Venezuela: Um programa para o processo de lutas operárias em curso no país

A dinâmica de refluxo das lutas operárias no país começou a mostrar sinais de mudança desde 2018, a Venezuela, durante os anos 2019-2022, aparecia como nota dissonante no concerto da luta de classes no continente, marcado por ascensos de lutas em países como Chile, Colômbia, Equador, Peru, Paraguai, Panamá e inclusive Cuba. Apesar disto, alguns elementos e setores da vanguarda mantinham alguma pequena resistência nas ruas, mas estas lutas retrocediam, se dispersavam e se atomizavam rapidamente.
Por: Unidade Socialista dos Trabalhadores – UST Venezuela
As lutas de 2018 contra a oficialização da aplicação do pacote de ajuste de Maduro, contra as tabelas de fome, a desvalorização e o memorando2792. As lutas trabalhistas, por serviços e liberdades democráticas de 2019, as mobilizações de aposentados, do setor de saúde e outros setores durante 2020 e 2021, eram controladas e isoladas rapidamente. Não obstante mostravam que a raiva contra o governo aumentava a ruptura do movimento operário e dos setores operários com o chavismo e que a disposição de luta crescia. Assim, com avanços, retrocessos e com mudanças nos setores que lideravam as lutas, a classe operária venezuelana começava a se recompor.
A onda de lutas iniciada pelo setor de professores durante o mês de agosto de 2022, exigindo o pagamento integral do abono de férias e sua reedição durante todo o primeiro semestre de 2023, desta vez por exigências salariais, entre outras, mostraram o caminho para o início de um importante processo de mobilizações e manifestação operárias, em que professor@s e trabalhador@s da educação foram a indiscutível vanguarda. Mas depois se estendeu para outros setores de trabalhadores da administração pública nacional, de empresas estatais como SIDOR-Siderúrgica de Orinoco C.A. e, em menor medida, para outras empresas básicas de Guayana e PDVSA- Petróleo da Venezuela S.A. fazendo com que a Venezuela entrasse oficialmente na dinâmica de ascenso de lutas continental acelerando, assim, a crise interburguesa internamente.
A partir daí, a burguesia, tanto a chamada boliburguesia, como a tradicional, representada politicamente em sua maioria pela oposição burguesa (embora também tenha representação no oficialismo), com o apoio do reformismo, adiantou o debate eleitoral, aumentou sua ofensiva para tentar nos demonstrar que estamos frente a uma encruzilhada. Maduro ou María Corina Machado (MCM) nos dizem. Tentam desviar o curso das lutas para o debate e a saída eleitoral, pretendendo nos mostrar que as eleições seriam a solução para todas nossas calamidades.
Enquanto isso, a fome, os altos preços dos alimentos, remédios, aluguéis e serviços; o desastre dos serviços públicos e todas as penúrias que assolam a classe trabalhadora e os habitantes dos setores populares continuam seu curso.
As eleições não são a saída
Os setores burgueses representados na oposição patronal, assim como seus representantes sindicais, dentro do movimento dos trabalhadores, pretendem nos convencer de que toda saída para a crise passa pelas eleições, por uma mudança de governo, sem mudar o caráter capitalista do país, reduzem isto à máxima “sair de Maduro seja como for”. O que não é mais do que uma chantagem para chamar a classe trabalhadora para apoiar qualquer candidatura burguesa (majoritariamente a de MCM – Movimento Cívico Militante), independentemente do conteúdo antioperário e antipopular de seu programa econômico e sua política. Além disso, argumentam uma possível ampliação de garantias e liberdades democráticas.
A burguesia oficialista e seus burocratas sindicais da Central Bolivariana Socialista de Trabalhadores (CBST), querem nos convencer de que as sanções são as culpadas por tudo, que agora sim Maduro e o oficialismo solucionaram os problemas, por isso devemos votar neles, “para continuar construindo o socialismo”, “derrotar o imperialismo”, suas sanções e agora sim “alcançar o bem estar para os venezuelanos”. Nada mais falso.
A verdade é que as eleições não são garantia nem saída para nada. Em primeiro lugar, sob a ditadura de Maduro não temos inclusive garantias de que estas eleições serão levadas a cabo, ou se as mesmas forem realizadas, não temos nenhuma garantia de que serão livres, ou seja, com possibilidades reais de vitória para alguma opção opositora.
Além disso, seguindo o cronograma eleitoral legal, as eleições presidenciais, que tentam nos apresentar como solução para todos nossos males, deveriam ser realizadas no segundo semestre de 2024 (possivelmente em dezembro) ou inclusive se o governo, em algum tipo de manobra fraudulenta, através do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), os convocar antecipadamente, as mesmas seriam, de qualquer forma, no ano que vem, enquanto que a fome e as penúrias que nós trabalhadores venezuelanos padecemos, suportamos agora, de forma cada vez mais profunda.
