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sexta-feira, julho 26, 2024

Sobre os atentados do Hamas contra civis israelenses: Nesta guerra, “temos lado”

A atual situação na fronteira da Faixa de Gaza e Israel gerou múltiplos posicionamentos em todo o mundo. Não é surpreendente que os governos dos países imperialistas e de muitos de seus lacaios nacionais apoiem Israel “contra o terrorismo de Hamas”. Sim, é muito preocupante que alguns setores que se reivindicam “de esquerda” e que apoiam a causa palestina, tenham colocado um sinal de igual entre ambas as partes do conflito. Uma posição que, além de ser equivocada, favorece explicitamente o ocupante israelense.

Por: Alejandro Iturbe

É o caso de Guilherme Boulos, deputado e principal figura pública do PSOL, do Brasil. Em uma entrevista recente, Boulos declarou que “sua defesa dos direitos do povo palestino é pública”. Entretanto, “agora, condeno, sem meias palavras, ataques violentos a civis, como os que mataram, nas últimas horas 250 israelenses e 232 palestinos. Deixo minha solidariedade às vítimas e seus familiares”[1].

O primeiro erro conceitual de Boulos é “esquecer” a origem deste conflito e, baseado nisso, colocar um sinal de igual entre o povo palestino e a população israelense. Em 1948, Israel foi fundado a partir da expulsão com métodos violentíssimos, por parte do sionismo, de centenas de milhares de palestinos de suas terras e do roubo da maior parte do território histórico da Palestina. Nele, com apoio do imperialismo estadunidense, da ONU e da burocracia estalinista, foi instalada uma população judia transferida (uma população de “ocupantes”) que se beneficia dessa situação e, por isso, em sua imensa maioria a defende e a apoia. Desde 1948, Israel foi aumentando seu domínio e a apropriação de territórios palestinos que também são ocupados por imigrantes judeus[2].

Existem, evidentemente, algumas exceções a este apoio sólido e massivo da população israelense a esta situação. É o caso do professor e historiador Ilán Pappé, autor de numerosos livros contra esta que, por isso, foi despedido de seu trabalho na Universidade de Haifa e obrigado a exilar-se na Grã Bretanha. Mas trata-se de casos

 individuais: a maioria da população judia de Israel apoia e defende a “guerra contra os palestinos” e suas ações, e ao governo de Benjamin Netanyahu que a leva adiante atualmente. É a consequência política de seu caráter de “população ocupante e usurpadora” que é consciente de que seus privilégios provêm disso.

Recentemente, antes dos últimos fatos, houve mobilizações de setores da população judia israelense contra o governo de Netanyahu, com críticas a sua política em relação aos palestinos. Por diversas razões, estes setores querem uma política de “paz e negociação”[3] .Mas essas “aspirações” partem da base da situação territorial atual: ou seja, de manter o roubo e a usurpação que significou a criação do Estado de Israel e que, desde 1948, foi aumentando.

O povo palestino, por seu lado, sofreu a expulsão violenta de suas terras e parte importante teve que partir para o exílio forçado. Os palestinos que permaneceram no território histórico ficaram divididos em três setores. Aproximadamente, 1,5 milhão vivem no atual território israelense como “cidadãos de segunda”. Mais de três milhões vivem na Cisjordânia, sob condições de ocupação e controle do exército israelense (com o apoio colaboracionista da Autoridade Nacional Palestina) e permanentemente agredidos pelos colonos judeus de origem russa, que os expulsou de seus bairros em Jerusalém e lhes tiram cada vez mais terras de uso agrícola. Mais de dois milhões vivem aglomerados e virtualmente reclusos na estreita Faixa de Gaza, em condições cada vez mais difíceis devido aos permanentes ataques israelenses que destroem hospitais e serviços públicos. Não por acaso este território tem sido qualificado como “o maior campo de concentração do mundo”[4].

“Temos lado”

Diferente do “esquecimento” de Boulos, frente a um conflito que se expressa militarmente, devemos nos fazer uma pergunta muito simples: quem é o opressor/agressor e quem é o oprimido/agredido? Tem que dar completamente as costas à realidade para não ver que neste conflito, o opressor/agressor é o Estado de Israel e a população judia que usufrui dessa situação e que o oprimido/agredido é o povo palestino que sofre essa realidade há décadas.

