Revolução e contrarrevolução em Portugal, de Nahuel Moreno
Na abertura das comemorações do 50º aniversário do 25 de Abril, relembramos a análise de Nahuel Moreno sobre revolução portuguesa.
Por: Em Luta – Portugal
Há um grito de revolta que atravessa hoje a vida dos trabalhadores e da juventude em Portugal. Às vezes, é um grito silencioso que corrói por dentro, mas outras é um grito forte, sonoro, que se houve nas ruas, que ecoa nas greves. Foram as Greves Gerais e as Manifestações contra a Troika, quando esta ditou a venda do país e dos nossos direitos por tuta-e-meia: a Geração à Rasca (2011), o 15 de Outubro (2011), o 15 de Setembro (2012) – datas e datas de dias que marcaram a ocupação das ruas e a paralisação das empresas para dizer já basta! Hoje, quando nos dizem que a “austeridade já acabou”, sabemos que não é verdade, pois para quem trabalha, pouco mudou. Por isso, escutamos a voz dos operários da Autoeuropa, em greve contra o trabalho obrigatório ao fim-de-semana; a das enfermeiras por uma carreira digna para quem trabalha e dá vida ao Serviço Nacional de Saúde; a dos estivadores contra o trabalho à jorna; a dos trabalhadores dos call-centers, que não aguentam mais a precariedade; a dos trabalhadores aeroportuários dos serviços de assistência em terra contra os turnos desumanos; a dos jovens negros contra a violência policial e pelo direito à nacionalidade; a das mulheres contra a violência e por direitos verdadeiramente iguais; a dos mais jovens, pelo direito ao futuro e pelo futuro do planeta. Em todo o lado, um grito profundo contra a exploração crescente, contra a opressão brutalizante, contra o beco sem saída do capitalismo.
E a pergunta que cala fundo é: qual a alternativa? Muitos acham que temos de contentar-nos com o que existe, aceitar o mal menor da atual Geringonça, pois o capitalismo é a única alternativa e – dizem – no máximo conseguiríamos melhorá-lo. Outros, como a extrema-direita, acham que a culpa é dos imigrantes, dos negros, dos ciganos, dos pobres que não querem trabalhar: dividem para reinar, enquanto os patrões e banqueiros vivem à nossa custa.
Nós achamos que é preciso mudar estruturalmente a sociedade para acabar com estes problemas. É preciso, por isso, ser revolucionário! Dizem-nos então: Isso é impossível! Nada pareceria mais impossível do que, depois de 48 anos de ditadura salazarista, ver o país a ser tomado por uma revolução. E, todavia, foi isso que aconteceu a 25 de abril de 1974.
Por isso, no ano em que se comemoram os 45 anos da Revolução Portuguesa de 1974/1975, editamos em Portugal, pela primeira vez em livro, o texto Revolução e Contrarrevolução em Portugal, de Nahuel Moreno.
O livro que aqui apresentamos ao leitor fala-nos de um momento fundamental da nossa história. Nesse sentido, esta edição tem por objetivo retomar o estudo da Revolução Portuguesa de 1974/1975 como ponto de partida para a tarefa necessária e fundamental de encarar os desafios da luta revolucionária em Portugal hoje. Temos o privilégio de estudar uma revolução que se passou no tempo de uma geração. Podemos ouvir – em primeira mão – as suas histórias, a sua força e as suas tristezas. Mas acima de tudo podemos ler a história, reconhecendo os principais atores e processos, o que permite –mesmo a quem não o viveu– discutir uma revolução com vida e em que algumas polémicas se mantêm até hoje. A quase unanimidade com que muitos se referem ao “25 de Abril” e à “Revolução dos Cravos” não nos faz esquecer a tremenda luta dos explorados e oprimidos contra as águas mansas dos que hoje se limitam a pôr o cravo na lapela. O texto de Moreno é, por isso, para nós, um texto incontornável.
Por isso, esta é uma edição que pretende, acima de tudo, ser uma pedrada no charco para responder à necessidade que temos hoje de entender os problemas com que nos confrontamos e de encontrar uma alternativa que, na nossa opinião, continua a ter de ser revolucionária.
