Atualmente a Inteligência Artificial (IA) está em toda a mídia e é o centro de intensos debates. Quais são seus limites? Conseguirá substituir a inteligência humana? Qual será seu impacto sobre a produção de bens e serviços e, em geral, sobre a vida da sociedade?
Por: Alejandro Iturbe
Em primeiro lugar, a IA é um desenvolvimento do ramo tecnológico integrado pela computação, a informática, a telemática e a robótica. Em outras palavras, uma ferramenta criada pelo trabalho humano que permitiria poupar tempo, diminuir o esforço humano e melhorar seus resultados. Ou seja, como toda nova ferramenta útil poderia servir para melhorar a vida da Humanidade.
O grande problema é que essa ferramenta está nas mãos do capitalismo imperialista e suas grandes corporações. Um artigo de Jeferson Choma, recentemente publicado nesta página, assinala: “Hoje toda a pesquisa sobre Inteligência Artificial está nas mãos de algumas poucas empresas privadas, como Microsoft, Google, IBM, Amazon, Apple, Facebook, as chinesas Baidu e Alibaba e a indiana Infosys”[1].
O capitalismo é um sistema cujo objetivo não é satisfazer de forma cada vez mais eficiente as necessidades humanas, mas funciona fundamentado na obtenção e acumulação de lucro (cuja base é a mais-valia extraída na produção de novas riquezas). Então, como aconteceu nas últimas décadas no ramo tecnológico a que nos referimos, a IA é colocada a serviço desse lucro. Por isso, acaba sendo uma “arma” manejada contra os trabalhadores.
Entre outras coisas, pela ameaça de perda de postos de trabalho que implica. As novas tecnologias são usadas para criar desemprego e atacar as condições salariais, trabalhistas e contratuais da classe operária. “Estima-se que mais de 50 milhões de empregos diretos estão ameaçados nos Estados Unidos pela crescente robotização. No resto do mundo, a estimativa é que serão substituídos entre 400 e 750 milhões de postos de trabalho nos próximos dez anos”[2].
Isso significa que o capitalismo gerou uma profunda contradição: enquanto que “o desenvolvimento tecnológico atual já permitiria uma redução drástica da jornada de trabalho, uma liberação quase total do trabalho penoso e a inclusão no processo de produção de todas as pessoas desempregadas”[3], a realidade nos mostra uma deterioração constante das condições de vida da classe trabalhadora.
A realidade atual da classe trabalhadora
Vamos nos deter um pouco neste último ponto. Algumas previsões afirmam que caminhamos para a substituição total do trabalho humano pelas “máquinas”. Acreditamos que é uma visão impressionista e equivocada que não compreende a essência da dinâmica capitalista e seu funcionamento em torno da busca e acumulação do lucro.
Um lucro que está baseado na mais- valia extraída na produção de bens e serviços e gerada pela força de trabalho. O capitalismo pode diminuir o número de trabalhadores, mas nunca poderá eliminar totalmente o “trabalho vivo” porque não teria de onde extrair mais- valia.
É o que explica a dinâmica real do que acontece com a classe trabalhadora. Na produção industrial, ao mesmo tempo que diminui o número de trabalhadores necessários, instalou-se generalizadamente as jornadas de trabalho de 12 horas, que os trabalhadores acabam aceitando para obter um salário que cubra suas necessidades. Isso ocorre não apenas nas indústrias de trabalho intensivo, como alimentação ou têxtil, mas também nas indústrias de tecnologia de ponta. “Aqueles que não estão dispostos a aceitar turnos de 12 horas não deveriam entrar na indústria dos chips”, disse Mark Liu, CEO da empresa taiwanesa TSMC[4].
Atualmente, a classe operária deve trabalhar 12 horas diárias para receber um salário cujo valor real (poder aquisitivo) é equivalente ao que décadas atrás obtinha por uma jornada de 8 horas. É o que Marx chamaria de um brutal aumento da extração de mais-valia absoluta.
