A rebelião contra o governo assassino de Boluarte e o Congresso continua crescendo
Enquanto este texto era elaborado, o governo de Dina Boluarte e Congresso assassinavam, em Lima, Víctor Santisteban Yacsacilca (55 anos), em uma nova ação repressiva da polícia nacional. Víctor Santisteban recebeu impactos de bala na cabeça, como tantos outros feridos na jornada de 28 de janeiro, entretanto as feridas acabaram com sua vida.
Por: PST – Peru
O Peru vive uma rebelião popular cujo epicentro é o sul andino (em especial Cusco e Puno), e nas últimas semanas se deslocou para Lima, a capital do país.
Depois do massacre que ocorreu em Juliaca (Puno), no qual a polícia assassinou 17 lutadores, milhares de moradores de bairros pobres provenientes fundamentalmente da serra sul, marcharam para Lima para estender e fazer sentir seu protesto.
Diante do crescimento da rebelião, a Conferência Geral de Trabalhadores do Peru (CGTP), convocou e realizou uma jornada de luta em 19 de janeiro, que foi multitudinária e terminou em fortes enfrentamentos com a polícia, e em um dantesco incêndio em um velho casarão, em pleno centro da cidade.
Desde esse dia, a luta se tornou permanente e em Lima as manifestações massivas acontecem todos os dias, e sempre terminam em sérios enfrentamentos com a polícia, deixando no seu rastro uma esteira de feridos, detidos e caos.
Para colocar “ordem”, em uma situação que o governo considerava “controlada”, no dia 21 decidiu intervir na Universidade de San Marcos em cujo campus pernoitavam 200 manifestantes vindos das províncias (de uma média de 7 a 8 mil que permanecem na capital). O operativo realizado com tanques derrubando as portas de entrada e centenas de policiais de choque invadindo o campus, detendo violentamente todos ali presentes, enquadrando-os e colocando-os contra o chão para depois conduzi-los à DIRCORTE (Direção Contra o Terrorismo), trouxe à memória os piores tempos do ditador e genocida Fujimori, com quem automaticamente se associou a identidade do regime encabeçado por Boluarte.
O mesmo aconteceu no interior. As forças policiais contra-atacaram nas zonas mais radicalizadas em sua tentativa de liberar as vias bloqueadas, produzindo novos e fortes enfrentamentos com eventos sangrentos. Em Chao (litoral norte do país onde também se mantém um bloqueio) outra vítima caiu baleada. Em Ilave (Puno, na fronteira com a Bolívia) assassinaram outra pessoa, desta vez um adulto de 62 anos e membro da comunidade aymara. Ambos os crimes provocaram mais reações violentas. O povo aymara saiu em massa e enfrentou a polícia até que fugiu, e queimaram a delegacia e outras dependências públicas e privadas.
Lima não ficou atrás. Os setores democráticos, já comovidos pelo massacre dos que lutam, viram na ocupação da universidade não só a violação de sua autonomia, mas também uma brutal transgressão das liberdades democráticas, realizado após um discurso oficial que rotula os que lutam como “terroristas”. Para maior verossimilhança, um policial que participou do operativo (Ricardo Quiñe), se filmou e difundiu nas redes um vídeo onde se mostra satisfeito mostrando os supostos terroristas presos. Os detidos, não obstante, eram simples camponeses em cujos alforjes não se encontrou nada que os associasse como violentos e menos ainda como terroristas. Este fato iniciou a reação do movimento estudantil, até aquele momento fora de cena, que foram convocados às centenas para manifestarem-se na sede da prefeitura. Ao mesmo tempo, os conterrâneos dos detidos organizavam novos comboios para reforçar sua presença em Lima.
Neste contexto a CGTP (Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru) que continua a reboque dos acontecimentos, convocou um novo dia de luta para terça-feira, dia 24, quando os detidos já haviam sido liberados, pressionada pela mobilização e pelo protesto de diversos setores.
A mobilização do dia 24
O dia 24 foi um verdadeiro dia de fúria. Três setores convergiram à mobilização. De um lado, a CGTP “oficial” e os partidos da esquerda, que marcharam, deram uma volta e depois se dissolveram. A coluna provinciana, mais numerosa e combativa, que saiu nas primeiras horas da manhã, se concentrou e se dirigiu à Plaza San Martín (localizada a poucas quadras da sede do Palácio de Governo e do Congresso), cujos acessos estão fortificados por várias fileiras de policiais e tanques das FFAA, onde ocorreram fortes enfrentamentos. E a juventude universitária, que saiu em diferentes horários fazendo uma forte coluna que também participou dos enfrentamentos.