Um texto militante escrito ao calor da revolução
O texto que o leitor tem em mãos foi escrito em julho de 1975 (durante o chamado “Verão Quente”) e publicado na Revista America[1], num caderno suplemento intitulado “Portugal: quinze meses de revolução”. Este caderno estava dedicado, exclusivamente,a discutir o processo revolucionário português, com textos e polémicas de alguns dos principais dirigentes trotskistas da IV Internacional da época, como Ernest Mandel, Nahuel Moreno, Gus Horowitz e Livio Maitan.
Nahuel Moreno (1924-1987)[2], o autor do texto que agora publicamos, nasceu na Argentina e tomou como tarefa da sua vida a militância política, na continuação da luta de Leon Trotsky pelo legado da Revolução Russa e da III Internacional contra a degeneração conduzida por Estaline. Batalhou toda a sua vida pela IV Internacional. Quando Nahuel Moreno morreu, o seu antigo companheiro e adversário político Ernest Mandel (Bélgica, 1923-1995) recordou-o com as seguintes palavras: “Com ele desaparece um dos últimos representantes do grupo de quadros dirigentes que, após a Segunda Guerra Mundial, mantiveram a continuidade da luta de Leon Trotsky em condições difíceis…”[3]. Moreno foi um dos principais dirigentes trotskistas latino-americanos e participou desde o II Congresso da IV Internacional em diversas lutas políticas. Esteve envolvido na fundação de partidos trotskistas na Argentina, Brasil, Colômbia, Peru e Espanha; em 1979, rompeu com o Secretariado Unificado da IV Internacional, tendo vindo a fundar, em 1982, a Liga Internacional dos Trabalhadores-IV Internacional (LIT-QI).
Moreno visitou Portugal durante 1974/1975, tomando contacto direto com o processo revolucionário em curso. É a partir daí que escreve Revolução e Contrarrevolução em Portugal. Em 1974, um grupo de jovens irá fundar o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), mantendo-se desde aí ligado ao sector morenista da IV Internacional e, posteriormente, à fundação da LIT-QI em 1982.
Esta é, por isso, uma edição militante, porque, parafraseando Marx, nós sabemos que não basta interpretar o mundo: é preciso transformá-lo. E essa foi a tarefa que Nahuel Moreno deu a si próprio quando escreveu esta obra. Este texto expressa o esforço de entender o processo revolucionário a decorrer em Portugal; é também um texto de polémicas com as restantes correntes trotskistas da época, mas é acima de tudo um texto militante, para influenciar o desenvolvimento da revolução, cujo objetivo era orientar política e programaticamente a melhor intervenção dos revolucionários.
Finalmente, esta é uma edição que comemora os 45 anos da existência do legado de Nahuel Moreno e da Liga Internacional dos Trabalhadores-IV Internacional (LIT-QI) em Portugal. Tendo essa ligação começado em 1974, esta corrente trotskista mantém até hoje a sua continuidade em Portugal, através do Em Luta, mantendo viva a luta por uma nova revolução.
Nestas breves páginas introdutórias queremos, por isso, expor o que nos parecem ser os pontos fortes deste texto de Moreno, mas também elementos que nos parecem necessitar de atualização (note-se que o texto foi escrito em julho de 1975 e muita água correu depois disso). Finalmente, aproveitamos para colocar algumas questões que consideramos relevantes para interpretar o país que temos hoje, 45 anos depois.
Uma análise de classe sobre a revolução, as suas direções e o MFA
O golpe militar do dia 25 de abril abriu as portas à entrada em cena da classe trabalhadora e do povo, que foram aconselhados pelos militares a ficar em casa, mas que invadiram as ruas e a vida política do país. Há vários livros que nos falam sobre a revolução portuguesa. No entanto, o texto de Nahuel Moreno tem uma abordagem particular para entender o processo de rutura revolucionária que, nestes anos, atravessou o país.
