Terras e propriedade privada: a negociação entre a “Nova Concertação” e os constituintes dos povos originários
São 15 horas da quarta-feira 4 de maio. No pátio do antigo Congresso, onde funciona o plenário da Constituinte, ocorre uma acalorada discussão. Dezenas de pessoas a veem e a escutam. Em poucos minutos se iniciará a votação de normas muito importantes para a Nova Constituição. O debate gira em torno de duas normas: a que regula as eventuais expropriações que o Estado poderá fazer e a que estabelece a restituição de terras e territórios indígenas.
Por: MIT – Chile
Os deputados constituintes Patricio Fernández Chadwick (Lista de Lista del Apruebo/Concertación – Aprovo/Concertação), Ignacio Achurra (Frente Amplio – Frente Ampla) e Javier Fuchslocher (Independientes no Neutrales – Independentes não Neutros) chantageiam alguns constituintes dos povos originários e independentes.
O trio da “Nova Concertação” argumenta que a única possibilidade de aprovarem a norma de restituição de terras, territórios e recursos aos povos indígenas, é se estes, por sua vez, apoiarem sua norma sobre expropriações.
A norma sobre expropriações em discussão propõe que, no caso do Estado expropriar alguma propriedade, terra ou bem, este deverá pagar antecipadamente a indenização ao proprietário de tal bem.
O clima é tenso. O semblante dos deputados/as constituintes dos povos originários é de desesperança e perplexidade. As negociações e conversações continuarão nas horas seguintes.
Um gol para os povos originários, 3 gols para os donos do país
“Estamos entre a cruz e a espada”, ouve-se entre o setor da esquerda dos constituintes dos povos originários.
Em poucas horas, o resultado das negociações fica evidente. O artigo 20 sobre expropriações é aprovado, com votos de todos os coletivos da esquerda e da maioria dos constituintes dos povos originários (as exceções são: Isabel Godoy, María Rivera, Elsa Labraña, Ivanna Olivares, Lisette Vergara e Camila Zárate). Em seguida, o artigo 21 é votado, sobre restituição de terras, que também é aprovado, como votos da Frente Ampla, INN e Socialistas.
Quais são as consequências dos artigos aprovados?
O artigo sobre expropriações terá enormes consequências para o país. Em primeiro lugar, o artigo é muito parecido ao da Constituição atual e à de Pinochet, em relação às expropriações. O fato de que o Estado tenha que pagar indenizações antecipadamente no caso de expropriações, limita totalmente a possibilidade de expropriar empresas, terras e inclusive solos urbanos. A consequência disso é que praticamente fecham-se as portas para a nacionalização da grande mineração do cobre, da expropriação de terrenos para a construção de moradias, da recuperação da água colocando um fim aos direitos de aproveitamento da água e também da própria restituição de terras ao povo mapuche.
Além disso, essa norma legitima toda a usurpação realizada pelas famílias mais ricas do Chile e as transnacionais desde a ditadura militar. Os grandes monopólios privados que hoje existem no Chile, foram construídos a partir da usurpação dos territórios mapuche, da privatização de empresas estatais e do saque deliberado dos bens naturais como a água e o cobre. Tudo isso só foi possível porque o Chile esteve 15 anos sob uma violenta ditadura, que eliminou completamente a democracia para a classe trabalhadora e os povos originários. A ditadura estabeleceu as bases jurídicas para o saque, iniciou a privatização das empresas estatais e uma profunda contrarreforma agrária. Tudo isto foi aprofundado posteriormente pelos governos democráticos da ex Concertación e da direita.
Aprovar uma norma que propõe o pagamento prévio de indenizações significa legitimar todo esse saque, já que se reconhece que essas famílias multimilionárias são donas legítimas das terras, do solo, da água e das empresas, e que se quisermos expropriá-las, devemos pagar-lhes bilhões de dólares de indenizações, dinheiro que o Estado evidentemente não tem.
Assim, tal norma aprovada será uma das maiores travas legais que existirão para solucionar os problemas do povo trabalhador e também dos povos originários. Esta norma vai na contramão da norma aprovada sobre restituição de territórios aos povos indígenas.
Vitória? Para quem?
A norma dos povos originários propõe que o Estado deverá estabelecer, em relação às terras, “instrumentos jurídicos eficazes para seu cadastro, regularização, demarcação, titularidade, reparação e restituição. A restituição constitui um mecanismo preferível de reparação, de utilidade pública e interesse geral”.
Embora esta norma seja um avanço no papel, nada garante que o Estado não demorará 10, 20 ou 30 anos para restituir algumas terras. Não se sabe quais serão essas terras nem o mecanismo que o Estado adotará para restituí-las. Hoje, as empresas florestais são donas de mais de 3 milhões de hectares de terras no tradicional território mapuche. A norma aprovada deixa totalmente em aberto a possibilidade de o Estado comprar algumas das terras das empresas florestais, pagando preço de mercado, para restituí-las a determinadas comunidades indígenas. Não há nenhuma garantia da restituição total das terras. Tudo dependerá dos futuros governos. E temos visto nos últimos 50 anos que esses governos, sejam de “esquerda” ou de direita, estão a serviço das famílias donas do país, como as famílias Matte e Angelini, as principais donas de empresas florestais.
Papel lamentável dos constituintes independentes e dos povos originários
Lamentamos o papel cumprido por muitos dos constituintes independentes da esquerda, dos coletivos Pueblo Constituyente, Movimientos Sociales e Coordinadora Plurinacional e também dos povos originários. Muitos desses constituintes representam seus territórios e povos e são depositários de enorme confiança popular.
Por outro lado, o Partido Socialista, a Frente Ampla e os Independentes não Neutros cumpriram um papel totalmente nefasto na atual Convenção Constitucional. Através de suas chantagens, estão limitando as conquistas desta Convenção e dirigindo os independentes para os espúrios acordos que o povo sempre criticou nas ruas. Estão preparando uma nova explosão social em mais algum tempo, já que os profundos problemas do Chile não serão solucionados com os “remendos” da Nova Constituição.
A Constituição que está sendo redigida, embora contenha avanços em alguns aspectos, como os direitos trabalhistas, o aborto, etc., está mantendo a estrutura econômica e política do país, que terá como consequência manter o saque do Chile pelas 10 famílias chilenas mais ricas e algumas transnacionais e bancos imperialistas.
Tradução: Lilian Enck