A partir da grande mídia que aponta os manifestantes como “violentos” e “terroristas”, contam-se histórias de como as marchas são dirigidas e planejadas por supostos aparatos subversivos, e como são financiadas pelo narcotráfico e pela mineração ilegal. Um simples observador das marchas pode ver que a verdade não apenas é outra, mas especialmente comovedora.
Os que chegaram a Lima são, em sua maioria, camponeses pobres e membros de comunidades andinas ancestralmente esquecidas, que, com a queda de Castillo, viram naufragar suas esperanças de mudança e saíram para exigir o fechamento do Congresso (em sua maioria de direita) e a renúncia de Boluarte (vista como “traidora”), e ao receber uma sangrenta repressão simplesmente explodiram.
Eles se mostram como são: trajados com suas roupas típicas com chapéus e alguns levando chicotes. Nas marchas carregam cartazes com o nome de seus povos de origem, em outros levam os nomes dos caídos, e brandem a wiphala (bandeira do Tahuantinsuyo) mostrando sua identidade e orgulho.
Uma assembleia de formandos de psicologia da universidade de San Marcos mostrou como se organiza esta grande luta a partir das bases. A assembleia discute a organização de grupos de defesa, equipados com capacetes, máscaras e escudos; os grupos de ajuda, que garantem vinagre, água e panos para neutralizar os efeitos dos gases lacrimogêneos; os grupos de assistência paramédica, que atendem os feridos; os que preparam alimentos, os que juntam recursos, e até os encarregados de desativar os gases lacrimogêneos usando água com bicarbonato de sódio. É evidente: todos sabem que não é uma luta pacífica porque as forças policiais (e, na sua falta, as FFAA), atacam com brutalidade, ferem muitos e atiram para matar. E tudo é medianamente coordenado por whatsapp pelos que se colocam à frente das diversas organizações.
A precariedade e improvisação da direção e organização da luta se manifesta em todos sentidos. Por exemplo, dá margem ao vandalismo, e por outro lado não permite atender as emergências nos bloqueios.
Auto-organização e solidariedade
E são vistos em todas suas limitações quando entram em ação durante a luta. As marchas são ou acabam em enfrentamentos que são verdadeiros campos de batalha em que o que se trama como organização é muito pouco, embora profundamente significativo porque é auto-organização.
No dia de luta, terça 24, os enfrentamentos se concentraram em torno da Plaza San Martín, ocupada em seus quatro lados por imensas massas de manifestantes em sua tentativa de chegar ao Congresso. Ocupando o centro da praça, um exército policial atacou os quatro lados lançando uma chuva de gases lacrimogêneos, alguns deles disparados no corpo, e disparando chumbinhos; controlando todo o cenário com drones e câmeras de vigilância. O ataque só inflama a raiva e os mais experientes – alguns deles licenciados das forças armadas – vão para o confronto corpo a corpo.
No caos do enfrentamento onde alguns são asfixiados pelos gases, todos entram em ação: os mais experientes – alguns deles licenciados do exército – vão com seus escudos e paus para repelir a polícia. Outros, da retaguarda fornecem vinagre, toalhas, máscaras e água aos que saem do epicentro; e outros atendem os feridos em macas improvisadas. Inclusive, entre os que correm para protegerem-se das bombas, alguns são vistos carregando grandes panelas de comida preparada para alimentar os manifestantes.
No início, na Plaza 2 de mayo, onde começou a concentração, havia voluntários distribuindo comida e garrafas de água a todos. Assim a luta se desenvolve. Do lado de dentro, uma precária organização onde, os que participam dela, mostram um enorme grau de irmandade, se apoiam, dão-se as mãos, se ajudam. Do lado de fora a ajuda é infinita. As pessoas da rua aplaudem e somam seus gritos, outros dão garrafas de água e alimentos aos manifestantes.
O resultado desse dia de luta é de vários detidos, feridos e uma cidade envolta no caos. Até o dia seguinte.