Em primeiro lugar, Moreno dá um papel de destaque à revolução anticolonial que estava em curso em África. O Estado português –que a partir dos anos 60 aprofunda a sua relação de dependência económica com a Europa– dependia do domínio das colónias para não ser sugado pelas potências europeias. Por isso, vai ser totalmente incapaz de abandonar essa exploração colonial, que era determinante para a sua posição privilegiada no mundo. Nesse sentido, é equivocado dizer que o fim da ditadura em Portugal foi “pacífico”, quando ele assentou sobre a morte de milhares de portugueses e africanos na Guerra Colonial. É a revolução colonial em África –expressa nos povos que se levantam em armas contra a opressão colonial portuguesa– que faz com que a guerra se prolongue mais de uma década, afundando e sugando os recursos do país, levando à fuga da sua juventude e, finalmente, dividindo a burguesia e o seu braço armado –o exército. É este levantamento dos povos africanos e a contradição profunda da situação do imperialismo português que tornam impossível uma solução pactuada de saída para o impasse da guerra e vai destruindo o exército por dentro. Este elemento revelar-se-á essencial para compreender todo o processo revolucionário, onde a crise do Estado e a dualidade de poderes nas Forças Armadas será uma característica fundamental, mas também a própria debilidade da contrarrevolução, expressa no dia 25 de abril, no 28 de setembro de 1974 e no 11 de março de 1975.
O livro que agora apresentamos dá também destaque à questão relativa ao carácter da revolução portuguesa, enquadrado na polémica histórica entre Estaline e Trotsky, entre a revolução por etapas e a revolução permanente. Para o PCP, alinhado com o estalinismo, o que estava colocado em Portugal era uma revolução democrática nacional, cujos objetivos eram “a instauração das liberdades democráticas, a destruição do estado fascista e a sua substituição por um estado democrático”[4], e conseguir a “soberania nacional”; esta revolução era, portanto, contra a burguesia monopolista e não contra toda a burguesia; a aliança com uma parte da burguesia[5] é parte fundamental do projeto do PCP, que não passava pela tomada do poder pela classe trabalhadora.
Para Moreno, o que estava em causa era uma revolução operária e socialista, seja pelo seu sujeito social (os operários e classe trabalhadora urbana e do campo), seja pelas suas reivindicações –liberdades democráticas e antifascismo, mas também reivindicações próprias da classe operária e poder operário–, que só poderiam ser cumpridas pela classe trabalhadora, colocando na ordem do dia (ao contrário do defendido pelo PCP) a tomada do poder e o socialismo. A expropriação e nacionalização dos bancos e dos grandes conglomerados empresariais realizados após março de 1975, a multiplicação dos organismos de duplo poder, as ocupações de terras, as greves –como as da Lisnave, TAP, CUF e outras fábricas centrais da cintura industrial de Lisboa– são uma expressão taxativa do carácter operário e socialista da revolução, que comprovam a tese transicional de Moreno e negam a etapa da revolução “democrático-nacional” defendida pelo PCP.
Sobre o carácter da revolução, é ainda de destacar a interessante comparação dos momentos da revolução portuguesa com a revolução russa, nomeadamente a comparação do processo de derrota da contrarrevolução de Spínola em Portugal à derrota de Kornilov na Rússia, como momento fundamental para abertura de uma situação revolucionária, em que passa a estar colocada a tomada do poder. É também daí para a frente que Moreno dá especial relevo às grandes diferenças entre ambas as revoluções, nomeadamente a ausência de uma centralização nacional dos organismos de duplo poder semelhante à dos Sovietes russos e, principalmente, a ausência de um partido revolucionário que quisesse tomar o poder, um tema que retomaremos mais à frente.
No entanto, um dos aspetos mais especiais do trabalho de Moreno é que ele procura fazer, essencialmente, uma análise de como se comportam as classes sociais na revolução, e é a partir daí que procura entender mais profundamente o papel de cada um dos atores políticos na mesma. É deste ponto de vista que vai analisar um dos fenómenos políticos mais polémicos na Revolução Portuguesa: o carácter do Movimento das Forças Armadas (MFA).
No texto, encontramos uma análise do MFA como a representação, ao nível das Forças Armadas, da classe média e pequena-burguesia. Além disso, ao contrário das teorias “terceiro-mundistas” muito em voga na época, Moreno é muito claro em identificar Portugal como um país imperialista e, portanto, o carácter do MFA como a expressão da pequena-burguesia de um país imperialista, o que lhe dava um carácter privilegiado, pró-imperialista e não revolucionário ou progressista, ao contrário do que acontecera nas lutas dos países semicoloniais e do que defendia a maioria da esquerda em Portugal na época.
