derrubar a ordem econômica e social, legado pela ditadura de Pinochet, deu uma nítida maioria aos partidos ‘de esquerda’ e grupos independentes nascidos da explosão popular.

No entanto, a burguesia soube manter o controle da situação através do acordo adotado por esses partidos da ‘democracia’ chilena, desde os direitistas Renovación Nacional e a UDI, até o ‘esquerdista’ Partido Comunista e a Frente Ampla, de só aprovar aqueles artigos que obtivessem os 2/3 da votação da Convenção. Assim, asseguraram que a maioria independente não tivesse opção de mudar nada por si própria.

Isto, porque na chamada ‘democracia’ (na realidade democracia burguesa, dos ricos) o verdadeiro poder vem daqueles que têm dinheiro. Eles, a burguesia, consagraram na Constituição seu direito de explorar e enriquecer-se com nossos recursos naturais, com nosso trabalho. E do seu ponto de vista, nenhuma instituição pode sequer tentar arrebatar-lhes esse direito. Nem sequer as da própria ‘democracia’.

O Congresso ante o levante do sul

O outro exemplo nítido, e ainda mais próximo, que evidencia a incapacidade das representações ‘de esquerda’ no Congresso, é seu desempenho diante do levante dos povos do sul, durante os primeiros meses de 2023.

A luta heroica e revolucionária do Sul, colocou sobre a mesa a possível queda de Boluarte e de todo o Congresso, e a convocação imediata a eleições gerais.

Nesse marco, enquanto os povos do sul e os demais setores que saíram a lutar contra o governo (mineiros artesanais em Arequipa, trabalhadores da agroindústria em Ica e La Libertad, por exemplo) exigiam sua queda imediata junto com a do Congresso, os partidos do regime, incluídos aqueles que se dizem ‘de esquerda’, negociaram os votos para o “adiantamento das eleições”. Como se fosse possível esquecer os massacres de Ayacucho (14 e 15 de dezembro de 2022) e Juliaca (9 de janeiro de 2023), defendidos e aplaudidos pela maioria do Congresso. O resultado: Boluarte, com 70 mortos em cima, 49 deles por execuções extrajudiciais, enfrentou a onda de lutas e se manteve no poder.

Ato contínuo, essa ‘esquerda’ se entregou à convivência com Boluarte e seus aliados no Congresso. Finalmente, esta política se traduziu em um conjunto de cálculos eleitorais que levaram estes parlamentares a votar em diversos blocos segundo seus interesses de grupo, sempre colocando em segundo plano a ação direta da classe trabalhadora e do povo. A mostra mais palpável – e rasteira – desta convivência é o acordo de Perú Libre com o fujimorismo e Avanza País, para formar a mesa diretora do Congresso.

Estes grupos parlamentares são adictos ao jogo eleitoral que identificam com democracia. E, de fato, abandonaram completamente a necessidade de promover e fortalecer a mobilização unitária e nacional contra o governo retomando os métodos do Sul que tinham um caráter insurrecional e revolucionário. E mais de fundo, há muito que descartaram a concepção classista (marxista) de Estado, que justamente sustenta que este é um instrumento que usa a violência para garantir a dominação da burguesia sobre a classe trabalhadora e o povo. E que, portanto, suas instituições, seja o parlamento, a presidência ou o poder judicial, estão sempre a serviço de resguardar essa ordem.

É possível para a classe trabalhadora e o povo usar o parlamento?

Ao abandonar a concepção marxista do Estado, estes partidos e grupos renunciaram a toda possibilidade de serem um instrumento útil para a luta operária e popular, não só contra o governo assassino de Dina Boluarte, mas em geral.

Isto, mais além das boas intenções que qualquer pessoa individual possa ter. Prova máxima disto é o triste final de Isabel Cortés, outrora dirigente do Sitobur, querida e apoiada pela vanguarda sindical, que hoje se revelou como partidária da lógica do ‘vale-tudo’ político, sem princípios, inclusive aceitando com sorriso no rosto o reconhecimento da assassina Boluarte, para, assegura “Chabelita”, ‘levar a voz dos trabalhadores’.

Que atitude devemos assumir então os trabalhadores e o povo sua vanguarda consciente frente ao parlamento? A de que não existe nenhuma forma de entrar no terreno eleitoral a partir de uma postura classista e revolucionária?

Diferente de tudo o que dizem os atuais ‘esquerdistas’, ‘progressistas’ e supostos democratas que se autodenominam ‘de esquerda’ no Congresso (na realidade uma esquerda bamba), uma representação parlamentar operária e popular genuína, deve no mínimo usar o autofalante que o Congresso lhe proporciona permanentemente com dois propósitos:

O primeiro, desmascarar a falsidade da democracia burguesa, fazendo todo o possível para que o povo trabalhador veja que não há nada de bom a obter do Congresso nem de nenhuma eleição.

O segundo, subordinar toda ação parlamentar ao impulso e fortalecimento da ação direta das organizações operárias e populares. À sua mobilização crescente e cada vez mais organizada e consciente.

Isto foi o que fez, recentemente, nossa companheira María Rivera, do Movimento Internacional dos Trabalhadores (MIT) no Chile, durante o funcionamento da Constituinte, chamando o povo pobre do Chile a não abandonar a mobilização, exigindo que se rompa o pacto dos ⅔, ou propondo a nacionalização de toda a mineração chilena e a expropriação da riqueza das 7 famílias mais ricas do Chile. Também, em fins dos 70’s, o fizeram Hugo Blanco, Magda Benavides e Ricardo Napurí, na Assembleia Constituinte de 1978.

Mas para consegui-lo é fundamental que qualquer representação ‘de esquerda’, que se denomine de revolucionária, no parlamento, atue como braço de um partido operário, marxista, que integre as vontades individuais em uma ação consciente e organizada, para neutralizar a ação corrosiva da democracia burguesa, cheia de lobbies e oferecimentos que tendem a corromper aqueles que chegam a essas instâncias de poder.

Só assim, qualquer representação parlamentar que expresse genuinamente os interesses do povo trabalhador, poderá desmascarar a podre democracia dos ricos e promover e fortalecer a luta direta das organizações operárias e populares.

A atual ‘esquerda’ no Congresso não faz nada disso. Por isso, seu triste papel, se resume na convivência com um governo assassino, que chamam de ditadura, mas com o qual dividem comissões, mesas diretoras e votações. Negociam e “arremetem” só quando a situação lhes convém. Essa mal chamada ‘esquerda’, essa esquerda bamba, só merece o repúdio das organizações do povo trabalhador, cuja vanguarda deve avançar na construção de seu próprio partido de classe: um partido revolucionário que retome as bases do marxismo para guiar sua atuação, dentro e fora do parlamento, sempre ligado e promovendo a luta direta do povo com uma estratégia revolucionária.

Tradução: Lílian Enck

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