O caos e a crise se espalham
Todos os dias é assim em Lima. E é mais grave nas localidades em conflito, que abrangem o Sul (11 regiões) e vários pontos do país.
Na quarta-feira 25, os manifestantes se dirigiram à embaixada dos EUA, e outra coluna se deslocou para o centro residencial de San Isidro procurando “tocar outras fibras”. Na quinta 26, uma grande marcha das delegações do interior saiu de «Puente Piedra» (25 km ao norte de Lima) em direção ao centro, com a presença de moradores de bairros pobres locais, fechando toda a via principal. Na sexta 27, outra marcha foi realizada, da zona Leste (San Juan del Lurigancho, o maior bairro da capital), também em direção ao centro. Nesse mesmo dia, em Ica, um novo enfrentamento com a polícia deixou um saldo de mais de 30 feridos em ambos lados, entre eles um policial em estado grave.
No momento de fechar este artigo, milhares de estudantes universitários e delegações do interior realizam outra marcha pelo centro.
O caos parece não ter fim. Mas seus estragos são mais sentidos nas zonas mais convulsionadas onde os manifestantes exercem o controle. Há desabastecimento de tudo que é essencial, e o que há é vendido a preços proibitivos: em Madre de Dios (oriente peruano), o botijão doméstico de GLP chega a custar 100 dólares. Os caixas automáticos não têm dinheiro. Produtores são vistos jogando fora seus produtos, como o leite, ou tentando arrematá-los. A economia local de muitos deles que vivem da pequena produção e do comércio, parecem arruinados. Os grandes negócios também sofrem o impacto: algumas mineradoras (Antapaccay, Cusco), suspenderam suas operações; os grandes agroexportadores sofrem grandes perdas nas safras não realizadas e produtos que não podem transportar. O turismo (um dos principais rendimentos destas economias, sobretudo de Cusco), está parado: Machu Picchu está vazio. E, em geral, a economia nacional, parece paralisada, aprofundando a sensação de desespero.
O sofrimento da população que luta não tem como ser descrito. Ela se mantém estoicamente porque sabe que diante de uma luta não somente justa, mas também diante de um desafio onde sentem que o governo lhes declarou guerra e, frente a ela, não há como voltar atrás, mesmo à custa de causar mais dor e a possibilidade de perder a própria vida.
Governo em crise
Após sua pretensa solidez (assim como seu pretenso controle da situação), o governo começa a fazer água. Sua política repressiva fracassou e só aumentou os protestos e a convulsão social.
O governo de Boluarte foi instalado e é sustentado pelo apoio da direita do Congresso, um setor que conta entre suas fileiras com altos oficiais aposentados das FFAA que estiveram na luta contra-subversiva dos anos 80 e 90; o próprio presidente do Congresso é um ex general com acusações de delitos de lesa humanidade.
Para tal setor, com a eleição de Pedro Castillo (junho 2021) foi o Sendero (Sendero Luminoso) quem tomou o poder, e por isso não lhe deram trégua até conseguirem depô-lo. Depois de comemorar este ato, veem nas manifestações uma “ressaca” da subversão e por isso, junto com a grande mídia que lhe faz coro, incentivam que se descarregue toda a repressão sobre elas. Já são 60 mortos. E sob amparo do “estado de emergência” produz todo tipo de arbitrariedades, como a invasão em locais partidários, a invasão à Universidade de San Marcos, a detenção indiscriminada de ativistas. O pior é que estas detenções são realizadas sob a acusação de “terrorismo”. Os dirigentes da FREDEPA (Frente de Defesa de Ayacucho), foram presos pela DIRCORTE, onde se tenta processá-los por “terrorismo” usando como única prova que tenham se “pronunciado” por uma Assembleia Constituinte.
Associado ao setor de direita atua o chamado centro político (os partidos velhos e novos da burguesia), que veem nestas mobilizações uma ameaça ao regime democrático sobre o qual assentam seu poder, e também querem que sejam derrotados, embora com “formas” mais legais e constitucionais, mas não menos suaves. O primeiro ministro Otárola atua como nexo direto da ala mais conservadora do Congresso com o Governo, enquanto que Boluarte ziguezagueia entre ambos os lados.
Mas, ao fracassar a investida repressiva, Boluarte pretendeu renunciar, alguns de seus ministros a abandonaram e se mantém em meio a contramarchas, sustentada por esses setores que querem que ela lhes prepare o caminho antes das eleições.