O leitor encontrará também uma leitura diferente dos governos provisórios integrados pelo MFA. Nestes governos estão presentes os representantes da burguesia, os partidos operários reformistas (PS e PCP) e os representantes da pequena-burguesia (MFA), que fazem a ponte entre ambos. Num momento em que o atual Governo do Partido Socialista, dirigido por António Costa, tem o apoio do Partido Comunista Português e do Bloco de Esquerda para governar, é bom relembrar que este não foi o primeiro caso em que o PCP esteve diretamente envolvido na governação nacional. Embora num contexto diferente, marcado pela radicalidade e rutura de um processo revolucionário em curso, Moreno vai analisar o Governo do MFA-PS-PCP[6] como um Governo de frente popular-“kerenskista”[7], sintoma da profundidade da revolução, mas também enquanto projeto de conciliação de classes (entre a burguesia e os trabalhadores) como forma de derrotar a classe trabalhadora no seu caminho para o socialismo. É este carácter de classe que vai explicar também, perante o avanço da radicalização da revolução, a divisão do MFA em diversas tendências associadas aos projetos políticos em causa, uma mais próxima do PS, outra do PCP e outra da extrema-esquerda.
Finalmente, na maior parte dos textos a que temos acesso hoje, a disputa na revolução portuguesa é-nos contada como uma disputa entre o projeto de democracia do Partido Socialista e a tentativa autoritária do Partido Comunista de tomar o poder, numa suposta semelhança com o que os bolcheviques tinham feito na Rússia. O PCP nega a teoria do “assalto ao poder”, mas utiliza-se dela para dizer que queriam ter ido mais longe, só que a relação de forças não permitiu. No texto de Moreno encontramos uma leitura muito certeira e relevante sobre este tema que aponta os dois projetos como projetos capitalistas: o do PS, como um projeto assente, essencialmente, no Parlamento e de aliança e subalternidade da burguesia portuguesa ao imperialismo europeu (tendo como centro a integração na CEE); o do PCP-MFA, como um projeto de defesa do imperialismo português (a suposta “independência nacional” das grandes potências, de facto, é para o estalinismo e a sua versão maoista a defesa do próprio imperialismo português, e daí a aliança com o setor não monopolista da burguesia portuguesa), com um modelo de autarcia económica, mas baseada num regime bonapartista[8], como forma de controlar a classe operária e derrotar a revolução.
A alternativa trotskista proposta por Moreno
Como o leitor irá constatar, o centro da política de Moreno era defender, expandir e centralizar os embriões de duplo poder, como a única forma de derrotar as manobras contrarrevolucionárias do MFA-PS-PCP. Como refere numa carta a Joseph Hansen[9], a 17 de julho de 1975: “O nosso slogan central da etapa que se abriu a 11 de março deve ser: desenvolvimento e centralização das comissões de trabalhadores e soldados para que tomem o poder num grande congresso nacional e garantam uma assembleia constituinte livre e soberana”[10].
Ao contrário da maioria de correntes de esquerda que alimentava grandes esperanças no MFA, a linha de Moreno tem como centro a democracia operária livre da intromissão militar e a necessidade de centralizar um poder paralelo (comissões de trabalhadores, moradores, soldados) que estava disperso, mas cuja unificação era a condição necessária para que os trabalhadores pudessem realmente tomar o poder e construir um estado operário assente nos organismos dos trabalhadores. Nesse sentido, apesar de o grupo ligado a Moreno ser um grupo jovem e de vanguarda, a sua política aparece de forma claramente diferenciada como um campo dos trabalhadores, pela revolução socialista, como herança da Revolução Russa, e não da sua degeneração, a burocratização da União Soviética.
Nunca tomando as liberdades democráticas em abstrato, mas combinadas pela luta pelo poder pelos trabalhadores, Moreno considera-as sempre como parte fundamental do avanço da revolução. A atualidade da luta por reivindicações democráticas hoje nos processos revolucionários como a Primavera Árabe e Síria ou, recentemente, no caso da Venezuela, mostra a importância do legado de Moreno também neste campo, e oposto à tradição de apoio a regimes bonapartistas capitalistas, como o PCP faz até hoje.
Como se fechou o processo revolucionário?
O 25 de Novembro é identificado como o fim do processo revolucionário em curso (PREC). O texto que aqui apresentamos, ao ser escrito em julho de 1975, não reflete sobre esta data, nem sobre as suas consequências para as características da revolução e da sua derrota. Cabe-nos a nós, portanto, fazer a ponte entre este texto e o que aconteceu depois dele.
