A tese do governo em disputa não se sustenta
É comum ouvirmos que o governo Lula estaria em disputa, e que a esquerda deveria disputar os seus rumos. Guilherme Boulos sintetizou bem isso no ano passado quando falou: “Eu defendo que o Psol integre a base de apoio ao Lula. O governo será de frente ampla, e nós temos que disputar internamente espaços para puxar a agenda do país para a esquerda”.
Por: Júlio Anselmo
Da onde vem a política regressiva do governo?
O governo ser de “frente ampla” significa que, em sua composição, há nomes de diversos setores políticos. Atualmente, isso inclui nomes da direita tradicional, como Alckmin, que foi do PSDB por muitos anos, passa por José Múcio, que elogiou Bolsonaro, e Daniela Carneiro, ligada às milícias e do partido de direita União Brasil. Sem contar os vários ministérios do PT e até Sonia Guajajara do PSOL.
Mas esta amplitude seria a comprovação de que o governo estaria em disputa? Vejamos. O próprio Lula diz que nada é aprovado sem o seu aval, então, há um programa comum entre todos os setores presentes no governo, que é demonstrado justamente pela submissão ao projeto do PT.
Se o governo está em disputa, como é que o arcabouço fiscal é criado pela suposta “ala esquerda”? Afinal, este projeto conta com o aval de Lula e foi construído por Haddad do PT. Só se pode concluir que vem do próprio PT e Lula um programa de administrar o capitalismo e garantir os interesses da burguesia.
A serviço de quem está o governo Lula
O governo do PT tenta fazer parecer que governa para todos nos marcos do sistema capitalista que administra. Mas não é possível governar para todos porque os trabalhadores e a burguesia têm interesses antagônicos. Em um fábrica, até mesmo para aumentar o salário é preciso enfrentar o patrão e ir à luta. Em uma greve, qualquer um que tente ver o lado do patrão e do trabalhador rapidamente é identificado como pelego. No país de conjunto é a mesma coisa, só que em um grau muito maior.
Podem nos questionar dizendo que se trata de um governo burguês, mas com um setor da burguesia progressiva. Mas aí teriam que apontar qual setor burguês é esse. Lemann, um dos mais ricos do Brasil e responsável por quebrar as Americanas com falcatruas? Os irmãos Joesley, bilionários do agronegócio responsáveis por toda sorte de maracutais reveladas no tempo do Temer? Pois é, estes dois tem ligações com o governo Lula. Assim como Trabuco do Bradesco e setores majoritários do imperialismo mundial.
Claro, nem todo governo capitalista ou burguês são iguais. Por exemplo, o governo Lula é bem diferente do que foi Bolsonaro. Mas, por esta diferença, quer dizer que o setor burguês encabeçado por Lula seja progressivo e deve ser apoiado pelos trabalhadores? Não. Seria mais preciso dizer que são dois setores burgueses: um que apoia o projeto de ditadura com Bolsonaro, e outra ala que se coloca ao lado da democracia burguesa, através de Lula. Nenhum deles representam uma alternativa para os trabalhadores.
E não há um meio termo. Não existe um governo híbrido “meio capitalista e meio socialista”, a não ser que se faça coro com o discurso liberal, que afirma que o socialismo seria “mais Estado”, enquanto o capitalismo seria menos, o que é falso.
Aqui é quando recorrem à artimanha da correlação de forças, que seria a explicação de todos os males. Só esquecem de se perguntar o que define a correlação de forças. A atuação do PT, de Lula e a política que defendem, as ações que tomam, não são elas também parte da correlação de forças?
Só para ficar em um exemplo: a ultradireita segue com seu projeto autoritário que se ampara em Bolsonaro, na extrema direita do Congresso e nos militares. Lula não está usando o aparato do Estado para derrotar este setor reacionário, pelo contrário, tenta pactuar e fazer um acordão. Isso vai ter um impacto na correlação de forças ali na frente.
Assim como governar o capitalismo em aliança com a burguesia e o centrão também ajuda a correlação de forças a ir para direita, não à esquerda. Então, esta lógica de supostamente ceder tudo em nome da governabilidade ajuda a direita e a burguesia, não para avançar as pautas dos trabalhadores ou sua organização.
O PSOL e a disputa de um suposto campo progressivo
O problema da tese do “governo em disputa” piora quando vemos que, na realidade, não há disputa alguma. Boulos, que diz que sua política de adesão ao governo é para “puxar a agenda do país para a esquerda”, não disse nada sobre o novo arcabouço fiscal. O presidente do PSOL, Juliano Medeiros, disse que tomarão a decisão no dia 15 de abril.
Mas dado que ambos comemoraram efusivamente os 100 dias do governo e todas as medidas, sem críticas e com tudo levando a crer que seguirão na base do governo, a pergunta que fica é: que disputa estão fazendo?