Uma nova frente se abriu para Boluarte no setor externo. Ao reconhecimento inicial que a maioria dos países lhe deram, agora os pronunciamentos são quase unânimes contra a flagrante violação dos Direitos Humanos e a necessidade de uma saída política para a crise que sacode o país. Neste sentido, chegam pronunciamentos desde o Vaticano até a ONU e a OEA. O pronunciamento de Boric, presidente do Chile, foi particularmente firme, quando disse: “as pessoas que saem para marchar são baleadas por aqueles que devem defendê-los”. A própria Comissão de Direitos Humanos (CIDH) emitiu um informe que é um escândalo mundial: as mortes produzidas, em sua maioria, respondem a um padrão: são disparos dirigidos à cabeça ou à região abdominal, com o fim de matar, e não de dissuadir, e as vítimas em sua maioria nem se encontravam na primeira linha.
O governo pretende enfrentar a todos no terreno diplomático, e seus discursos para o exterior (Boluarte se apresentou online em uma audiência com a OEA), são tão falaciosos que ninguém acredita. O regime está encurralado aqui e no exterior.
Ainda assim, um setor, a extrema direita, quer ir até o fim e alcançar seu objetivo de derrotar a rebelião; o outro facilita uma saída, agora oferecendo antecipar mais a convocação às eleições, mas mantendo Boluarte até o momento de ocorrer a transferência.
A saída
Neste contexto o próprio posicionamento das classes fundamentais tende a mudar. Setores importantes das classes médias, que assustados pelos “violentos”, apoiavam ou se calavam diante da repressão sangrenta, agora respaldam parte das exigências, como a rejeição à repressão e a antecipação das eleições. A burguesia, se distancia de sua ala direita que mostra disposição de levá-la à beira do precipício, e agora se inclina pela antecipação das eleições para o final deste ano, em uma espécie de mal menor, ao menos para evitar um maior agravamento e ganhar tempo enquanto faz um novo plano. Certamente isto não vai ao encontro da exigência fundamental dos manifestantes que, no mínimo, querem a cabeça de Boluarte. Mas jogam para isolá-la voltando a colocar os setores democráticos do seu lado, e pensam em aproveitar a angústia que é vivida nas localidades em conflito.
A máxima expressão desta relocalização é dada pelo fujimorismo. Este partido com uma forte presença no Congresso, passou de escorar a política oficial a propor o adiantamento das eleições para este ano (outubro), coincidindo com a plêiade democrática e a esquerda reformista de Verónica Mendoza. A proposta implica em uma mudança do acordo anterior (adotado também sob a pressão das lutas de 29 de dezembro), de realizar eleições em abril de 2024, e deve ser aprovada até segunda dia 31, data em que encerra a presente legislatura. A segunda legislatura, convocada para 15 de fevereiro, votaria a ratificação. Mas a aprovação pelo Congresso destas mudanças para “sair” da crise não é nada fácil.
A votação requer mais de dois terços de votos (87) e para alcançá-la requer um acordo multipartidário, de tal forma que a mera oposição de um dos blocos parlamentares impossibilita um acordo. O debate da proposta na noite de 27 de janeiro produziu uma votação de 45 a favor da antecipação das eleições para outubro deste ano (e de 65 contra); mostrando que estão muito longe dos 87 que precisam.
Por isso, a crise vai se agravar mais antes de encontrar alguma saída. Assim, as manifestações e os choques vão crescer estes dias e sob o fogo das diversas forças do parlamento esticarão como chiclete todas as possibilidades de dilatar seus comandos.
Sabendo dessa realidade, os manifestantes propõem como saída – que é a única viável do seu ponto de vista – a queda de Boluarte. Não só porque é responsável pelas mortes, mas também porque com ela se precipitaria a convocação para as eleições, de acordo com a Constituição.
Mas conseguir esta saída implica uma luta maior. Trata-se de vencer a política da central que continua sendo acompanhar a luta e não transformá-la em sua para garantir a vitória de suas exigências fundamentais. E da própria “esquerda” reformista, que centraliza tudo na saída parlamentar: alguns aliados do fujimorismo para aprovar o projeto de antecipação das eleições para outubro, e outros (Bloco Magisterial e Peru Livre) aliando-se aos outros setores de direita que se opõem.
