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sexta-feira, abril 19, 2024

Peru: Quem são os violentos e por que temos direito à legítima defesa?

Na noite de 19 de janeiro, Dina Boluarte enviou uma “mensagem à nação”. Com absoluto cinismo, um governo que assassinou 50 pessoas em seus primeiros 44 dias, feriu quase 800 pessoas e deteve mais de 370, declarou que “todo o peso da lei recairá” sobre aqueles que praticaram “atos violentos”. nos protestos.

Por: Victor Montes

Os meios de comunicação rapidamente compreenderam a mensagem: tinha que redobrar a “cruzada” contra os povos em luta, acusando-os de “vândalos”, “violentos” e “criminosos”, quando não de “terroristas” (ou como dizem aqui, “terrucos “).

Não é uma campanha gratuita. A mesma mídia que em novembro de 2020 denunciou a brutalidade da repressão policial quando estourou o protesto contra o governo Merino, e que considerou inaceitável o assassinato de Inti Sotelo e Brian Pintado, hoje faz escândalo e prega a submissão dos protestos ao “império da lei”, aos canais de “protesto pacífico”, e colocam a polícia como vítima. O que mudou?

De onde vem a violência?

Os trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, assim como as comunidades que enfrentam os abusos das mineradoras, das petrolíferas ou das agroindustriais. Que enfrentam demissões, baixos salários, violações de seus direitos. Que durante a pandemia tiveram seus mortos diante do colapso do sistema de saúde sufocado pela política neoliberal imposta pelos governos dos últimos 32 anos… sabem que infelizmente, sem sair à luta, não há possibilidade de encontrar soluções para suas demandas. E dizemos “infelizmente”, porque ninguém sai às ruas para lutar, pelo simples prazer de fazê-lo.

É esta realidade que, em primeiro lugar, lhes violenta dia após dia, colocando em risco a sua sobrevivência e a das suas famílias, enquanto um punhado de grandes empresas enchem os bolsos com a riqueza e o trabalho desta terra. E é essa realidade que os leva a protestar.

No entanto, quem foi à luta também sabe que, além da absoluta intransigência das empresas, que ignoram as reivindicações com a cumplicidade das autoridades governamentais, encontrarão a polícia protegendo os patrões e seus interesses, contra quem lutam.

E a polícia faz o seu trabalho: provoca os que se mobilizam, de modo a propiciar um confronto que lhes permita dispersar a ação de combate, prender pessoas e decapitar o movimento.

E quando não conseguem deter a mobilização dessa forma, por sua massificação e combatividade, passam a reprimir com maior violência, utilizando suas armas de fogo, atirando chumbinhos, bombas e balas nos corpos dos que se mobilizam.

Pior ainda quando, no meio desta situação, o governo decreta o estado de emergência, que cerceia direitos fundamentais, e entrega parcial ou totalmente o controle da “ordem pública” às Forças Armadas… Aí sim, aumenta o número de pessoas que morre pelas suas balas, ou que acabam na prisão. Como está acontecendo agora.

E tudo para quê? Para silenciar o protesto. Para não ter que dar solução às justas demandas dos que lutam. Em outras palavras, para manter o controle da situação e evitar que a ordem existente seja questionada: seu poder.

E esse é o papel fundamental das forças armadas e policiais: defender, pelo uso da força (violência), a ordem dos que controlam a economia (grandes empresas) e decidem à vontade por meio de seus partidos políticos corruptos, seja em “democracia” ou sob governos ditatoriais ou autoritários.

Em defesa dos seus interesses

Por isso mesmo, hoje, ao contrário de 2020, a mídia esbraveja elogios em uníssono à ação (repressão) policial: porque depois de 17 meses com Pedro Castillo (assediando-o permanentemente), as grandes empresas se livraram de seu governo. Um governo que, embora tenha mantido incólume a política econômica neoliberal, herdada da ditadura de Fujimori, expressou de forma distorcida o anseio por mudanças profundas das massas empobrecidas e exploradas do país, que acreditaram em Castillo e seu programa, e que também construíram uma estreita identificação com ele, a partir de sua origem andina e camponesa.

Hoje a violência da polícia e das forças armadas defende a um governo que os patrões têm diretamente nas mãos.