A partir da resposta a esta pergunta, nós socialistas “temos lado” nesta luta: o do povo palestino contra Israel e sua população ocupante. Ou, para dizê-lo com palavras de Lenin: “temos pátria”, no que ele chamava “guerras justas” dos oprimidos contra os opressores[5].

Lenin era totalmente consciente de que “toda guerra acarreta, inevitavelmente, horrores, ferocidades, calamidades e sofrimentos”. Nesse marco, considerava que havia guerras que tinham um “caráter legítimo, progressista e justo da ‘defensa da pátria’ ou de uma ‘guerra defensiva’”. Para ele, este caráter “justo” era “independente de quem atacasse primeiro”.

O aspecto central era a definição dos lados no conflito. A partir daí, “nós socialistas temos pátria”: a “dos oprimidos e menosprezados em seus direitos” contra os “opressores, escravistas e espoliadores”. Só a partir desta definição básica, podemos considerar outras questões tais como o caráter da direção da “guerra justa” e suas ações nela.

Embora diga “defender a causa palestina”, nesta luta Boulos escolheu “não ter pátria”: opressor e oprimido são iguais, e as ações de cada lado na guerra devem ser avaliadas com o mesmo parâmetro. Na realidade, Boulos segue como uma sombra a posição do governo burguês de Lula-Alckmin, no Brasil, ao qual apoia incondicionalmente[6].

Uma luta desigual

No marco de “esquecer” o caráter básico do conflito entre Israel e os palestinos, Boulos omite outra questão fundamental; o caráter totalmente desigual das forças em luta. Israel possui um dos exércitos mais poderosos do mundo, com moderníssimo armamento e tecnologia, além de receber o apoio incondicional do imperialismo estadunidense (a cujo serviço atua) e a cumplicidade de muitos outros governos no mundo (como é o caso do governo brasileiro). Os palestinos, com vontade e heroísmo, lutam e resistem do jeito que podem: às vezes, só com pedras contra tanques (como nas Intifadas), outras, com atentados realizados com materiais de fabricação caseira.

Por isso, só se refere aos últimos fatos e não diz uma palavra de que, como resposta aos recentes atentados realizados pelo Hamas, além dos bombardeios, o governo israelense monta um “cerco total” à Faixa de Gaza para deixar sua população “sem água, eletricidade e comida”[7]. É a mesma tática que os nazistas usaram frente ao levante da população judia cercada no Gueto de Varsóvia, em 1943, antes de entrar para arrasá-lo.

O governo israelense prepara algo semelhante: já convocou 300.000 reservistas (que se somam aos 173.000 soldados em serviço ativo), como passo prévio de uma operação militar de grande escala para invadir a Faixa de Gaza, massacrar sua população, e tomar controle militar absoluto deste território[8]. Com a soberba do opressor que se sente forte, Netanyahu declarou: “Estamos em guerra e vamos ganhar. Nosso inimigo pagará um preço que nunca conheceu”.

Inclusive antes destes últimos fatos, a desigualdade nesta luta se expressava nas vítimas de cada lado. Em 2021, um trabalho do site statista (The Human Cost of the Israeli-palestinian conflict”), baseado em dados da ONU, informava sobre os mortos e feridos de cada lado. A conclusão é que houve 5.590 vítimas fatais palestinas e 251 israelenses entre 2008 e 2020[9].

 Um argumento que se reitera 

Boulos “condenou os ataques violentos a civis [israelenses]realizados pelo Hamas. Apela para um argumento que o imperialismo e os opressores usam (que realizam esses ataques permanentemente e em muito maior medida contra povos oprimidos) quando uma força de resistência se vê obrigada a realizar esse tipo de ações. Vejamos o exemplo da guerra pela independência da Argélia.

A Argélia é um país árabe do Norte da África. No século XIX foi colonizado pelos franceses. A partir do século XX, milhares de colonizadores franceses se transferiram para a Argélia para explorar plantações nas planícies costeiras e viver nos melhores bairros das cidades argelinas, beneficiando-se com o confisco de terras e propriedades dos argelinos, que os governos franceses realizaram. Estes colonos europeus eram chamados pieds-noirs (pés negros). Continuavam sendo cidadãos franceses, direito que era negado aos argelinos, que viviam cada vez pior. Os pied-noirs eram totalmente conscientes de qual era a base sobre a qual se assentavam seus privilégios e defendiam a fundo a situação colonial. Uma situação que tem muita semelhança com a que ocorre na Palestina ocupada.