A rebelião contra o governo assassino de Boluarte e o Congresso continua crescendo
Enquanto este texto era elaborado, o governo de Dina Boluarte e Congresso assassinavam, em Lima, Víctor Santisteban Yacsacilca (55 anos), em uma nova ação repressiva da polícia nacional. Víctor Santisteban recebeu impactos de bala na cabeça, como tantos outros feridos na jornada de 28 de janeiro, entretanto as feridas acabaram com sua vida.
Por: PST – Peru
O Peru vive uma rebelião popular cujo epicentro é o sul andino (em especial Cusco e Puno), e nas últimas semanas se deslocou para Lima, a capital do país.
Depois do massacre que ocorreu em Juliaca (Puno), no qual a polícia assassinou 17 lutadores, milhares de moradores de bairros pobres provenientes fundamentalmente da serra sul, marcharam para Lima para estender e fazer sentir seu protesto.
Diante do crescimento da rebelião, a Conferência Geral de Trabalhadores do Peru (CGTP), convocou e realizou uma jornada de luta em 19 de janeiro, que foi multitudinária e terminou em fortes enfrentamentos com a polícia, e em um dantesco incêndio em um velho casarão, em pleno centro da cidade.
Desde esse dia, a luta se tornou permanente e em Lima as manifestações massivas acontecem todos os dias, e sempre terminam em sérios enfrentamentos com a polícia, deixando no seu rastro uma esteira de feridos, detidos e caos.
Para colocar “ordem”, em uma situação que o governo considerava “controlada”, no dia 21 decidiu intervir na Universidade de San Marcos em cujo campus pernoitavam 200 manifestantes vindos das províncias (de uma média de 7 a 8 mil que permanecem na capital). O operativo realizado com tanques derrubando as portas de entrada e centenas de policiais de choque invadindo o campus, detendo violentamente todos ali presentes, enquadrando-os e colocando-os contra o chão para depois conduzi-los à DIRCORTE (Direção Contra o Terrorismo), trouxe à memória os piores tempos do ditador e genocida Fujimori, com quem automaticamente se associou a identidade do regime encabeçado por Boluarte.
O mesmo aconteceu no interior. As forças policiais contra-atacaram nas zonas mais radicalizadas em sua tentativa de liberar as vias bloqueadas, produzindo novos e fortes enfrentamentos com eventos sangrentos. Em Chao (litoral norte do país onde também se mantém um bloqueio) outra vítima caiu baleada. Em Ilave (Puno, na fronteira com a Bolívia) assassinaram outra pessoa, desta vez um adulto de 62 anos e membro da comunidade aymara. Ambos os crimes provocaram mais reações violentas. O povo aymara saiu em massa e enfrentou a polícia até que fugiu, e queimaram a delegacia e outras dependências públicas e privadas.
Lima não ficou atrás. Os setores democráticos, já comovidos pelo massacre dos que lutam, viram na ocupação da universidade não só a violação de sua autonomia, mas também uma brutal transgressão das liberdades democráticas, realizado após um discurso oficial que rotula os que lutam como “terroristas”. Para maior verossimilhança, um policial que participou do operativo (Ricardo Quiñe), se filmou e difundiu nas redes um vídeo onde se mostra satisfeito mostrando os supostos terroristas presos. Os detidos, não obstante, eram simples camponeses em cujos alforjes não se encontrou nada que os associasse como violentos e menos ainda como terroristas. Este fato iniciou a reação do movimento estudantil, até aquele momento fora de cena, que foram convocados às centenas para manifestarem-se na sede da prefeitura. Ao mesmo tempo, os conterrâneos dos detidos organizavam novos comboios para reforçar sua presença em Lima.
Neste contexto a CGTP (Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru) que continua a reboque dos acontecimentos, convocou um novo dia de luta para terça-feira, dia 24, quando os detidos já haviam sido liberados, pressionada pela mobilização e pelo protesto de diversos setores.
A mobilização do dia 24
O dia 24 foi um verdadeiro dia de fúria. Três setores convergiram à mobilização. De um lado, a CGTP “oficial” e os partidos da esquerda, que marcharam, deram uma volta e depois se dissolveram. A coluna provinciana, mais numerosa e combativa, que saiu nas primeiras horas da manhã, se concentrou e se dirigiu à Plaza San Martín (localizada a poucas quadras da sede do Palácio de Governo e do Congresso), cujos acessos estão fortificados por várias fileiras de policiais e tanques das FFAA, onde ocorreram fortes enfrentamentos. E a juventude universitária, que saiu em diferentes horários fazendo uma forte coluna que também participou dos enfrentamentos.
