sáb jul 27, 2024
sábado, julho 27, 2024

O elefante na sala: Israel assassinou Shireen Abu Akleh

Na primeira hora da manhã de 11 de maio, na cidade palestina de Jenin, a jornalista palestino-estadunidense Shireen Abu Akleh foi assassinada por francoatiradores israelenses. Os fatos básicos do caso foram confirmados por muitas investigações independentes para contá-las naquele momento. Segundo os principais meios de comunicação[1], Shireen caminhava pela rodovia em direção à cidade com um grupo de outros jornalistas, e não havia mais pessoas presentes além de um grupo de atiradores de elite israelenses que lhe  dispararam na cabeça.

Por: James Markin

Embora o governo israelense tentasse inicialmente culpar os palestinos, o peso esmagador das provas os obrigou inclusive a recuar e a aceitar mais ou menos os fatos apresentados pelas investigações da mídia. Entretanto, apesar de admitir essencialmente que atiraram e mataram Shireen Abu Akleh, as FDI foram muito claros ao afirmar que não acreditam que tenha sido cometido algum crime[2].

Isto coincide com a política básica das FDI. Segundo dados da ONU, desde 2008 as forças israelenses  mataram 5.396 palestinos. Entretanto, apesar disso, a Anistia Internacional não encontrou nenhum caso no qual “um soldado do exército israelense ou um membro de outra força de segurança tenha sido condenado por causar deliberadamente a morte de um palestino nos TOP (Territórios Ocupados na Palestina) desde 1987″[3].

Apenas com estes números, fica evidente que as FDI matam impunemente. Isto é devido ao fato de que, para as FDI, matar os palestinos, por assim dizer, não é na realidade um desvio criminoso de sua função, mas é a sua função. Israel é uma colônia de substituição; trata-se de um tipo especial de colônia na qual o regime colonial pretende substituir uma população nativa existente por uma nova população colonial. Desde sua criação, o movimento sionista pretendia expulsar a população palestina pela força. Ao expulsar os palestinos e apoderar-se de suas terras, o Estado israelense também se enriquece à custa do povo palestino, um processo que Marx denominou de acumulação primitiva.

Obviamente, porém, o povo palestino resistiu a este processo de deslocamento. Esta é a razão da existência das FDI, como escreveu o líder sionista de extrema direita Ze’ev Jabotinsky: “A colonização sionista deve deter-se, ou então, avançar sem ter em conta a população nativa. O que significa que só pode avançar e desenvolver-se sob a proteção de um poder independente da população nativa, detrás de um muro de ferro, que a população nativa não pode romper”. Este é o papel das FDI, reprimir a população palestina pela força para que a colonização sionista possa continuar. Para as FDI qualquer palestino que morra no processo é simplesmente uma vantagem. Enquanto continuar o processo de colonização sionista da Palestina por parte de Israel, nenhum palestino pode esperar realmente que se faça justiça no tratamento que recebe das FDI.

Isto não quer dizer que o fato de que Shireen Abu Akleh fosse jornalista não tenha nenhuma relação com sua morte. Na verdade, as FDI tem um padrão de assassinatos de jornalistas. Em 2018, durante a “grande marcha de retorno” em Gaza, franco-atiradores das FDI atiraram e mataram dois jornalistas palestinos, Yasser Murtaja e Ahmed Abu Hussein, que usavam coletes que os identificavam como imprensa. Uma investigação da comissão da ONU encontrou “motivos razoáveis para acreditar que os franco-atiradores israelenses atiraram nos jornalistas intencionalmente, apesar de verem que estavam claramente identificados como tais”. Os franco-atiradores não apenas sabiam nitidamente que Yasser Murtaja e Ahmed Abu Hussein eram jornalistas pelos seus coletes de imprensa, mas apontaram intencionalmente sob a parte inferior dos coletes para matarem seus objetivos[4].

Durante a guerra do ano passado em Gaza, os aviões de guerra israelenses apontaram e bombardearam o edifício da Al Jazeera/Associated Press, assim como outra torre que abrigava a maior parte da imprensa internacional da cidade de Gaza[5]. Embora Israel afirmasse que o grupo militante Hamás usava o edifício, esta afirmação foi recebida com ceticismo pela mídia internacional e foi rechaçada categoricamente pela Agência de Obras Públicas e Socorro das Nações Unidas (UNRWA), que qualificou a afirmação de “desinformação”.