Portanto, consideramos que não devemos condicionar nossas alternativas de saída para a crise a um processo eleitoral, que independentemente de quem vencer, não são garantia de nenhuma solução à crise, favorável aos trabalhadores. Pelo contrário, nossa prioridade deve ser, continuar organizando as lutas e continuar mobilizados para exigir nossas reivindicações. As direções sindicais e políticas que dizem fazer parte da classe trabalhadora, não podem subordinar a luta ao coro eleitoral burguês. A experiência de 2019, quando a direção da Intersetorial de Trabalhadores da Venezuela (ITV), abandonou a luta para ir atrás do fenômeno Guaidó e seu chamado “governo interino”, nos mostra que é um erro que não se deve voltar a cometer.
A fome não espera. Salário igual ao da cesta básica
Nós trabalhadores venezuelanos continuamos sofrendo muitas penúrias, maus serviços, deterioração das condições de vida e principalmente fome. Estes males não podem esperar até as eleições presidenciais para serem solucionados, precisamos ir à luta já.
A desvalorização incessante e cada vez mais acelerada [1], coloca o salário mínimo em apenas 3,8 $ por mês. Os números do Observatório Venezuelano de Finanças (OVF), indicam uma inflação durante o mês de agosto de 13,6%, o que representa o maior aumento de preços durante um mês até agora no corrente ano, enquanto que a inflação anual e acumulada a situam em 422% e 144,6% respectivamente. O que demonstra que o país está entrando em um processo de aceleração muito acentuada de aumento dos preços.
Os dados do Centro de Documentação e Análise da Federação Venezuelana de Professores (CENDAS – FVM), revelam que no final do mês de julho de 2023 a cesta básica familiar atingiu 502,27$. Isto significa que somados o salário (3,8$) com uma cesta ticket de 40$ e o bônus de guerra econômica de 30$[2], totalizam uma renda mínima mensal de 73.8$ que cobre apenas 14,6% da cesta básica. A relação é pior quando se levarem conta a cesta básica – alimentação, vestuário, aluguel, serviços, medicamentos-, que o mesmo organismo calcula como o dobro da cesta básica familiar (1004.54)[3].
É por isso que se antes, para nós trabalhadores venezuelanos, o dinheiro não era suficiente, hoje praticamente não podemos comprar nada. A carne, o frango, o óleo e outros itens estão inacessíveis e agora se soma o aumento das passagens do transporte público, uma situação que nos arrasta para a fome.
Devemos nos mobilizar para exigir um salário mínimo mensal igual à cesta básica do Cendas-Centro de Documentação e Análise para os Trabalhadores, indexado ao seu valor.
Pelo resgate dos acordos coletivos. Revogação do memorando 2792
Para agravar toda a situação salarial descrita, devemos destacar que os acordos coletivos no país, tanto no setor público como no privado são praticamente inexistentes, a maioria dos mesmos estão vencidos e os que se aplicam são feitos a depender da vontade dos patrões, ou seja, eles decidem quais benefícios contratuais pagam, quais não e como os pagam.
Tudo isto é consequência da aplicação, a partir de 2018, do memorando 2792, que significou a maior parte do conteúdo antioperário e antissindical do programa de ajustes aplicado por Maduro contra os trabalhadores e os setores populares do país, em benefício da patronal pública e privada, em outubro daquele ano, batizado com o pomposo nomede “Programa de Recuperação, Crescimento e Prosperidade Econômica” (PRCPE). Exigimos respeito aos acordos coletivos, a imediata negociação dos acordos coletivos vencidos, a defesa do direito à sindicalização e do direito dos sindicatos à negociação coletiva e a imediata revogação do memorando 2792.
Defesa da liberdade sindical
Nós trabalhadores venezuelanos precisamos recuperar nossas organizações sindicais, a maioria delas sequestradas por burocracias pró-oficialistas ou opositoras, ambas pró-patronais, muitas delas com seus mandatos vencidos. Enquanto que muitas outras que mantêm independência do governo e da patronal pública ou privada, que estão dispostas a se mobilizar e de fato o vêm fazendo, se encontram isoladas, atomizadas e também em situação de ilegitimidade (mandatos vencidos) vítimas da ingerência governamental. Isto depois é usado pelo governo como uma desculpa a mais para negar-se a discutir os acordos coletivos e negar as pautas de reivindicações conflitivas.
É preciso nos mobilizar para exigir eleições sindicais. Que estas sejam realizadas em todos os sindicatos com mandatos vencidos (burocráticos ou combativos), conforme o estabelecido em seus estatutos e sem ingerência do Estado. Pelo resgate da autonomia sindical, eleições livres e independentes nos sindicatos, não à ingerência do CNE-Conselho Nacional Eleitoral, do MPPPST- Ministério do Poder Popular para o Processo Social do Trabalho e da patronal nas eleições sindicais, pela defesa dos direitos e garantias sindicais.
