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Brasil

Bolsonaro é o culpado pelos assassinatos de Bruno e Dom

junho 16, 2022

Dói na alma assistir o vídeo de Bruno Pereira entoando cânticos indígenas no meio da floresta. Um dos mais talentosos indigenistas do país, dedicado na defesa dos povos originários, especialista em povos isolados, foi exonerado pela chefia da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2019 por fazer seu trabalho com excelência: ter coragem de conduzir uma operação que expulsou centenas de garimpeiros da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Naquele tempo, Bolsonaro já defendia garimpeiros em Terras Indígenas e, algum tempo depois, chegou a visitar uma região de garimpo ilegal na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no município de Uiramutã, também em Roraima.

Por: Jeferson Choma

Desde o último dia 5 de junho, Bruno e o jornalista inglês Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian, desapareceram no Vale do Javari, na Amazônia, quando faziam o trajeto entre a comunidade Ribeirinha São Rafael até a cidade de Atalaia do Norte. Nesta quarta-feira, 15, a polícia anunciou a solução do caso. Ambos foram barbaramente executados e tiveram os corpos decepados e incendiados por Amarildo da Costa de Oliveira, conhecido como Pelado, e por Ozinei da Costa Oliveira, que confessou o crime. As mortes do jornalista e do indigenista foram confirmadas na noite do dia 15 de junho por todas as organizações indígenas.

Bruno ajudava uma equipe de vigilância da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) a vigiar seu território. Ajudava no treinamento com drones, no georreferenciamento, no uso de imagens de satélites para que os indígenas pudessem documentar a invasão de seu território por garimpeiros, traficantes, caçadores e pescadores ilegais. Ajudou a produzir documentos com relatos de invasão, apontando a presença de grupos armados, denunciando ameaças e até ataques a tiros contra indígenas.

Um relatório com tudo isso foi entregue ao Ministério Público Federal de Tabatinga, à Força de Segurança Nacional, sediada na região, e à própria Funai. O documento chegou até mesmo a mencionar o nome de Pelado.

Indígenas protestam contra desaparecimento de Bruno e Dom, em Atalaia do Norte (AM)

Há dois anos e meio, Maxciel Pereira dos Santos, colaborador da Funai em Tabatinga, foi assassinado por pistoleiros na frente da família. Bruno assinou um ofício com outros dez servidores encaminhado à Defensoria Pública da União (DPU) para denunciar o assassinato e oito ataques a tiros no Vale do Javari (AM). Na época, Adelson Korá Kanamary, coordenador da Associação Kanamary do Vale do Javari (Akavaja), disse ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi): “O problema mais grave que nós enfrentamos aqui no Vale do Javari, agora, não são nem as invasões. São as ameaças de morte.”

Todos sabiam que novas execuções seriam uma questão de tempo. E a razão foi explicada pelo próprio ofício assinado por Bruno: o desmonte da Funai, os sucessivos cortes orçamentários e o enfraquecimento da fiscalização que atiçaram os criminosos. “Antes, os invasores se evadiam ao avistar as equipes [de vigilância]. Nos últimos anos, porém, a realidade passou a mudar de forma gradativa, caracterizada pela presença cada vez maior de audácia e violência“, citava o documento entregue à DPU.

Lideranças indígenas da região denunciaram a demora do Estado brasileiro em iniciar as buscas pelos desaparecidos. Apenas após uma forte cobrança internacional é que o governo resolveu se mexer. Mas Bolsonaro e o presidente da Funai não deixaram de lançar uma sórdida tentativa de desmoralização das vítimas, como um perfume barato borrifado no ar para atiçar sua caterva. O primeiro disse que seriam “aventureiros” em terras perigosas e depois, que Dom Phillips era “malvisto na região” – na sua já tradicional linha de plantar fake news e culpar as vítimas. E o segundo falou que o indigenista e o jornalista inglês não tinham autorização para ingressar na Terra Indígena Vale do Javari. Em nota, a Univaja rebateu a Funai e disse que Bruno tinha licença para entrar em território indígena. Segundo a entidade, o indigenista saiu da terra indígena para se encontrar com Dom Phillips, que nunca pisou na TI. Ambos, aliás, desapareceram fora dela. Em protesto contra as declarações do delegado que desmonta a Funai, servidores do órgão realizaram uma greve de 24 horas (no último dia 15) exigindo sua retratação sobre a falsa informação a respeito de Bruno e Dom Phillips.

Ato de servidores na Funai Foto Jornalistas Livres

Enquanto tentam desmoralizar as vítimas, é sempre bom recordar que o governo permitiu que missionários evangélicos realizassem contato com povos indígenas isolados no Vale do Javari, quando Bolsonaro nomeou o pastor Ricardo Lopes Dias para chefiar a Coordenação-geral de Índios Isolados. Hoje, as cidades próximas ao Vale do Javari encontram-se abarrotadas de missões evangélicas que tentam contatar os indígenas, embora haja liminares na Justiça que impedem missionários de fazer contato. É a conquista da alma pra conquistar o território.