No final de novembro de 1975, acumulavam-se e agravavam-se todas as contradições da revolução portuguesa. No país, conviviam dois poderes em paralelo: o poder da burguesia portuguesa (ferida de morte depois das derrotas de Spínola, mas viva e organizada) e do imperialismo internacional[11], de um lado. Do outro, o poder dos operários e trabalhadores, expresso nas comissões de trabalhadores, de soldados, nas manifestações que se sucedem todos os dias, nas greves e ocupações, que apontavam para um outro poder e outro tipo de Estado: um Estado dos trabalhadores. Dois casos são exemplificativos: a 12 de novembro, os operários da Construção Civil em greve cercam o Palácio de São Bento. Contra as orientações do PCP, sequestram os deputados e o Governo durante dois dias; a 17 de novembro, os deputados da Assembleia Constituinte ameaçam transferi-la para o Porto e, no dia seguinte, o Governo suspende funções. A 21 de novembro, no RALIS (Regimento de Artilharia de Lisboa), 170 novos recrutas juram bandeira com o braço direito levantado e o punho cerrado: “Juramos estar sempre, sempre ao lado do povo, ao serviço da classe operária, dos camponeses e do povo trabalhador. (…) Pela democracia e poder para o povo. Pela vitória da revolução socialista.”.
Nesse sentido, o acirrar dos acontecimentos em novembro de 1975 era o da crise revolucionária, momento em que a classe trabalhadora ou toma o poder ou sofre uma derrota para as forças da contrarrevolução.
Nos dias que precederam o 25 de Novembro, o Conselho da Revolução substitui Otelo Saraiva de Carvalho por Vasco Lourenço à frente do Comando Militar da Região de Lisboa, o que fortalecia o setor moderado do exército e servia como desafio às fações oponentes. Esta destituição é vista como uma provocação e contestada pelas unidades mais radicais. O levantamento de setores como os paraquedistas de Tancos leva à ocupação de bases da Força Aérea e comando Operacional em Monsanto. Como reação, o Grupo dos Nove, apoiado no Regimento dos Comandos, desencadeia ações de resposta para dominar o poder político do país, restabelecendo a “ordem” nas Forças Armadas; o Tenente-coronel Ramalho Eanes dirigirá as operações.
Contam com o apoio direto do PS e PPD (PSD) e com o aval do Presidente Costa Gomes, que tinha recebido da parte do PCP a garantia (ao contrário do que tinha acontecido a 28 de setembro de 1974 e 11 de março de 1975) de que não convocaria os seus militantes e apoiantes para qualquer ação de rua[12]. Assim, aconteceu. Ninguém se moveu, a não ser os paraquedistas, abandonados pelo PCP, mas também pelo seu líder de referência, Otelo Saraiva de Carvalho. A 28 de novembro, renderam-se.
O 25 de Novembro de 1975 foi, assim, uma operação militar que teve por objetivo acabar com um dos elementos mais profundos e radicais do processo revolucionário português: o duplo poder dentro das Forças Armadas, que se desenvolviam e radicalizavam, colocando em causa o exército como instrumento de repressão ao serviço da burguesia.
Mas o 25 de Novembro não significou o fim imediato da revolução que tinha convulsionado o país a partir de 25 de abril de 1974. O número de ocupações de terras, por exemplo, aumentou depois de novembro de 1975. Esta data marca, sim, a primeira vitória significativa das forças da contrarrevolução, contra os trabalhadores e o povo.
O 25 de Novembro não foi um golpe clássico contrarrevolucionário, à semelhança do que tinha acontecido no Chile em 1973 (e que estava bem presente na mente de todos na época), quando Pinochet afogou em sangue a revolução e levou a um retrocesso que durou décadas no país. O 25 de Novembro não significou o retorno da ditadura ou do fascismo a Portugal e também não derrotou as conquistas democráticas alcançadas.
Nesse sentido, o 25 de Novembro tem por objetivo (e consegue) aplicar uma derrota à revolução, mas não será esta ação militar que derrotará sozinha a revolução. A ação militar de dia 25 de novembro desfere o primeiro golpe, garantindo uma maior estabilidade à burguesia e permite-lhe reorganizar a sua ofensiva, pois volta a ter o exército na mão. Será a partir daí que se inicia um processo de reação democrática[13] que afoga a revolução através da institucionalização da democracia burguesa. Este método não era o que predominava à época, quando a atuação do imperialismo estava marcada, essencialmente, por golpes militares para destruir as revoluções, mas será comum posteriormente, noutros processos revolucionários em que “a democracia burguesa” será utilizada pelo imperialismo como forma de impedir o desenvolvimento dos processos revolucionários. Foi o que aconteceu depois no caso do fim do Franquismo no Estado Espanhol ou, por exemplo, no processo do fim da ditadura na Argentina, já nos anos 80.
