sáb jul 27, 2024
sábado, julho 27, 2024

CRISE NAS ISAPRE (Parte 1): o emaranhado labirinto dos negócios privados que sacode todo o sistema de saúde

“Em sua mais dura ofensiva na crise da indústria, o sindicato acusou que o projeto enviado ao Senado disfarça um fechamento do sistema pela secretaria”. Assim começa um artigo do Diário Financeiro, sobre a crise das ISAPRE (Instituições de Saúde Previdenciária).

Por: Paz Ibarra – MIT/Chile

A criação deste sistema de negócios que, sim, foi “pela secretaria”, com o Decreto com Força de Lei n°3, de março de 1981 foi, junto com as AFP- Administração de Fundos de Pensão, um dos principais mecanismos de acumulação de capital da burguesia chilena. O capital inicial exigido para abrir uma ISAPRE é ridículo: 5.000 UF- Unidade de Fomento (‘*). As ISAPRE se apropriam das contribuições obrigatórias em saúde da população com melhor renda e menor risco sanitário do país. Este fluxo permanente de dinheiro é um subsídio público que financia um negócio escandaloso (*). O novo sistema misto de saúde composto pelo FONASA-Fundo Nacional de Saúde e ISAPRE segrega os usuários de acordo com sua capacidade de pagamento. Houve um setor privilegiado, como nas AFP: as Forças Armadas e de Ordem com seus sistemas próprios (Caixa de Previsão da Defesa Nacional-CAPREDENA- e hospitais institucionais de cada ramo. Como dado: cada afiliado contribui com 5,5% de seu salário tributável, e 1,5% é responsabilidade do empregador, ou seja, o Estado do Chile. Lei Orgânica Constitucional das Forças Armadas. bcn.cl). Outro segmento são aqueles particulares não afiliados ao FONASA nem às ISAPRE: os grandes empresários.

O sistema público foi consciente e sistematicamente desmantelado pela ditadura, como parte do plano neoliberal, ao reduzir quase a zero o orçamento para a saúde entre ’73 e ’90. E foi a partir dos 90’s quando as ISAPRE disputaram a FONASA uma quantidade significativa de beneficiários, dadas as melhores condições econômicas do país e a recuperação da taxa de emprego.

A PRIMEIRA PARTE DO NEGÓCIO: as prestações em saúde e as tabelas de fatores

As ISAPRE são seguradoras de saúde (como uma companhia de seguros): o afiliado paga por uma cesta de atendimentos pré-estabelecida pela empresa, de acordo com o sexo e idade. Por lei, as ISAPRE reajustam anualmente o valor de seus planos, os que estão em Unidade de Fomento, portanto não se desvalorizam.

As Tabelas de Fatores de Risco são um mecanismo de variação do preço do plano ao longo da vida, considerando características “de risco” do cliente, como sexo ou idade; portanto, além de fixar preços, discriminam de acordo com o risco de maior custo para a ISAPRE. A cobertura para a mulher em idade fértil é mais cara, assim como para os idosos. Cada ISAPRE tinha suas próprias Tabelas, o que deu origem a mais de 1.700 diferentes planos de saúde, sendo quase impossível compará-los entre uma ISAPRE e outra.

O mecanismo de pré-existência que discrimina de acordo com as condições crônicas (como diabetes ou hipertensão), doenças catastróficas (aquelas cujo tratamento envolve um custo maior de 40% da renda familiar; como as doenças oncológicas ou imunológicas) e as doenças raras ou pouco frequentes (neuromusculares, etc.) decorreu em um grupo de contribuintes cativos, sem possibilidade de mudar de ISAPRE, que hoje são 1,4 milhões de afiliados considerando as incumbências familiares (informação da Superintendência da Saúde). O caso dos idosos, de 60 anos ou mais, é dramático: os planos sobem de preço exponencialmente à medida que a idade aumenta. Por isso, 9 de cada 10 pessoas de 60 anos ou mais estão no FONASA.