Ao mesmo tempo, em especial no setor de serviços, se generaliza cada vez mais, a precarização do emprego e as relações trabalhistas. A máxima expressão disso, é o que ocorre no setor de aplicativos de delivery e transporte, em que seus trabalhadores nem sequer são reconhecidos como tais, tratados como “prestadores de serviços” e obrigados a extensíssimas jornadas de trabalho para obter uma renda.
Finalmente, outro setor que ficou fora do processo de produção de bens e serviços sobrevive por conta própria (venda ambulante e de rua) ou com a coleta de resíduos destinados à reciclagem. Assistimos a uma fragmentação da classe trabalhadora e dos setores empobrecidos. Embora não seja o objetivo deste artigo, é necessário unificar esses fragmentos em suas lutas e reivindicações.
IA e a teoria do conhecimento
Outro artigo recentemente publicado nesta página, examina a IA do ponto de vista do marxismo e das elaborações de Marx, em dois aspectos[5]. O primeiro é o da teoria do valor-trabalho, a produção de mais-valia, a composição orgânica do capital e a lei da queda tendencial da taxa de lucro. Compartilhamos os conceitos expressados no artigo citado e, neste, tentamos incorporar alguns elementos sobre a questão da mais-valia.
O segundo aspecto se refere ao campo da “teoria do conhecimento” (contida na dialética materialista inerente ao marxismo), sua contraposição com a lógica formal em que a IA se baseia e, a partir disso a análise dos limites intransponíveis que esta tem.
O autor analisa corretamente que a IA trabalha com “conhecimentos baseados na lógica formal, a lógica booleana ou a álgebra, o que exclui a possibilidade de que um mesmo enunciado seja verdadeiro e falso ao mesmo tempo. A lógica formal e, portanto, os computadores excluem as contradições. Se pudessem percebê-las, estas seriam erros lógicos”.
Neste sentido, a IA só pode oferecer resultados que estejam pré-determinados pelos dados e critérios que lhe foram fornecidos pelo homem, e que não entrem em contradição com esses dados e critérios prévios. Por isso, não pode elaborar um conhecimento realmente “novo”. No melhor dos casos, realizará uma nova combinação de dados que só é “nova” no sentido de que não havia sido formulada antes, mas não porque crie por si só um “novo conhecimento”.
Por isso, a IA pode armazenar um volume de dados impossível para um cérebro humano, realizar cálculos de alta complexidade ou executar eficazmente trabalhos de repetição melhor que o ser humano e, nestes campos, substituí-lo. Mas chega ao seu limite intransponível quando se trata de tomar decisões em situações complexas.
Se nos dados prévios, uma das alternativas apresenta majoritárias probabilidades de êxito, será proposta. Mas se for uma situação e uma decisão mais complexas e contraditórias (por exemplo, tratar um câncer com meios clínicos ou cirúrgicos), se limitará a enunciá-las e oferecer um cálculo de probabilidades de êxito de cada alternativa. Nestes casos, nunca poderá substituir o ser humano e suas decisões.
No campo da ciência, é preciso destacar que, além de estar submetido à busca do lucro capitalista, o desenvolvimento científico está preso na “camisa de força” do pensamento mecânico da lógica formal, expressado no que se chama de “método científico”.
É muito interessante ver o caso de Albert Einstein, cuja teoria revolucionou o campo da física (preso à física mecânica anterior), no início do século XX. Pois frente à contradição do que era a luz (se partículas ou ondas, massa ou energia), Einstein deu uma resposta dialética a esse problema e desenvolveu sua Teoria da Relatividade e a relação entre energia e massa. Quando foi chamado de louco por isso, Einstein respondeu: “Loucura é fazer sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.
A lógica dialética
Dissemos que a lógica dialética materialista é a teoria do conhecimento marxista. Diferente da lógica formal, a dialética é uma lógica aberta que se baseia na compreensão das contradições e sua combinação (como dinâmica do surgimento do novo). Por isso, só um pensamento dialético é capaz de criar um conhecimento realmente novo. Já vimos o exemplo de Einstein no campo da física.
Isso é assim porque como expressa Guglielmo Carchedi, em um artigo já citado, a dialética é capaz de considerar também a contradição “entre os aspectos potenciais e realizados do conhecimento”. Isso significa que é capaz de elaborar diferentes hipóteses sobre o potencial de mudança do momento presente (e a dinâmica dos elementos e processos que o configuram).