Em 1954, foi formada a FLNA (Frente para a Libertação Nacional da Argélia) e seu braço militar, o ELN (Exército de Libertação Nacional), que iniciaram a luta pela independência. A França respondeu enviando 500.000 soldados que, além disso, contavam com aviação e paraquedistas. Com a ajuda dos bandos armados dos pied noirs, bombardeavam aldeias argelinas e depois entravam para deter, torturar ou assassinar seus habitantes.

Os rebeldes tentavam compensar esta desigualdade com moral combativa e ações guerrilheiras e atentados surpresa. Entre 1957 e 1958, a FLNA e o ELN lançam a chamada Batalha de Argel, uma ofensiva de ataques e atentados a alvos militares e civis franceses (inclusive cafés, lojas e escolas), em uma tentativa de enfraquecer o moral dos colonos e avançar no controle de algumas regiões da capital do país.

Ante esses atentados, o imperialismo francês lançou uma campanha internacional (que a grande mídia ecoou) acusando a FLNA-ELN de “terrorismo cruel”. É o mesmo argumento que hoje usam os criminosos sionistas, o imperialismo e seus agentes. A resposta de Ahmed Ben Bella (principal dirigente da FLNA) ante essas acusações foi a seguinte: expressou que se lhes dessem a mesma quantidade de aviões e armas que as forças francesas tinham, sua organização se comprometia a deixar de fazer atentados contra civis.

Da nossa parte, reivindicamos um conceito exposto pelo fundador da LIT-QI, Nahuel Moreno, em 1985, ao analisar o “terrorismo” palestino (ou seja, as ações contra a população civil israelense): “O essencial para nós é que esse terrorismo é produto do desespero dos jovens palestinos que vivem em condições semelhantes às dos campos de concentração nazis”[10].

Algumas considerações finais

Abordamos o debate sobre as ações do Hamas a partir da caracterização básica do chamado conflito palestino-israelense e sua raiz (a criação de Israel em 1948). Desde sua fundação (1982) a LIT-QI sempre teve uma posição muito explícita nesta luta: apoio à luta do povo palestino contra Israel. Era a continuação das elaborações da corrente morenista (e da maioria do trotskismo da época) desde a própria criação do Estado de Israel e das guerras que se sucederam em países árabes[11]

Este apoio se materializou na consigna “Por uma Palestina, Laica e Não Racista” que era o eixo central do programa fundacional da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) em 1964, e que a OLP começava a abandonar para “enterrá-la” definitivamente com os acordos de Oslo, em 1993[12].  Este objetivo está no “coração e mentes” do povo palestino, agora sob a forma de “Por uma Palestina Livre do rio [Jordão] ao mar [Mediterrâneo]. É a consigna pela qual luta o povo palestino. Mas isto também o leva a enfrentar-se com os dirigentes traidores da OLP e com os povos dos países árabes e os governos e regimes desses países que também a abandonaram e assinaram a “paz” com Israel, reconhecendo-o como “Estado legítimo”[13]

Consideramos que este objetivo só poderá ser alcançado a partir da derrota e destruição do Estado de Israel, cuja criação é a raiz do conflito palestino-israelense há décadas. A partir desta compreensão, temos debatido fortemente com muitos setores da esquerda que propõem a chamada solução dos “dois Estados” (um judeu e outro palestino) coexistindo lado a lado. Esta proposta é, na realidade, uma adaptação do critério usado pela ONU e pelo imperialismo para criar Israel, em 1948[14].

Ao mesmo tempo, com uma análise marxista dos processos políticos e sociais, afirmamos que não existe nenhuma possibilidade de transformar Israel e sua população judaica de ocupantes e usurpadores em “outra coisa” por um “caminho pacífico” e de “convencimento”. A razão é muito profunda: nunca os opressores e usurpadores entregarão seus privilégios “por bem”. Só o farão depois de uma duríssima luta, dos explorados e oprimidos, que os derrote. Aqueles que, da esquerda, propõem este “caminho pacífico” não fazem mais do que repetir o “pacifismo burguês” que Lenin criticou duramente.

Por isso, reivindicamos seu critério (tomado do velho general alemão Carl von Clausewitz) de que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Toda luta dos oprimidos contra os opressores que se desenvolva leva, quase inevitavelmente, a uma guerra contra eles. E toda guerra, inclusive as “guerras justas” implica no uso de métodos cruéis. Mais ainda se são travadas em grande desigualdade de forças. Por isso, não “condenamos” as ações do Hamas. Consideramos que são ações totalmente válidas de uma guerra de resistência e libertação nacional, que golpeiam e ajudam a desmoralizar o inimigo, no caminho para derrotá-lo.