Entre 2014 e 2018, os processos judiciais por cobrança indevida se elevaram (mais de 200 mil por ano), porém recentemente em 2019 a Superintendência da Saúde fixou uma Tabela Única de Fatores de Risco. Todos os governos sabiam da situação da discriminação abusiva, mas ninguém quis se intrometer no bolso privado das ISAPRE. As ISAPRE tomaram medidas compensatórias pela redução nos preços que significaria a famosa Tabela aplicada aos afiliados de 2020 em diante: a oferta de planos vinculados a prestadores preferenciais (ou seja, das próprias ISAPRE) aumentou, diminuíram a quantidade de serviços hospitalares, para os atendimentos ambulatoriais se eliminaram planos com 100% de cobertura, os novos planos têm cobertura máxima de 65% para os atendimentos hospitalares e ambulatoriais. A discriminação por gênero foi resolvida subindo o valor dos planos, quase em 30%, para os homens para reduzir o das mulheres em 54,7%; subiram o valor médio nos planos básicos (sem contribuição adicional) Consalud em mais de 50% e Colmena em 48%, como também os planos mais caros. Por exemplo, VidaTres em 41,6% e Banmédica em 37,7%. Por último, subiram o preço dos planos para os novos afiliados, por exemplo, em VidaTres o montante mais alto de contribuição é de $183.275. (“Avaliação do Impacto da Tabela de Fatores Única”, documento de trabalho do Departamento de Estudos e Desenvolvimento, Superintendência da Saúde, 2020)

Por outro lado, a fim de reduzir mais seus custos, as ISAPRE despediram 1.484 de seus próprios trabalhadores, entre setembro de 2021 e setembro de 2022, ficando um total de 7.883 pessoas (La Tercera, 27-12-2022)

Pior ainda, em plena pandemia, 1 em cada 3 licenças médicas relacionadas à COVID foi rejeitada ou reduzida. (radio.uchile 16/4/2020)

Outro mecanismo de pegar recursos “emprestados” dos afiliados é o de excedentes; que são as diferenças a favor do afiliado quando os 7% de sua cotização obrigatória é superior ao preço do plano contratado. Esse excedente é usado pelas ISAPRE, mês a mês, para seus próprios investimentos. Anualmente, as ISAPRE devem devolver em dinheiro os excedentes aos afiliados. Em 2016, as devoluções de excedentes chegaram a incrível soma de $25.859.624.000, correspondentes a 973.651 destinatários (Superintendência da Saúde)

Um estudo do CIPER- Centro de Investigação Jornalística, assinala que desde 1990 até 2020, as ISAPRE obtiveram lucros, após dedução de impostos, de $1,3 trilhões, calculados em moeda atual. Esse caudal de dinheiro foi transferido dos lares, sem que beneficiasse em nada os afiliados. Segundo a Estatística Mensal da Carteira de Beneficiários do Sistema ISAPRE (Superintendência da Saúde, dezembro 2021) o sistema aberto atende a quase 3.250.000 pessoas. São principalmente famílias de trabalhadores formais com salários médios e médio/altos (técnicos, profissionais, etc.) De fato, os contribuintes independentes são uma pequena minoria, apenas 7,6% do total de afiliados.

Segundo informação das próprias seguradoras, tiveram perdas apenas em dois anos, após dedução de impostos. O pior ano foi 2021 quando estas chegaram a $ 148 bilhões (segundo ano de pandemia) https://www.ciperchile.cl/2022/07/20/las-abultadas-lamentaciones-de-la-asociacion-de-ISAPRE/ (*)

O inverso da tabela única de fatores

A partir das milhares de ações contra os aumentos arbitrários nos planos de saúde, a empresa Colmena chegou ao cúmulo de interpor ações aos seus próprios afiliados que levaram seus casos à justiça. Pouco a pouco, em julho de 2022, essa tática foi interrompida pela empresa, mas não descartou como uma via para evitar seu colapso.

A resolução da Corte Suprema em novembro de 2022, é apenas a constatação de que nenhuma ISAPRE tinha cumprido, até então, da disposição da Superintendência de aplicar a Tabela Única para corrigir as cobranças discriminatórias e devolver os montantes excessivos aos afetados. Esta obrigação coincide com o aumento real dos gastos catastróficos por pacientes Covid-19, as licenças por ausência e a maior presença de doenças mentais. Mas, devido às quarentenas e ao medo do contágio muitas outras prestações foram reduzidas.

A holding à qual UnitedHealth Group pertence, controlador da Banmédica e VidaTres, procura responder apelando ao mecanismo de solução de controvérsias que o Tratado de Livre Comércio entre o Chile e os Estados Unidos estabelece, e exigir compensações ao Estado do Chile, tal como já o fez Bupa (British United Provident Association), dono da Cruz Blanca. E o governo Boric deve resolver: se é pior a doença ou o remédio. Se devolverem os 1.4 bilhões de dólares aos afiliados, o sistema da ISAPRE é derrubado. Se não devolver, as ISAPRE se salvam à custo do bolso dos afiliados.