Uma revolução traída pela política das suas direções
Dizia Moreno, no seu livro as Revoluções do Século XX, a propósito das revoluções que, como a portuguesa, se ficaram pelas conquistas democráticas, não tendo avançado para a toma dos poder pelos trabalhadores: “Aparentemente, são apenas revoluções democráticas nacionais que foram revoluções vitoriosas. Mas não é assim, porque, como vimos anteriormente, por baixo desse processo, embutido nele, o que está acontecendo é uma revolução socialista, mesmo que se expresse, num primeiro momento, como uma revolução democrática ou colonial. Quem faz abortar essa revolução, quem impede que chegue à sua consumação, completando o seu caminho, quem a faz abortar para impedir a vitória da revolução socialista são as direções do movimento de massas, principalmente o estalinismo mundial”[14].
Consideramos que este critério se aplica totalmente à revolução portuguesa. Tal como referimos anteriormente, o PS e o PCP, utilizando métodos e forças diferentes, atuaram ambos para impedir o desenvolvimento dos organismos de duplo poder e da toma do poder pelos trabalhadores.
No texto que aqui apresentamos, Moreno insiste muito que, no momento em que escreve –julho de 1975–, o perigo mais imediato para a revolução é o projeto de derrotar a revolução através dos métodos bonapartistas do MFA, secundados pelo PCP. No entanto, o PCP, na reunião do seu Comité Central a 10 de agosto de 1975 vai abrir as portas ao acordo (explícito ou implícito) que estará na origem do 25 de Novembro (em que Costa Gomes tem a garantia de que o PCP não vai reagir). Diz Álvaro Cunhal nessa reunião: “Devemos reservar a capacidade de iniciativa política para, no caso de não se conseguir acentuar este curso atual, podermos ir para soluções de compromisso, quer dizer, buscar e até propor eventualmente um encontro de forças que hoje possam estar divididas a fim de se discutir e estabelecer um compromisso para resolver a crise da Revolução Portuguesa. Isto porque há riscos sérios de confrontos armados, de confrontos militares e podem eventualmente não ser na melhor correlação de forças. (…) Referimo-nos particularmente a sectores que, por comodidade, se têm chamado do grupo dos Nove. (…) A nosso ver, ainda que pensemos que a tentativa de golpe, que pode partir desse lado, vai favorecer a reação, vai favorecer as forças contrarrevolucionárias, o nosso Partido devia apontar para a necessidade de evitar um confronto entre forças que irá enfraquecer no conjunto o movimento revolucionário português.”[15].
Aqui podemos ver que o PCP não abandonou o projeto –descrito por Moreno– de um capitalismo de defesa do imperialismo português, que implicava centralmente um regime com características bonapartistas. No entanto, perante o agravar da crise política, tendo em conta a relação de forças nacional e a divisão internacional do mundo (com a sua ligação estreita ao Kremlin), e obtendo garantias de que iria ser um partido legal num futuro regime democrático-burguês, o PCP foi determinante para o compromisso contrarrevolucionário que vai permitir o 25 de Novembro. Relembremos que, no dia 26 novembro, Melo Antunes (dirigente do Grupo dos Nove), no discurso dos vencedores, tem o cuidado de declarar o PCP como indispensável para a democracia e afasta qualquer possibilidade de o mesmo vir a ser ilegalizado; no dia 28 novembro, o PCP apela à unidade de todas as forças democráticas e antifascistas para fazer avançar a revolução.
Nesse sentido, o discurso do PS (e da maioria dos analistas da burguesia) quando afirma que a democracia portuguesa se fez contra o projeto de tomada do poder do PCP tem elementos de verdade e de mentira. De verdade, no sentido em que o projeto em que apostava centralmente o PCP era um projeto de regime capitalista independente dos imperialismos centrais, com características centralmente bonapartistas, enquanto que o projeto que acabou por se impor foi o de uma democracia burguesa. De mentira, porque o PCP nunca quis uma rutura revolucionária que levasse os trabalhadores e os seus organismos ao poder como na Rússia; em segundo lugar porque o PCP foi parte central do compromisso que permitiu a vitória reacionária contra a revolução no dia 25 de novembro e, posteriormente, vai ser parte do acordo que permite a institucionalização democrático-burguesa como forma de derrotar o processo revolucionário.