Inclusive, mesmo se fizessem críticas de fato, isto ainda se daria nos marcos de um governo capitalista, haja visto ser impossível disputá-lo para um programa da classe trabalhadora, justamente porque não tem como disputar um governo burguês para ser anti-burguês.
A contradição reside no fato de que, se Boulos e o PSOL quiserem disputar o governo para esquerda, terão que se enfrentar com todo ele, incluindo o próprio PT. Então, ficaria evidente que a suposta ala progressiva é responsável pelas medidas regressivas.
Das duas uma: Ou a disputa que fazem é impossível sem causar uma ruptura do governo devido a incompatibilidade dos programas dos trabalhadores com a burguesia; ou a disputa que fazem se dá em base a outro programa que não é o dos trabalhadores.
O PSOL vive, na verdade, prisioneiro de um dos campos burgueses e refém de um programa capitalista de aliança com a burguesia. Esta é a prova de que estar dentro do governo atual não ajuda a construir um campo alternativo aos campos burgueses, nem contribui para a organização, mobilização e consciência dos trabalhadores.
As correntes do PSOL que fazem alguma crítica ao governo
Há setores do PSOL que tem uma postura um pouco diferente. O MES (Movimento de Esquerda Socialista) diz que defende as medidas progressivas e critica as regressivas. Ao mesmo tempo que criticam o arcabouço fiscal, elogiam as demais medidas e chamam de vitória os 100 dias de Lula. A Resistência vai por um caminho parecido ao defender que não apoiar as medidas progressivas é um erro sectário.
Defender as medidas que consideram progressivas e criticar as regressivas também fortalece o governo. Não ajuda os trabalhadores a enxergarem o real caráter e o papel do governo na preservação dos acordos com a direita e na manutenção dos interesses dos capitalistas. Com mais ou menos críticas, esta política, na prática, se transforma em apoio permanente ao próprio projeto do governo, ou a ideia falsa da possibilidade de mudar o governo por dentro.
As medidas do governo não servem como ponto de partida para a emancipação dos trabalhadores. Na verdade, é o oposto, servem para atender a burguesia, retroceder a consciência e o nível de organização do povo.
As medidas anunciadas pelo governo nesses 100 dias são muito pouco. Estamos falando de, por exemplo, R$ 70 bilhões para o Bolsa Família, e R$ 215 bilhões de dividendos aos acionistas da Petrobras. O que Lula vem fazendo está em sintonia com o que defende a OCDE ou o próprio governo Biden. Um setor do imperialista defende uma política econômica mais “anticíclica”, que permita certo nível de gastos públicos a fim de retomar o crescimento e políticas sociais compensatórias. Por isso, o mercado comemora o arcabouço e ainda a retomada de projetos petistas. Trata-se de uma tentativa de retomar o patamar de lucratividade do capital.
Devemos sim defender as conquistas dos trabalhadores, ou mesmo medidas progressivas, quando atacadas pela ultradireita. Mas a condição para isso é que de fato sejam atacadas. Mas, mesmo aí, é preciso fazer exigências ao governo para termos mais, e denunciar as insuficiências, dado que nenhuma “medida progressiva” no capitalismo, por si só, irá resolver os problemas da vida do nosso povo.
Explicar pacientemente que o governo Lula não é aliado dos trabalhadores
Outra forma de capitular ao governo é não tendo política para o governo. Por exemplo, o PCB e o próprio MES, dão como saída organizar as lutas imediatas dos trabalhadores, falam em se manter independente do governo, o PCB chega até mesmo a saltar para socialismo, poder popular, etc., mas não dizem qual deve ser a política em relação ao governo. São situação ou oposição? Temos que explicar aos trabalhadores que este governo não é seu ou não? Então, qual palavra de ordem devemos usar para ajudar a desmascarar e demonstrar o seu verdadeiro de caráter de classe?
A Resistência, nesse ponto, é mais coerente e defende uma política de exigir que o governo burguês de Lula e o PT rompa com a burguesia. Falam que seria uma política tática para disputar a consciência. Mas é incompreensível, afinal, se o governo Lula romper com a burguesia, continuaria sendo burguês, dada a natureza atual do PT e de seu projeto. Então, esta “tática” mais serve para confundir do que explicar a natureza do governo, já que seria o mesmo que esperar que o PT rompesse consigo próprio.
Os perigos desse governo Lula 3 são maiores do que no passado, porque hoje existe uma oposição de ultradireita forte e que está à espreita esperando a desmoralização do governo para retomar o caminho do seu projeto autoritário. Precisamos dizer aos trabalhadores que Lula e o PT, ao escolher o caminho que escolheram, terminarão ajudando a direita e a ultradireita novamente. No fim e ao cabo, precisamos preparar as lutas do povo contra este governo, exigindo suas reivindicações e, junto com isso, explicar que este não é seu governo, que não é possível confiar em Lula e que é preciso fortalecer um projeto que enfrente o capitalismo. E isso passa por fortalecer uma organização política dos trabalhadores, socialista e revolucionária.