Excede o objetivo deste artigo, realizar uma caracterização do Hamas e das diferenças que a LIT-QI tem com esta organização. O essencial é que enquanto nossa proposta é “Palestina Laica, Democrática e não Racista”, Hamas propõe o objetivo de um Estado Palestino Islâmico, semelhante ao que existe no Irã dos ayatolás. Temos desenvolvido este debate em várias ocasiões.

Entretanto, o importante para nossa posição hoje é que sua proposta programática implica também a destruição do Estado de Israel. Ao mesmo tempo, mais além de algumas tentativas de ser “reconhecida” para entrar na negociação dos “dois Estados”, mantém sua luta contra Israel. Por outro lado, seu governo na Faixa de Gaza também mantém este território (embora com um critério de “ditadura islâmica”) como o único território palestino não controlado por Israel, à diferença da Cisjordânia, que já é de fato uma possessão colonial com a colaboração da ANP.

Por isso, Israel quer submeter e arrasar Gaza através de bombardeios e bloqueios. E o faz inclusive com a colaboração de governos de países árabes como o egípcio[15]. Seu ataque ao Hamas é parte deste objetivo. Em 2007, este site publicou um artigo que analisava: “Hamas está sendo perseguido pelo imperialismo, a serviço do Estado de Israel e sua política genocida, não por ser ‘terrorista’, como eles dizem, nem por ser uma direção fundamentalista religiosa. O problema reside em que mantém em seu programa o chamado à destruição de Israel e sua denúncia dos Acordos de Oslo …]”[16].

Uma análise que mantém toda sua validade hoje. Por isso, aqueles que se reivindicam de esquerda e criticam as ações do Hamas em sua luta contra Israel não fazem mais do que favorecer o Estado sionista e o imperialismo que o apoia.

As tarefas imediatas para os socialistas são muito evidentes: apoio incondicional ao povo palestino e sua luta contra Israel e defesa da Faixa de Gaza frente ao ataque genocida que Israel prepara. Tudo que vá contra essas tarefas joga a favor do inimigo.


[1] https://www.metropoles.com/sao-paulo/boulos-nao-condena-hamas-e-ex-secretario-deixa-sua-pre-campanha (original en português, tradução nossa)

[2] Ver, entre otros artículos publicados en este site: https://litci.org/pt/2023/05/22/nakba-os-jovens-nao-esqueceram/

[3] Ver https://litci.org/pt/2023/08/02/manifestacoes-em-israel-contra-a-reforma-judicial-de-netanyahu/

[4] https://www.eldesconcierto.cl/cartas/2018/04/06/el-estado-de-israel-tiene-en-la-franja-de-gaza-el-campo-de-concentracion-mas-grande-del-mundo.html

[5] Ver V. I. Lenin (1915): El socialismo y la guerra. (marxists.org)

[6] Lula pide intervención internacional en conflicto palestino-israelí – Prensa Latina (prensa-latina.cu)

[7] Israel anuncia “cerco total”: sem água, eletricidade ou comida para Gaza – Revista Fórum (revistaforum.com.br)

[8] Em preparação para invasão de Gaza, Israel convoca 300 mil reservistas e orienta palestinos a saírem de casa | Mundo | G1 (globo.com)

[9] https://www.statista.com/chart/16516/israeli-palestinian-casualties-by-in-gaza-and-the-west-bank/

[10] Extraído de Nahuel Moreno: Conversaciones con Nahuel Moreno (morenopmi.blogspot.com)

[11] Ver, por exemplo, N. Moreno (1982): Polemica sobre Medio Oriente. (marxists.org)

[12] https://litci.org/pt/2022/09/17/oslo-a-paz-dos-cemiterios-para-a-continua-nakba/

[13] Neste sentido, ver: https://litci.org/pt/2022/12/08/a-lit-qi-a-questao-palestina-e-as-revolucoes-arabes/

[14] https://litci.org/pt/2023/07/10/palestina-sobre-a-falsa-solucao-dos-dois-estados/

[15] https://litci.org/pt/2009/09/07/egito-articula-uma-negociacao-para-que-o-hamas-retroceda/

[16] Salio el periodico Al Baian Socialista – Liga Internacional de los Trabajadores (litci.org)

Tradução: Lílian Enck

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