A partir da grande mídia que aponta os manifestantes como “violentos” e “terroristas”, contam-se histórias de como as marchas são dirigidas e planejadas por supostos aparatos subversivos, e como são financiadas pelo narcotráfico e pela mineração ilegal. Um simples observador das marchas pode ver que a verdade não apenas é outra, mas especialmente comovedora.
Os que chegaram a Lima são, em sua maioria, camponeses pobres e membros de comunidades andinas ancestralmente esquecidas, que, com a queda de Castillo, viram naufragar suas esperanças de mudança e saíram para exigir o fechamento do Congresso (em sua maioria de direita) e a renúncia de Boluarte (vista como “traidora”), e ao receber uma sangrenta repressão simplesmente explodiram.
Eles se mostram como são: trajados com suas roupas típicas com chapéus e alguns levando chicotes. Nas marchas carregam cartazes com o nome de seus povos de origem, em outros levam os nomes dos caídos, e brandem a wiphala (bandeira do Tahuantinsuyo) mostrando sua identidade e orgulho.
Uma assembleia de formandos de psicologia da universidade de San Marcos mostrou como se organiza esta grande luta a partir das bases. A assembleia discute a organização de grupos de defesa, equipados com capacetes, máscaras e escudos; os grupos de ajuda, que garantem vinagre, água e panos para neutralizar os efeitos dos gases lacrimogêneos; os grupos de assistência paramédica, que atendem os feridos; os que preparam alimentos, os que juntam recursos, e até os encarregados de desativar os gases lacrimogêneos usando água com bicarbonato de sódio. É evidente: todos sabem que não é uma luta pacífica porque as forças policiais (e, na sua falta, as FFAA), atacam com brutalidade, ferem muitos e atiram para matar. E tudo é medianamente coordenado por whatsapp pelos que se colocam à frente das diversas organizações.
A precariedade e improvisação da direção e organização da luta se manifesta em todos sentidos. Por exemplo, dá margem ao vandalismo, e por outro lado não permite atender as emergências nos bloqueios.
Auto-organização e solidariedade
E são vistos em todas suas limitações quando entram em ação durante a luta. As marchas são ou acabam em enfrentamentos que são verdadeiros campos de batalha em que o que se trama como organização é muito pouco, embora profundamente significativo porque é auto-organização.
No dia de luta, terça 24, os enfrentamentos se concentraram em torno da Plaza San Martín, ocupada em seus quatro lados por imensas massas de manifestantes em sua tentativa de chegar ao Congresso. Ocupando o centro da praça, um exército policial atacou os quatro lados lançando uma chuva de gases lacrimogêneos, alguns deles disparados no corpo, e disparando chumbinhos; controlando todo o cenário com drones e câmeras de vigilância. O ataque só inflama a raiva e os mais experientes – alguns deles licenciados das forças armadas – vão para o confronto corpo a corpo.
No caos do enfrentamento onde alguns são asfixiados pelos gases, todos entram em ação: os mais experientes – alguns deles licenciados do exército – vão com seus escudos e paus para repelir a polícia. Outros, da retaguarda fornecem vinagre, toalhas, máscaras e água aos que saem do epicentro; e outros atendem os feridos em macas improvisadas. Inclusive, entre os que correm para protegerem-se das bombas, alguns são vistos carregando grandes panelas de comida preparada para alimentar os manifestantes.
No início, na Plaza 2 de mayo, onde começou a concentração, havia voluntários distribuindo comida e garrafas de água a todos. Assim a luta se desenvolve. Do lado de dentro, uma precária organização onde, os que participam dela, mostram um enorme grau de irmandade, se apoiam, dão-se as mãos, se ajudam. Do lado de fora a ajuda é infinita. As pessoas da rua aplaudem e somam seus gritos, outros dão garrafas de água e alimentos aos manifestantes.
O resultado desse dia de luta é de vários detidos, feridos e uma cidade envolta no caos. Até o dia seguinte.
O caos e a crise se espalham
Todos os dias é assim em Lima. E é mais grave nas localidades em conflito, que abrangem o Sul (11 regiões) e vários pontos do país.