Nesse sentido, sem a atuação do PS, o projeto de democracia burguesa e entrada na CEE não seria possível. Mas por outro lado, sem a colaboração do PCP –que era quem de facto dirigia a classe operária e, inclusivamente, tinha peso dentro do aparato militar–, esse projeto nunca teria sido implementado. Como refere Moreno, houve uma disputa entre o PS e o PCP em torno do melhor projeto para derrotar a revolução, mas ela é superada por um acordo global –derrotar os trabalhadores e a sua força revolucionária– que se vai expressar no 25 de Novembro. Nesse sentido, o PCP divide com o PS as responsabilidades pela derrota da revolução e, portanto, pelos serviços prestados à burguesia portuguesa e ao imperialismo mundial.
Se as maiores responsabilidades na derrota da revolução portuguesa devem ser atribuídas ao PS e PC, por serem os partidos maioritários na classe operária, é ainda de sublinhar que a extrema-esquerda maoista e não maoista –que apostaram nos oficiais “revolucionários”– não podem sair impunes deste balanço, dada a sua influência na vanguarda e em setores da classe operária de Lisboa. Aqueles que, como nós, se bateram pela independência política da classe operária eram demasiado fracos e a revolução portuguesa demasiado forte.
A revolução portuguesa foi derrotada porque não se construiu uma alternativa independente e democrática dos trabalhadores. A frase de Trotsky “A crise da humanidade é a crise da direção revolucionária” mostrou, mais uma vez, a sua –triste– veracidade.
A impossibilidade da transição gradual para o socialismo
A revolução portuguesa não acabou de um dia para o outro. A presença das suas conquistas e as características da forma como foi sendo derrotada atravessam todo o regime português até hoje.
A 2 de abril de 1976, foi aprovada a Constituição Portuguesa, definindo: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes.” (Artigo 1º) e “A República Portuguesa é um Estado democrático, baseado na soberania popular, no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e no pluralismo de expressão e organização política democrática, que tem por objetivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras.” (Artigo 2º).
A Constituição Portuguesa de 1976 vai, assim, expressar o compromisso que esteve por detrás do 25 de Novembro, garantindo as instituições e funcionamento de uma democracia burguesa, bem como o direito à propriedade privada, mas também a institucionalização de algumas das conquistas fundamentais da revolução, como a nacionalização da banca e dos setores estratégicos da economia (considerados irreversíveis na Constituição). Vai ainda integrar o essencial do II Pacto MFA-Partidos, que a escassas semanas das primeiras eleições legislativas (26 de fevereiro de 1976) irá garantir a continuidade, agora adaptada aos novos tempos, de alguns traços do “bonapartismo vigilante” do MFA.
Para o PS como para o PCP, o discurso oficial era o de que estávamos a caminho da transição para o socialismo. A revolução portuguesa mostra, assim, como grande parte dos discursos revolucionários em tempo de revolução não são mais do que palavras vazias para esconder as verdadeiras intenções daqueles que as proferem. A “intenção” expressa na Constituição de 1976 é, provavelmente, uma das melhores demonstrações de como não existe uma transição gradual para o socialismo.
Não há uma imediata normalização da relação entre trabalho e capital. Após, as primeiras eleições legislativas de 1976[16], a dinâmica foi de uma progressiva institucionalização da democracia. No entanto, o país estava longe de estar estabilizado em 1976 e, por isso, mais do que um caminho linear, houve uma luta constante até a burguesia conseguir ir impondo a estabilização no país.
As conquistas arrancadas no período revolucionário levaram cerca de 15 anos para começarem a ser globalmente revertidas. Entre 1976 e 1986, o país teve 10 governos. As greves e conflitos, produto do processo revolucionário, continuaram; só após a entrada na CEE, em 1986, haveria uma queda drástica do número de greves. Durante este período, várias medidas e legislação, como a Lei da Reforma Agrária ou a Lei das Indemnizações, têm já claramente por objetivo atacar as conquistas da revolução e impor recuos ao movimento operário.