Além disso, embora a morte de Shireen Abu Akleh  tenha provocado a indignação internacional devido à sua condição de figura querida no mundo da mídia de língua árabe, não foi a única jornalista que as FDI assassinaram este ano. Menos de um mês depois da morte de Abu Akleh, Ghufran Harun Warasneh foi abatida pelas FDI em Hebron quando se dirigia ao seu trabalho em um canal de notícias de televisão [6]. A razão das FDI para atacar e matar os jornalistas é evidente: os jornalistas mortos não podem denunciar os crimes das FDI. Ao matar Yasser Murtaja, Ahmed Abu Hussein, Ghufran Harun Warasneh, Shireen Abu Akleh e tantos outros, as FDI tentam intimidar os palestinos e impedir a cobertura mediática da sua colonização atual da Palestina.

Algumas pessoas poderiam esperar que o presidente Biden desaprovasse o comportamento de Israel, dado que se autoproclamou campeão da imprensa livre. Por exemplo, no início deste ano, Biden emitiu uma declaração por ocasião do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa na qual criticava as medidas repressivas da Rússia contra a imprensa livre e afirmava que “os jornalistas cobrem a guerra, denunciam a corrupção, documentam os danos ambientais, erguem os marginalizados, defendem nossas comunidades e pedem contas aos poderosos. E por isso, com muita frequência, são assassinados, presos, violados, ameaçados e acossados. As mulheres jornalistas, há muito tempo minoritárias nas redações, são um objetivo desproporcional destes ataques, tanto dentro como fora da rede” [7] Continuou prometendo que “podemos e devemos fazer mais para proteger e apoiar a mídia independente, e para prestar contas a aqueles que tentam silenciar as vozes essenciais para uma governança transparente, digna de confiança e receptiva”. Isto é coerente com a postura geral dos Estados Unidos de defender retoricamente os ideais liberais na política externa.

Entretanto, os supostos valores liberais dos EUA estão completamente subordinados aos seus interesses como potência imperialista global. No caso da morte de Shireen Abu Akleh, Joe Biden quer manter a relação dos Estados Unidos com Israel, que é um sócio menor fundamental para os Estados Unidos no Oriente Médio. O forte compromisso militar e ideológico de Israel para opor-se ao nacionalismo árabe e ao comunismo faz com que este se encaixe perfeitamente com os EUA. Desde 1968, os EUA e Israel têm colaborado para desmantelar e opor-se a essas forças políticas que poderiam ter desafiado o acesso dos EUA à riqueza econômica do Oriente Médio, incluída a riqueza petroleira da região. De fato, em 1986, Biden explicou ao Senado estadunidense: “Se não existisse Israel, os Estados Unidos de América teriam que inventar um Israel para proteger seus interesses na região”. Reiteradas vezes, os Estados Unidos optaram por defender sócios menores como Israel ao invés de defender seus supostos valores liberais.

O caso de Shireen Abu Akleh o torna mais evidente que nunca, já que a retórica de Biden sobre a proteção das jornalistas da violência se choca com as ações de sua administração em resposta à sua morte. Após a morte de Shireen Abu Akleh, o governo estadunidense levou a cabo sua própria investigação, nos bastidores, sobre sua morte. As conclusões, de apenas alguns parágrafos, foram publicadas no site do Departamento de Estado. O relatório concluía que “os disparos a partir de posições das FDI foram provavelmente responsáveis pela morte de de Shireen Abu Akleh”. Entretanto, o Departamento de Estado esclareceu que a investigação “não encontrou nenhuma razão para acreditar que foi intencional, mas o resultado de circunstâncias trágicas durante uma operação militar dirigida pelas FDI contra facções da Jihad Islâmica Palestina em 11 de maio de 2022, em Jenin, que se seguiu a uma série de atentados terroristas em Israel”.

Trata-se, com certeza, de uma declaração absurda, dado que todas as investigações concordam que não havia mais ninguém presente quando Shireen foi assassinada, salvo seus companheiros jornalistas. O Departamento de Estado parece esperar que o mundo acredite que uma unidade de elite de atiradores das FDI disparou por acidente contra uma mulher que usava um colete de imprensa muito evidente, sem que houvesse combatentes presentes. Biden continuou repetindo esta linha durante sua visita ao presidente da Autoridade Palestina, Mahmud Abbas, aquele mês, dizendo-lhe que “os Estados Unidos continuarão defendendo a liberdade de imprensa em todo o mundo”[8] A realidade desta declaração, certamente, é que Biden não fez nada para pressionar Israel para que castigue ou mesmo identifique o assassino de Akleh.