Na quarta-feira 25, os manifestantes se dirigiram à embaixada dos EUA, e outra coluna se deslocou para o centro residencial de San Isidro procurando “tocar outras fibras”. Na quinta 26, uma grande marcha das delegações do interior saiu de «Puente Piedra» (25 km ao norte de Lima) em direção ao centro, com a presença de moradores de bairros pobres locais, fechando toda a via principal. Na sexta 27, outra marcha foi realizada, da zona Leste (San Juan del Lurigancho, o maior bairro da capital), também em direção ao centro. Nesse mesmo dia, em Ica, um novo enfrentamento com a polícia deixou um saldo de mais de 30 feridos em ambos lados, entre eles um policial em estado grave.
No momento de fechar este artigo, milhares de estudantes universitários e delegações do interior realizam outra marcha pelo centro.
O caos parece não ter fim. Mas seus estragos são mais sentidos nas zonas mais convulsionadas onde os manifestantes exercem o controle. Há desabastecimento de tudo que é essencial, e o que há é vendido a preços proibitivos: em Madre de Dios (oriente peruano), o botijão doméstico de GLP chega a custar 100 dólares. Os caixas automáticos não têm dinheiro. Produtores são vistos jogando fora seus produtos, como o leite, ou tentando arrematá-los. A economia local de muitos deles que vivem da pequena produção e do comércio, parecem arruinados. Os grandes negócios também sofrem o impacto: algumas mineradoras (Antapaccay, Cusco), suspenderam suas operações; os grandes agroexportadores sofrem grandes perdas nas safras não realizadas e produtos que não podem transportar. O turismo (um dos principais rendimentos destas economias, sobretudo de Cusco), está parado: Machu Picchu está vazio. E, em geral, a economia nacional, parece paralisada, aprofundando a sensação de desespero.
O sofrimento da população que luta não tem como ser descrito. Ela se mantém estoicamente porque sabe que diante de uma luta não somente justa, mas também diante de um desafio onde sentem que o governo lhes declarou guerra e, frente a ela, não há como voltar atrás, mesmo à custa de causar mais dor e a possibilidade de perder a própria vida.
Governo em crise
Após sua pretensa solidez (assim como seu pretenso controle da situação), o governo começa a fazer água. Sua política repressiva fracassou e só aumentou os protestos e a convulsão social.
O governo de Boluarte foi instalado e é sustentado pelo apoio da direita do Congresso, um setor que conta entre suas fileiras com altos oficiais aposentados das FFAA que estiveram na luta contra-subversiva dos anos 80 e 90; o próprio presidente do Congresso é um ex general com acusações de delitos de lesa humanidade.
Para tal setor, com a eleição de Pedro Castillo (junho 2021) foi o Sendero (Sendero Luminoso) quem tomou o poder, e por isso não lhe deram trégua até conseguirem depô-lo. Depois de comemorar este ato, veem nas manifestações uma “ressaca” da subversão e por isso, junto com a grande mídia que lhe faz coro, incentivam que se descarregue toda a repressão sobre elas. Já são 60 mortos. E sob amparo do “estado de emergência” produz todo tipo de arbitrariedades, como a invasão em locais partidários, a invasão à Universidade de San Marcos, a detenção indiscriminada de ativistas. O pior é que estas detenções são realizadas sob a acusação de “terrorismo”. Os dirigentes da FREDEPA (Frente de Defesa de Ayacucho), foram presos pela DIRCORTE, onde se tenta processá-los por “terrorismo” usando como única prova que tenham se “pronunciado” por uma Assembleia Constituinte.
Associado ao setor de direita atua o chamado centro político (os partidos velhos e novos da burguesia), que veem nestas mobilizações uma ameaça ao regime democrático sobre o qual assentam seu poder, e também querem que sejam derrotados, embora com “formas” mais legais e constitucionais, mas não menos suaves. O primeiro ministro Otárola atua como nexo direto da ala mais conservadora do Congresso com o Governo, enquanto que Boluarte ziguezagueia entre ambos os lados.
Mas, ao fracassar a investida repressiva, Boluarte pretendeu renunciar, alguns de seus ministros a abandonaram e se mantém em meio a contramarchas, sustentada por esses setores que querem que ela lhes prepare o caminho antes das eleições.