Sobre esta questão, acreditamos que é importante incorporar as elaborações realizadas pelo biólogo, sociólogo e epistemólogo suíço Jean Piaget. Nahuel Moreno (trotskista argentino fundador da LIT-QI) considerava que Piaget havia elaborado uma lógica (à qual seu criador denominou hipotético-dedutiva) que considerou como análoga à lógica marxista (embora não partisse dela) e que tinha contribuições que a enriqueciam [6].
Piaget considera que “o desenvolvimento do pensamento é uma construção contínua” que o ser humano realiza em sua interação com o meio social e natural. Ao longo desse desenvolvimento, os seres humanos vão construindo “estruturas variáveis”, abstrações que organizam a atividade mental para compreender e apreender a realidade e responder à necessidade de operar sobre ela.
PIAGET, Jean. Epistemología Genética, citado por Antonio M. Battro em Diccionario de Epistemología Genética. Buenos Aires: Proteo
A estrutura é um sistema parcial que apresenta leis de totalidade, diferentes das propriedades dos elementos que a compõem.
Para Piaget, existem três níveis de complexidade em que essas abstrações ou estruturas variáveis podem ser classificadas. O primeiro, a abstração simples ou empírica: “…tomar os objetos percebidos como possuidores do caráter x para reuni-los sem mais trâmites em uma classe que só possua esse caráter x…”. Em outras palavras, as ações de “separar e classificar”.
O segundo é que, a partir de “reconhecer em um objeto um caráter x”, ele éincorporado “como elemento de uma estrutura diferente daquela das percepções consideradas”. Piaget denomina este nível como “abstrações e generalizações ‘construtivas’”.
O terceiro nível é o que Piaget denomina “abstração reflexiva”. Também é construtiva, mas em um nível superior, porque não só se apoia nas outras duas abstrações (de primeiro e segundo grau) mas que, de certa forma, se separa do objeto do conhecimento e se apoia nas próprias ações e construções mentais do sujeito. Segundo Piaget é uma “reconstrução em um novo plano”.
Piaget denominou seu sistema como lógica hipotético-dedutiva precisamente pela capacidade de elaborar várias hipóteses alternativas sobre a dinâmica possível de uma estrutura variável. De certa forma, construir mentalmente diversos futuros possíveis e operar sobre a realidade com as perspectivas que essa ferramenta metodológica nos permite. Como aponta Moreno, surge uma “lógica dos possíveis” na qual “o real passa a ser um momento do possível”.
A lógica formal e, portanto, a IA, podem elaborar com muitíssima eficiência “abstrações simples ou empíricas”. Podem também elaborar “abstrações construtivas” na medida em que não entrem em contradição com os dados e premissas que lhe foram fornecidos.
O que nunca poderão fazer é elevar-se ao nível da “abstração reflexiva” porque só uma lógica dialética e, portanto, o pensamento humano, são capazes de fazê-lo (e já o tem feito).
Para a lógica formal e a IA: o “possível” só surge como uma extensão do real (os dados e premissas que lhe foram fornecidos) e não como algo verdadeiramente novo que pode se materializar no futuro e aí sim passar a ser então o real. Isso invalida sua capacidade de criar conhecimento “novo” entendido como algo que não surge da mera combinação acumulativa do “existente”. Por isso, a inteligência humana continua sendo imprescindível para a criação do verdadeiro conhecimento novo.
[1] https://litci.org/pt/2023/04/15/o-capitalismo-e-a-inteligencia-artificial/
[2] Idem.
[3] Ibidem.
[4] TSMC: «O aceptan largos turnos o no deberían entrar a trabajar aquí» (elchapuzasinformatico.com)
[5] https://litci.org/pt/2023/06/06/chatgpt-valor-e-conhecimento/
[6] Sobre este assunto, recomendamos ler Nahuel Moreno – Lógica marxista y ciencias modernas (marxists.org) e o livro de Jean Piaget Epistemología genética
Tradução: Lilian Enck