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quinta-feira, março 28, 2024

Marxismo: das ciências humanas à crítica da ciência burguesa

Neste artigo encerramos a série a respeito das concepções burguesas. Em nove números anteriores do jornal Opinião Socialista, tratamos de várias delas: das visões liberais, keynesianas, conservadoras, positivistas, pós-modernas, dentre outras. Neste artigo final não vamos tratar de nenhuma concepção burguesa particular. Antes, trataremos de alguns aspectos de fundo que caracterizam todas elas, bem como da diferença em relação ao marxismo.

Por: Gustavo Machado

Todas as ciências burguesas são ilusórias

A rigor, não há ciência burguesa e nunca existirá. Ao menos, não uma ciência digna desse nome. E isso não acontece porque a burguesia e seus porta-vozes são burros. Essa ciência é simplesmente impossível. Não é possível racionalizar o capitalismo, pois ele é irracional. Não é possível controlar o capitalismo, porque ele é incontrolável. Como diz Marx no prefácio de O Capital: “A economia política só pode permanecer ciência enquanto a luta de classes permanecer latente ou se revelar apenas em fenômenos isolados.”

Múltiplas faces do capital

Toda solução para os problemas do capitalismo, sem romper com ele, será, no melhor dos casos, provisória. Uma maior abertura do mercado exige, depois, a intervenção estatal para resolver os problemas do mercado. A intervenção estatal exige uma nova abertura do mercado para resolver os problemas da intervenção estatal. Toda solução será sempre uma falsa solução, uma “sinuca de bico”. Uma forma de jogar o problema para a frente, tornando-o ainda maior.

Nesse sentido, o keynesianismo não é o oposto do liberalismo. O conservadorismo não é o oposto do pós-modernismo. Essas concepções são diferentes. Não há dúvidas sobre isso. Podemos até considerar um ou outro elemento isolado como sendo pior ou melhor do que o do outro. No conjunto, contudo, todas estão a serviço da mesma finalidade: a perpetuação do capitalismo. Mais do que isso. O próprio capitalismo necessita, em situações e contextos históricos distintos, de uma ênfase maior em um ou outro dos elementos que o constituem. O capitalismo necessita tanto de liberais como de intervencionistas, tanto de pacifistas como de militaristas, tanto de conservadores como de reformistas.

Capitalismo com rosto humano não existe

O que é pior. Os mais perigosos são aqueles que defendem a manutenção do capitalismo por meio de reformas e mudanças nesse ou naquele pormenor. Um capitalismo com rosto humano, com menos desigualdades, com mais distribuição de renda e por aí vai. Essas concepções estão mais bem situadas para ganhar setores da classe trabalhadora cada vez mais descontentes e massacrados pelo próprio sistema capitalista. Não são inimigos externos e declarados, mas inimigos internos e camuflados de irmãos.

Tanto é assim que se repassarmos todos os combates teóricos de Marx, raras vezes ele abre fogo contra autores positivistas ou liberais, abertamente defensores do capitalismo. Sobretudo no debate público. Ao contrário, seus oponentes principais são socialistas utópicos e reformistas que atuam no interior da classe trabalhadora, procurando iludi-la quanto à possibilidade de reformas e adequações duradouras no próprio capitalismo.

Eis que, nesse ponto, entra uma questão fundamental. Como o marxismo combateu historicamente esse emaranhado de concepções e ideologias que procuram iludir a classe trabalhadora? Iludir quanto às possibilidades do próprio capitalismo?

Para além das ilusões

A base material de todas as ideologias burguesas

O que procuramos mostrar em todos os artigos anteriores é que as ideologias burguesas não pairam nas nuvens. Todas elas têm uma base material. É o próprio capitalismo que produz, objetivamente, a possibilidade das ilusões que as ideologias burguesas – incluindo as reformistas – produzem.

Os indivíduos aparecem objetivamente como átomos soltos no mercado. Parecem depender apenas de si mesmos e de seu mérito individual. O Estado aparece como algo separado dos indivíduos que compram e vendem no mercado. Parece pairar acima dos indivíduos e das classes sociais, como se fosse algo neutro e independente, capaz de tudo gerir e conciliar de fora. Por isso, também parece ser possível resolver os problemas do mundo por meio de uma ciência de Estado, como quiseram os positivistas e, mesmo, os fascistas. Como o vínculo social entre as pessoas está apagado pela mediação do dinheiro, parecem existir apenas indivíduos com seus pensamentos independentes. Tudo parece ser uma questão de discursos e narrativas produzidos por indivíduos espertos. Como o dinheiro parece controlar de fora toda riqueza e investimentos, parece ser possível resolver os problemas da sociedade emitindo dinheiro ou com política monetária. Parece… só que não.