Uma nova frente se abriu para Boluarte no setor externo. Ao reconhecimento inicial que a maioria dos países lhe deram, agora os pronunciamentos são quase unânimes contra a flagrante violação dos Direitos Humanos e a necessidade de uma saída política para a crise que sacode o país. Neste sentido, chegam pronunciamentos desde o Vaticano até a ONU e a OEA. O pronunciamento de Boric, presidente do Chile, foi particularmente firme, quando disse: “as pessoas que saem para marchar são baleadas por aqueles que devem defendê-los”. A própria Comissão de Direitos Humanos (CIDH) emitiu um informe que é um escândalo mundial: as mortes produzidas, em sua maioria, respondem a um padrão: são disparos dirigidos à cabeça ou à região abdominal, com o fim de matar, e não de dissuadir, e as vítimas em sua maioria nem se encontravam na primeira linha.
O governo pretende enfrentar a todos no terreno diplomático, e seus discursos para o exterior (Boluarte se apresentou online em uma audiência com a OEA), são tão falaciosos que ninguém acredita. O regime está encurralado aqui e no exterior.
Ainda assim, um setor, a extrema direita, quer ir até o fim e alcançar seu objetivo de derrotar a rebelião; o outro facilita uma saída, agora oferecendo antecipar mais a convocação às eleições, mas mantendo Boluarte até o momento de ocorrer a transferência.
A saída
Neste contexto o próprio posicionamento das classes fundamentais tende a mudar. Setores importantes das classes médias, que assustados pelos “violentos”, apoiavam ou se calavam diante da repressão sangrenta, agora respaldam parte das exigências, como a rejeição à repressão e a antecipação das eleições. A burguesia, se distancia de sua ala direita que mostra disposição de levá-la à beira do precipício, e agora se inclina pela antecipação das eleições para o final deste ano, em uma espécie de mal menor, ao menos para evitar um maior agravamento e ganhar tempo enquanto faz um novo plano. Certamente isto não vai ao encontro da exigência fundamental dos manifestantes que, no mínimo, querem a cabeça de Boluarte. Mas jogam para isolá-la voltando a colocar os setores democráticos do seu lado, e pensam em aproveitar a angústia que é vivida nas localidades em conflito.
A máxima expressão desta relocalização é dada pelo fujimorismo. Este partido com uma forte presença no Congresso, passou de escorar a política oficial a propor o adiantamento das eleições para este ano (outubro), coincidindo com a plêiade democrática e a esquerda reformista de Verónica Mendoza. A proposta implica em uma mudança do acordo anterior (adotado também sob a pressão das lutas de 29 de dezembro), de realizar eleições em abril de 2024, e deve ser aprovada até segunda dia 31, data em que encerra a presente legislatura. A segunda legislatura, convocada para 15 de fevereiro, votaria a ratificação. Mas a aprovação pelo Congresso destas mudanças para “sair” da crise não é nada fácil.
A votação requer mais de dois terços de votos (87) e para alcançá-la requer um acordo multipartidário, de tal forma que a mera oposição de um dos blocos parlamentares impossibilita um acordo. O debate da proposta na noite de 27 de janeiro produziu uma votação de 45 a favor da antecipação das eleições para outubro deste ano (e de 65 contra); mostrando que estão muito longe dos 87 que precisam.
Por isso, a crise vai se agravar mais antes de encontrar alguma saída. Assim, as manifestações e os choques vão crescer estes dias e sob o fogo das diversas forças do parlamento esticarão como chiclete todas as possibilidades de dilatar seus comandos.
Sabendo dessa realidade, os manifestantes propõem como saída – que é a única viável do seu ponto de vista – a queda de Boluarte. Não só porque é responsável pelas mortes, mas também porque com ela se precipitaria a convocação para as eleições, de acordo com a Constituição.
Mas conseguir esta saída implica uma luta maior. Trata-se de vencer a política da central que continua sendo acompanhar a luta e não transformá-la em sua para garantir a vitória de suas exigências fundamentais. E da própria “esquerda” reformista, que centraliza tudo na saída parlamentar: alguns aliados do fujimorismo para aprovar o projeto de antecipação das eleições para outubro, e outros (Bloco Magisterial e Peru Livre) aliando-se aos outros setores de direita que se opõem.
Tradução: Lilian Enck