E por isso, embora Boluarte tente se apresentar como conciliadora, todos os seus apelos ao diálogo são uma “mesedora” [1] que serve de pretexto para invalidar as ações de protesto, a fim de enquadrar a mobilização no que chamam de “protesto pacífico”, o que na verdade significa aceitar que só podemos nos mobilizar nos lugares que o governo diga, gritando nossas palavras de ordem no volume que o governo diga, e somente quando o governo diga…

Quem hoje apoia a violência do Estado?

Essa visão do que deveria ser um “protesto” (uma caminhada estéril em voz baixa), que expressa o interesse de grandes empresas, é apoiada no país por setores da chamada “classe média” nas cidades, que foram convencidas pelo discurso reacionário do governo e da mídia, que identificam os protestos com as ações terroristas realizadas por grupos como o Sendero Luminoso nas décadas de 1980 e 1990. Assim como por aqueles que se convenceram dos “benefícios” da modelo econômico neoliberal durante o “boom” dos preços das matérias-primas (2004-2013 aproximadamente), e desprezam o povo do interior, para as quais só têm adjetivos racistas e humilhantes.

São esses setores que clamam a favor da “imposição da ordem” no país, ou seja, que seja reprimida e que se acabe com a mobilização, custe o que custar. São esses mesmos setores que, arrastando atrás de si setores ainda mais precários e pobres da cidade, compõem alguns grupos de choque que não hesitam em usar seus próprios métodos violentos contra aqueles que se mobilizam. Evidentemente, contra esses grupos de choque, a polícia nunca disparou um único tiro.

Temos o direito de nos defender da repressão!

Repressão em frente ao Aeroporto Rodríguez Ballón, no marco da Paralisação Nacional de 19 de janeiro no Peru, foto: DPA

É esta realidade, a violência que o Estado desencadeia por meio das forças armadas e policiais contra os que se manifestam, e a indolência do governo diante de suas reivindicações, que obriga os setores em luta a realizarem medidas mais radicais (tomadas de imóveis, bloqueios de estrada).

E é para se defender da ação repressiva da polícia e das forças armadas, que usam suas espingardas de chumbinho e pistolas, e mesmo seus fuzis de guerra, que as comunidades rurais saem à luta com o que têm em mãos: tábuas, paus, pedras, warakas[2]… O que tem a ver com isso uma suposta conspiração “violenta” ou “terrorista” de que falam o governo e a mídia?

Além disso, depois de 50 pessoas terem sido assassinadas pela repressão, o mínimo que qualquer organização que sai à luta deve fazer é pensar com antecedência na forma como vai se defender da polícia e das forças armadas, e quando possível, como avançar em suas posições para atingir os objetivos da luta.

Por isso é fundamental que, a partir das organizações operárias, camponesas e populares, reivindiquemos o direito à autodefesa: nos defendermos da ação violenta do Estado que, através do governo atual (no caso peruano, hoje, o de Boluarte e do Congresso), quer silenciar o protesto com balas. Assim como fez o povo chileno durante a explosão de 2019 (a chamada “primeira linha”) ou o povo do Vale do Tambo em sua luta contra Tía María (os “espartambos”).

Esta é uma necessidade urgente da luta em curso, que infelizmente enfrenta, além do discurso oficial, com a política da direção das centrais (como a CGTP) e dos partidos reformistas (Nuevo Perú, PC-Unidad ou Patria Roja) que se autodenominam “de esquerda”, que, presos à lógica do “protesto pacífico”, desistiram de enfrentar a repressão do governo. Inclusive abandonaram a mobilização na primeira bomba de gás lacrimogêneo, como demonstraram em 19 de janeiro.

Por isso, defender o direito à legítima defesa deve ser uma conquista da organização da base operária e popular, que não pode permitir que o governo continue matando impunemente aqueles que cometem o único “delito” de lutar.

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[1] Termo que no Peru se refere a perda de tempo ou engano.

[2] Arma tradicionalmente usada para caça e guerra. É confeccionada com uma faixa estreita de tecido com uma volumosa expansão central e pontas mais finas. Utiliza-se colocando uma pedra ou projétil na área central, mais larga, fazendo girar a pedra enrolada no pano, segurando o artefato pelas pontas, e então lançando o projétil soltando uma das pontas do waraka.

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