Ao vincular e entender as diversas conexões reais desses modos de aparecer, tudo é subvertido e invertido.

Os indivíduos soltos no mercado, que compram e vendem, são a forma que o capitalismo precisa para comprar a força de trabalho e esfolá-la até a medula para produzir riqueza como capital de uns poucos. O Estado aparece como separado, para garantir a igualdade formal entre os indivíduos que compram e vendem mercadorias. Ao fazê-lo, perpetua a diferença de conteúdo entre aqueles que possuem todos os meios de produção e os que só possuem a si mesmos. A diferença entre aqueles que podem vender as mercadorias de sua propriedade por meio de intermediários, sentados em sua mansão ou dirigindo sua Ferrari, e aqueles que só possuem a sua capacidade de trabalho para vender. Para seu azar, o trabalhador não pode separar sua capacidade de trabalho de seu corpo. Tem que ir com ela ao local de produção para que ela seja consumida, curtida e esfolada pelo capitalista que a comprou.

A separação da forma da riqueza de seu conteúdo, dinheiro da mercadoria, permite ao trabalho excedente da classe trabalhadora circular livremente entre os proprietários. Em seguida, ele é dividido entre os capitalistas banqueiros, comerciais, proprietários de terra, acionistas etc.. Migram do Brasil para os bilionários no centro do imperialismo. E assim por diante.

É assim que se é verdade que as ilusões reformistas e burguesas possuem uma base material, o marxismo também possui. O capitalismo conduz os trabalhadores a se organizarem para lutar pelo emprego, pela manutenção da renda e em função da manutenção dos direitos já adquiridos ou por adquirir. Leva-nos a se reconhecerem como membros de uma classe social, membros da classe trabalhadora contraposta à classe dos patrões e dos empresários. O fracasso dos regimes e dos governos na eterna tentativa de aplicar uma dada ciência burguesa leva, em todos os tempos e lugares, multidões às ruas por não mais reconhecerem um dado regime e um dado governo como sendo seus. Por não mais os tolerarem.

Nossos objetivos

Os marxistas querem transformar a realidade

Quem vencerá essa batalha? Os marxistas ou os que querem conservar o capitalismo? Ora, como vimos, o resultado não está definido. Ambas as vias possuem uma base material e social. O resultado depende da nossa intervenção consciente no interior do processo. Marxistas não reclamam da realidade. O marxismo é uma ciência porque parte da realidade tal como ela é, procura compreendê-la. Identifica as possibilidades existentes para transformar a realidade.

A grande dificuldade para os marxistas é que as conclusões a que chegam não dependem de um ou outro aspecto isolado do capitalismo. Dependem que se conheça o capitalismo em sua totalidade, em suas conexões, superando a unilateralidade com que aparece. Os militantes marxistas devem estudar e conhecer o capitalismo a fundo. Esse é o grande desafio. Não apenas para fazerem disputas teóricas e ideológicas, mas para conseguir intervir de modo a conduzir as ilusões que dominam as massas trabalhadoras à conclusão revolucionária e à necessidade de destruir o capitalismo.

A grande vantagem, contudo, é que os marxistas não têm nada a esconder, a ocultar. Podem chamar as coisas pelo nome, e não necessitam esconder seus interesses particulares em categorias gerais. Têm a seu favor as necessidades das massas trabalhadoras, cada vez mais ameaçadas pelo próprio sistema capitalista.

Para combatermos de modo consequente as concepções reformistas e diretamente capitalistas, precisamos, ainda, entender as bases materiais que fazem com que as ilusões burguesas de todos os tipos façam sentido na cabeça de milhões de trabalhadores. Sem isso, existirá um abismo entre o discurso e a realidade, entre a finalidade de destruir o capitalismo e a consciência ilusória de que é possível resolver os problemas sociais que a todos afligem sem destruir o capitalismo. Para tal, não se deve ocultar o nosso programa e sua finalidade nem por um só segundo, tampouco deve-se reproduzir as ilusões, rebaixando a intervenção e o programa a elas. Mas deve-se dialogar com a classe para que ela possa tirar as conclusões corretas de cada processo, e não fazer imposições e ultimatos. Esse é o grande desafio do marxismo desde seu surgimento e continua a ser nos dias de hoje.

A questão central para a teoria marxista não é acadêmica, não está relacionada à observação e à previsão, mantendo uma postura neutra. Seu papel consiste na contribuição que faz em trazer o proletariado para a consciência de sua tarefa: a supressão do capitalismo.

 

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