‘Foiçada na Funai’

“Se eleito, eu vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho. Não serve mais”, declarou Bolsonaro em agosto de 2018, em plena campanha presidencial.

A foiçada começou com a nomeação do delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier para a presidência da Funai, um lacaio do pecuarista Nabhan Garcia, ex-chefe da União Democrática Ruralista (UDR) e ligado a milícias rurais que levaram terror à região do Pontal do Paranapanema (SP) entre 1990 e 2000. Hoje ele é secretário especial de Assuntos Fundiários do governo federal, órgão do Ministério da Agricultura.

Com a foice na mão, o delegado Xavier reduziu em 40% a verba da Funai. Paralisou 620 processos de demarcação de terras indígenas que se encontravam na fase inicial. Encalhou mais 117 processos que estavam na fase final de homologação da Presidência da República.

Assim como foi feito com Bruno, a Funai passou a perseguir inúmeros servidores. Relatórios realizados por funcionários em trabalho de campo começaram a ser tratados como “opiniões pessoais”, e não como constatações realizadas por profissionais in loco. Muitos foram forçadamente transferidos para atividades burocráticas e outros simplesmente não conseguem trabalhar devido ao cipoal de entraves burocráticos, autorizações, além da falta de verbas necessárias ao trabalho de campo.

Além disso, a Funai foi aparelhada por militares (sempre eles, em busca de uma boquinha…). Houve substituições de servidores concursados da Funai por militares das Forças Armadas e policiais. Das 39 coordenações regionais da Funai, apenas duas são dirigidas por funcionários concursados. No Vale do Javari, por exemplo, o responsável era Henry Charlles Lima da Silva, um tenente da reserva do Exército que foi exonerado há um ano por dizer que iria “meter fogo” em indígenas isolados.

Além de boquinhas e cargos no poder, os militares estão de olho em conquistar alguma sociedade na garimpagem na Amazônia. Há suspeitas de que o general Mourão e outros militares estejam se associando a projetos de mineração na região. De acordo com uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo, o general da reserva Cláudio Barroso Magno Filho é um lobista da mineradora Potássio do Brasil, acusada pelo Ministério Público Federal (MPF) de cooptação de indígenas do povo Mura para exploração mineral na Amazônia, mais especificamente na região de Autazes (AM), entre os rios Madeira e Amazonas. A mineradora chegou a operar dentro do território indígena, conforme a ação do MPF, mesmo sem licença ambiental e sem uma autorização formal dos indígenas, como exige a legislação. Os militares aparelhados na Funai estão fazendo prospecção mineral em Terra Indígena da Amazônia.

Mas não é só isso. A aparelhagem também obedece às demandas da velha e infame UDR. Com a publicação da Instrução Normativa nº 9/2020 da Funai, Nabhan Garcia conseguiu que seu lacaio apagasse do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) as terras não homologadas, em processo de demarcação, e áreas descobertas de indígenas isolados, além de terras devolutas da União. Isso impossibilitou constatar a sobreposição de terras de proprietários privados em terras indígenas, ao mesmo tempo que permitiu que os 237 territórios que ainda passam por processo de demarcação possam ser vendidos e loteados. O velho Marx chamaria isso de acumulação primitiva. É o “enclosure” sendo deletado do sistema.

A cavalaria de Bolsonaro

Desde sua campanha eleitoral, Bolsonaro dizia que não demarcaria sequer um milímetro de terras indígenas. Em várias oportunidades ele se colocou contra os direitos dos povos originários, defende a tese do marco temporal e a garimpagem em terras indígenas. Junto com o Congresso, o governo prepara o “pacote da destruição”, um ataque de proporções históricas contra o meio ambiente, os povos da floresta e toda a população.

Sua política deve ser classificada como de extermínio dos povos originários, e ele deixou isso bem claro em entrevista ao Correio Braziliense, em 12 de abril de 1998: “Pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios.” Mesmo com fartas demonstrações de sua política genocida, Bolsonaro teve a desfaçatez de conceder a si próprio a Medalha do Mérito Indigenista.

A “foiçada na Funai” é a foice da morte, do extermínio indígena promovido por Bolsonaro e atiça criminosos e milicianos. Todos esfregaram as mãos e viram uma oportunidade para fazer o que a cavalaria brasileira não fez. “Esses homens [criminosos e bandidos] se sentem protegidos pela Presidência da República”, explicou Sydney Possuelo sobre invasores de terras indígenas em entrevista ao programa Roda Viva que foi ao ar no dia 13 de junho. Possuelo, aliás, devolveu a Medalha do Mérito Indigenista que recebeu há 35 anos. O gesto foi em protesto à concessão da honraria a Bolsonaro.