Israel não é o único país cujos crimes Biden está disposto a ignorar por ser sócio menor do imperialismo estadunidense. No início deste ano, quando o corpo do economista dissidente egípcio Ayman Hadhoud foi devolvido à sua esposa com marcas que sugeriam que tinha sido torturado até à morte pelo exército egípcio, o Departamento de Estado não condenou o governo egípcio por este evidente e brutal assassinato. Em vez disso, o porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, qualificou o caso de “profundamente preocupante” e fez um chamado aos egípcios para que conduzissem uma “investigação exaustiva, transparente e confiável” sem demora”[9] Como no caso de Shireen Abu Akleh, o Departamento de Estado sabia muito bem quem tinha matado Ayman Hadhoud, e não se importou. Sua morte não provocou nenhuma mudança na antiga política dos Estados Unidos de vender armas ao regime militar egípcio pelo valor de bilhões de dólares. Como Israel, o Egito desempenha um papel fundamental para assegurar o domínio militar estadunidense no Oriente Médio e, portanto, como Israel, os Estados Unidos se contenta em ignorar os brutais crimes cometidos contra pessoas comuns para continuar sua relação.

Por esta razão, Shireen Abu Akleh continua sendo o elefante na sala cada vez que Biden ou seu Departamento de Estado falam de direitos civis ou de liberdade de imprensa. As provas da culpabilidade de Israel são nítidas como água e, no entanto, os Estados Unidos continuam mantendo sua estreita relação militar e política com Israel sem nenhuma mudança. Biden podem afirmar que apoia a liberdade de imprensa, mas suas ações falam mais que as palavras.

Os trabalhadores estadunidenses tem que demonstrar que estamos do lado do povo palestino e que rechaçamos o governo imperialista de Washington. Por isso, temos que pedir aos nossos sindicatos e instituições comunitárias que respaldem o movimento BDS e continuem construindo a solidariedade e o apoio à luta palestina.

Fotos: Palestinos pintam um mural em memória de Shireen Abu Akleh na cidade de Gaza, em 12 de maio. (Ashraf Amra / APA Images. (Abaixo) Protesto em Belém, 12 de miyo. (Hazen Baer / AFP / Getty Images)

NOTAS:

[1] https://www.haaretz.com/israel-news/.premium-palestinian-gunman-in-idf-video-unlikely-to-have-killed-al-jazeera-1.10795122, AP: https://apnews.com/article/politics-west-bank-middle-east-israel-8df6c999627efcef2fe0ca2b401e7a2c, CNN: https://www.cnn.com/2022/05/24/middleeast/shireen-abu-akleh-jenin-killing-investigation-cmd-intl/index.html, e The New York Times: https://www.nytimes.com/2022/06/20/world/middleeast/palestian-journalist-killing-shireen.html, entre outros.

[2] https://www.theguardian.com/world/2022/may/19/israel-will-not-hold-criminal-inquiry-into-killing-of-journalist-shireen-abu-aqleh)

[3] https://www.amnesty.org/en/documents/mde15/5141/2022/en/)

[4] https://www.ohchr.org/sites/default/files/Documents/HRBodies/HRCouncil/CoIOPT/A_HRC_40_74.pdf

[5] https://www.vox.com/2021/5/15/22437688/ap-al-jazeera-gaza-news-bureau-destroyed-live-israel-airstrike

[6] https://www.womeninjournalism.org/threats-all/israel-ghufran-harun-warasneh-second-palestinian-woman-journalist-killed-in-west-bank-in-a-month

[7] https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/05/03/statement-by-president-joe-biden-on-the-occasion-of-world-press-freedom-day-2022/

[8] https://www.aljazeera.com/news/2022/7/15/palestinians-expect-little-as-biden-travels-to-occupied-west-bank)

[9] https://www.reuters.com/world/middle-east/us-state-dept-says-death-egyptian-research-requires-investigation-2022-05-02/

Tradução: Lilian Enck

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