Abaixo o Instrutivo ONAPRE
O memorando 2792 e as chamadas tabelas da fome da administração pública, que fizeram parte do PRCPE, encontraram sua reedição em agosto de 2022 com a implementação do denominado Instrutivo ONAPRE (siglas do Gabinete Nacional de Orçamento). Nefasto instrumento que empurra para baixo os salários dos trabalhadores da administração pública, tirando o caráter sindical de várias bonificações e/ou primas (bônus de um salário, ndt.) dos trabalhadores dos organismos públicos e empresas do Estado, ou diretamente eliminando-as. O que faz com que os já baixos salários dos trabalhadores da administração pública nacional (APN), como também das administrações regionais e municipais se deteriorem cada vez mais, destruindo totalmente seu poder aquisitivo. Demandamos a eliminação imediata do Instrutivo ONAPRE.
Liberdade para os trabalhadores presos por protestar, contra a criminalização do protesto trabalhista e social
Mais de trezentos ativistas, lutadores sociais, dirigentes sindicais e inclusive trabalhadores de base sem cargo de representação (também dirigentes políticos), permanecem hoje detidos (nas prisões ou com casa ou cidade como cárcere) ou criminalizados por protestar em defesa de seus direitos trabalhistas e sociais. O que é uma nítida mostra do caráter altamente repressivo e coercitivo da ditadura de Maduro, dirigido principalmente a criminalizar o protesto trabalhista e social a fim de disciplinar os lutadores para desta forma facilitar a aplicação de seu pacote antioperário e antipopular em benefício tanto da boliburguesia como da burguesia tradicional (FEDECÁMARAS, CONSECOMERCIO, CONINDUSTRIA, POLAR, entre outros), nacional e estrangeira (Chevron, Eni, Repsol, empresas de telefonia e telecomunicações, entre outras).
Nesta política repressiva, até agora principalmente seletiva, o governo vem mostrando indícios de elevá-la de nível, passando a reprimir com força e de forma direta as manifestações operárias e populares, como vem demonstrando a repressão às mobilizações na SIDOR, as tentativas de repressão no 1° de maio em Caracas e ultimamente a dura repressão às etnias Yukpas no estado de Zulia e aos mineiros no bairro pobre de Yapacana no estado do Amazonas.
Outro elemento repugnante desta política, é a presença coercitiva de efetivos militares, majoritariamente da Guarda Nacional Bolivariana (GNB) e de agentes do Serviço Bolivariano de Inteligência (SEBIN) nas áreas produtivas e administrativas de empresas do Estado como PDVSA e as empresas básicas de Guayana, em atitude de intimidação contra os trabalhadores de tais empresas.
Por outro lado, as patronais estatais, ou seja, organismos públicos e empresas do Estado (SIDOR PDVSA, entre outras), aplicam seu próprio método de coerção e criminalização contra os trabalhadores que se atrevem a protestar para defender seus direitos. O que consiste em suspensões de salário e/ou de trabalho (demissões em muitos casos), chantagens através de ameaças de transferências ou deterioração das condições de trabalho, exclusão de pagamentos de primas ou bonificações pagadas só aos “trabalhadores disciplinados”, assim como de outros benefícios trabalhistas e sociais, e inclusive aposentadorias forçadas de dirigentes lutadores e ativistas.
Exigimos, a liberdade plena e imediata de todos os trabalhadores, dirigentes sindicais, sociais e políticos presos e criminalizados, por protestar, não à criminalização do protesto, contra a repressão das mobilizações e manifestações, fora as forças da GNB e do SEBIN-Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional- das empresas estatais, revogação da Lei contra o ódio. Basta de suspensões de salário e exclusões de benefícios trabalhistas contratuais ou extracontratuais, não às chantagens e ameaças contra os trabalhadores que protestam, não às aposentadorias forçadas de dirigentes e ativistas lutadores.
Por uma greve geral de 48 horas
É evidente que nenhum processo eleitoral vai nos garantir a conquista de tais reivindicações. Somente a mobilização independente e unitária da classe trabalhadora é capaz de fazer com que alcancemos as mesmas, por isso consideramos necessária a realização de uma Greve Geral Nacional de 48 horas construída democraticamente a partir das bases dos trabalhadores, através de suas discussões e assembleias, as organizações sindicais hoje em luta em todo o país devem propiciar os espaços de discussão para a preparação e convocação de tal ação de protesto nacional. Só assim será possível quebrar e derrotar a política pró-patronal, antioperária e antipopular do governo de Maduro, seus aliados da Federação dos empresários e o resto da patronal nacional e transnacional no país.
[1] Segundo o OVF, a desvalorização no mês de agosto foi de 8,3% no mercado paralelo e 10,5% na taxa de câmbio oficial do Banco Central de Venezuela (BCV).
[2] Estes dois últimos conceitos não têm incidência salarial.
[3] www.talcualdigital.com/www.cendas.org.ve
Tradução: Lílian Enck