Na Amazônia, existem verdadeiras quadrilhas que roubam terras, extraem madeiras e minérios ilegalmente nessas áreas, controlam rios e rotas para tráfico de drogas em áreas de fronteira. Se antes elas atuavam nas sombras, estavam dispersas e agiam de forma pouco coordenada, agora agem à luz do dia, sem maiores constrangimentos e com mais letalidade.

Não por acaso que, entre 2020 e 2021, o número de conflitos no campo foi o maior em 35 anos, e o número de assassinatos nesse tipo de confronto cresceu 75%, segundo levantamento anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve um crescimento de 9,2% na violência letal entre 2018 e 2020 em cidades de floresta na região Norte do país. Isso inclui uma guinada na ocupação da área demarcada, no avanço do tráfico de drogas, da caça e pesca clandestinas, da extração ilegal de madeira e da mineração de ouro.

Em toda a Amazônia se registra o aumento de assassinatos de indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses, indigenistas, ambientalistas e ativistas. O desaparecimento de um jornalista reconhecido como Dom, branco e europeu, deu uma forte evidência à violência na região, assim como foi o caso da missionária estadunidense Dorothy Stang, assassinada em 2005, no município de Anapu (PA). Mas também revela como a bandidagem se sente à vontade no ambiente político proporcionado por Bolsonaro.

A Terra Indígena Vale do Javari vem sofrendo ataques de madeireiros, pescadores, caçadores garimpeiros e traficantes, que agem de forma consorciada. Em geral o “patrão” dos caçadores e pescadores ilegais, isto é, aquele que os financia, é o traficante e o madeireiro, e todo o consórcio dos criminosos possui profundas ramificações com agentes públicos de segurança, políticos locais, comerciantes e autoridades. No Vale do Javari já foram registrados documentalmente pelo menos 12 massacres contra os povos indígenas isolados, entre 1966 e 2001 (veja aqui). Um dos mais conhecidos ocorreu em setembro de 1989, quando um grupo do povo Korubo, ainda sem nenhum contato com a sociedade envolvente, foi massacrado por invasores e seus corpos enterrados em cova rasa numa das praias do Rio Itacoaí.

Outros exemplos da ação de criminosos consorciados se deram em agosto de 2021, quando na região de Nova Mutum, em Porto Velho, uma operação policial levou à morte de três trabalhadores sem-terra. À época, outras cinco pessoas ficaram desaparecidas, segundo a CPT. Um ano antes, dois policiais acusados de serem milicianos foram assassinados no local. Na época a Polícia Federal investigava empresários, advogados, juízes, servidores públicos e empresas que formaram uma quadrilha e conseguiram lucrar mais de R$ 330 milhões por meio de grilagem de terras e fraudes.

No Norte do país o garimpo ilegal provocou nove mortes em 2020 e 109 em 2021, o que significa um aumento de 1.110%. Das 109 mortes em 2021, 101 eram indígenas Yanomamis de Roraima. A explosão da garimpagem na Terra Indígena Yanomami também tem o dedo do crime organizado. Segundo informações dos indígenas e investigações da PF, os garimpeiros são dirigidos pelo PCC e estão fortemente armados. É o narcogarimpo expandindo seus tentáculos na Amazônia.

Na cidade em que foi assassinada Dorothy Stang cresce o ataque aos trabalhadores rurais e indígenas de Anapu (PA), com assassinatos, prisões e ameaças de morte, e Erasmo Teófilo, presidente da Cooperativa de Agricultores da Volta Grande do Xingu está na mira da escopeta.

Se, conjunturalmente, toda essa violência está relacionada ao ambiente político proporcionado pelo governo Bolsonaro, do ponto de vista estrutural ela é explicada pelo avanço do capitalismo na Amazônia que, ao longo da história, converte meios e situações não capitalistas ou pré-capitalistas em instrumentos de produção capitalista propriamente dita, ou seja, de produção de mais valor. Essa é a chave para entender a expropriação territorial, a dissolução das relações sociais que bloqueiam sua reprodução ampliada ou mesmo a incorporação daquelas que não podem ser substituídas. Assim, elas são recriadas, mas sob novas determinações decorrentes da mediação do capital. Isso explica a colonização sistemática, a existência da peonagem, do trabalho escravo na região (inclusive entre garimpeiros); como o desmatamento e incêndios florestais são formas da expansão da propriedade privada da terra; o processo de anomia social das comunidades tradicionais, ou de parte delas; a desumanização e o racismo contra  indígenas, quilombolas e camponeses da floresta.

A bandidagem, o crime e os negócios ilegais capitalistas apenas abrem a carreira para os “negócios legais” do grande capital, como demonstra a própria história recente da Amazônia. Enquanto o capital existir, a floresta, sua população e a humanidade continuarão sendo ameaçadas.

 

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