Já o presidente da CPC (Confederação da Produção e do Comércio) se alinhou com os privados, e pediu que, alguma forma, as autoridades salvem as ISAPRE, mas também questionando a devolução de todo o dinheiro cobrado em excesso, desde abril de 2020. Além disso, alertou sobre uma realidade: os 7 milhões de afiliados do FONASA que são atendidos em clínicas privadas (das ISAPRE) ficariam sem cobertura. Somando, seriam 10 milhões de pessoas afetadas. A ministra porta-voz do governo, Camila Vallejo (do mesmo Partido Comunista que Jadue) garantiu que não haverá salvamento estatal e que a decisão do poder judicial deve ser acatada…quem tem a razão?

A SEGUNDA PARTE DO NEGÓCIO: os prestadores institucionais da saúde (*)

Nos anos 80’s, as ISAPRE só garantiam financiando prestações de saúde. As clínicas privadas, que existiam desde antes como a clínica Dávila, Alemana ou Santa María, foram os primeiros prestadores institucionais da saúde do novo sistema. Junto a laboratórios, centros médicos e profissionais alheios às ISAPRE, outorgavam as prestações através de convênios de atendimento… Para fins dos anos 90’s as ISAPRE começam a compra total ou de grande parte da propriedade dos prestadores institucionais, assim como o emprego direto de profissionais da saúde, para melhorar suas vantagens competitivas. Assim são oferecidos diferentes planos associados a prestadores institucionais preferenciais. Isso é a integração vertical: uma holding de empresas é dona das ISAPRE e das clínicas relacionadas. Em 2012, a holding Empresas Banmédica S.A. controlava 99,99% das ISAPRE Banmédica e VidaTres.  O diretor dessas 2 ISAPRE, assim como o das clínicas Santa María, Dávila, Vespucio, Bio bío e Ciudad del Mar, eram a mesma pessoa. (“Prestadores da saúde, ISAPRE e Holdings: relação estreita? C. Copetta. Departamento de Estudos e Desenvolvimento, Superintendência da Saúce, dez. 2013)

Outra estratégia é a concentração do mercado através de fusões, como a recentemente aprovada fusão entre Nueva MasVida yeColmena, pela Corte Suprema em março passado, mas que, segundo o tribunal, a operação não poderá ser concretizada até que a atual crise do sistema seja resolvida…https://www.df.cl/empresas/salud/aprueban-fusion-colmena-nueva-masvida-pero-operacion-se-mantendra-en

Em fins de 2022, a dívida das ISAPRE com as clínicas chegou a $ 507 bilhões, e em janeiro de 2023 era de $ 567 bilhões, segundo a Associação de Clínicas do Chile, colocando em risco a cadeia de pagamentos aos prestadores. 52% dos pacientes que os prestadores privados atendem são do FONASA e 48% da ISAPRE. Daí sai a principal renda das clínicas. As ISAPRE têm uma demora progressiva na bonificação e pagamento de pacientes já atendidos. Colmena, Consalud e Cruz Blanca concentram 65% dessa dívida. 29% da milionária dívida é dos próprios afiliados, por motivo de copagamento, mas o resto é das ISAPRE com as clínicas (La Tercera – El Pulso,10/4/23)

As garantias legais do sistema privado não cobrem a totalidade da dívida que mantém com as clínicas. Por outro lado, no Diário Financeiro de 6/4/23, se coloca que as clínicas privadas foram afetadas pela inflação, aos menores pagamentos feitas por causa da pandemia e as contas a cobrar às ISAPRE. A Clínica Las Condes seria a mais atacada com a queda de seus lucros. Os principais donos são duas sociedades de Teresa Solari Falabella; BCI e Larraín Vial Corredores de Bolsa (informação em CMF) A própria Teresa Solari, chegou à Corte Suprema, por sua reclamação contra o Serviço de Impostos Internos. Segundo o SII, Solari deve $ 77 milhões em impostos, desde 2014, sem considerar juros nem reajustes (Diário Financeiro, 12/11/21)

Um último dado. Segundo o Conselho para a Transparência, o gasto público total na saúde relacionado à pandemia da COVID – 19, foi mais de $126, 216 bilhões, considerando medicamentos, insumos de proteção e de atendimento, testes, ventiladores, transporte, clínicas de repouso e gestão. Durante 2020, do total de despesas por Covid, 45,1% foram afiliados do FONASA e 40,8% pacientes da ISAPRE; o resto foram pacientes de outra previdência ou particulares (Resumo Executivo Clínicas do Chile, 2022). Ou seja, apesar da incrível soma de dinheiro que o negócio privado da saúde gerencia, as ISAPRE não puderam sustentar seu nível de lucros e ao mesmo tempo responder aos massivos requerimentos de cobertura que a pandemia impôs, demonstrando que o lucro é incompatível com o direito à saúde.

A essência desta crise reflete a essência do capitalismo neoliberal.

Tradução: Lílian Enck

Confira nossos outros conteúdos

Artigos mais populares