No entanto, a classe trabalhadora está extremamente organizada e não sofreu uma derrota histórica que a fizesse recuar de um momento para o outro nas suas lutas. Por isso, a burguesia e os governos vão ver obrigadas a fazer algumas concessões, como a liberalização de lei da greve ou a construção do Serviço Nacional de Saúde, para conseguirem avançar a normalização da democracia burguesa – dão os anéis, para não perderem os dedos.
Nesse sentido, pode dizer-se que há uma continuidade entre o compromisso feito para o 25 de Novembro e o período posterior, onde há um “um pacto social”[17], que em troca de algumas concessões, garante que se vão encaminhando as disputas entre trabalho e capital para o campo da institucionalidade democrática, através das lutas sindicais e por direitos (através das eleições, das negociações e das disputadas sindicais). Isto é, portanto, o oposto da luta pelo poder político para a classe trabalhadora, através da centralização nacional das comissões trabalhadores como poder alternativo ao da burguesia. Mais uma vez, o papel do PCP, como principal direção da classe operária, foi determinante para conduzir a classe trabalhadora a esta institucionalização democrática dos conflitos entre trabalho e capital. Para o PCP, isto resultou, inclusivamente, num enorme peso na estrutura autárquica e na estrutura sindical do país, à frente da Intersindical (posteriormente CGTP).
O tipo de sindicalismo baseado na negociação e nos acordos entre sindicatos e patrões que se construiu – produto deste “pacto social” pós-25 de Abril–, no contexto atual de brutal ataque do capital contra o trabalho, não só é responsável pelos acordos que venderam os direitos da nova geração[18], como não tem capacidade nem querer para organizar a maioria, cada vez mais precária, da classe trabalhadora. Em vez de instrumento de luta da classe, funciona como bloqueio ao carácter explosivo das lutas dos trabalhadores.
As teses da transição (gradual) para o socialismo defendidas pelo PS, mas também pelo PCP, através da acumulação progressiva de conquistas e da assunção de um crescente peso no aparelho de estado dos partidos que dizem representar os trabalhadores, mostraram o seu resultado: uma democracia burguesa, plenamente integrada no capitalismo europeu.
A revolução portuguesa demonstra, portanto, a falência da transição gradual para o socialismo. É simples: por mais água que deitemos numa bacia com azeite, o azeite não se transforma em água. Da mesma forma, o acumular de reformas dentro do capitalismo não o transforma em socialismo. Pelo contrário, leva à derrota da luta pelo socialismo. Esta lição é tão válida na revolução portuguesa de 1974-1975 como o é hoje: a única maneira de chegar ao socialismo é a rutura revolucionária e a tomada do poder do Estado pelos trabalhadores. Isso esteve colocado a partir de 11 de março de 1975 de forma objetiva e, em particular, no período de agosto a novembro de 1975, quando a crise revolucionária punha na ordem do dia a tomado do poder ou a retoma do controlo da situação pela burguesia.
Ao contrário do que afirma o PCP, não chegámos ao socialismo, não porque não houvesse condições para isso, mas porque esse não era o projeto dos partidos que dirigiam a classe trabalhadora. Porque a única forma de construir o socialismo era, como propunha Moreno, fortalecer os organismos de duplo poder e centralizar a sua força num grande congresso das Comissões, que tomasse o poder. Para tal era necessário um partido revolucionário com esse projeto, que tivesse força suficiente para levar adiante essa proposta e derrotar os projetos PS e PCP. E isso não existia.
A adesão à CEE e a estabilização do país
A entrada de Portugal na CEE cumpriu um papel determinante para que este processo histórico de estabilização política e recuperação da normalidade nas relações entre capital e trabalho se dessem.
Logo em 1977, Portugal pediu a adesão, mas apenas em 1986 entrará formalmente na Comunidade. A entrada na CEE será o grande objetivo de todos os governos constitucionais depois da revolução, pois cumpre um papel estratégico para o projeto da burguesia portuguesa.
Por um lado, tem um objetivo de estabilização política, por ser um enquadramento mais amplo para fortalecer as instituições da democracia burguesa no país, contra os resquícios que resistiam da revolução portuguesa; nesse sentido, os muitos milhões vindos da CEE (através de dinheiro antes da integração, e de fundos estruturais e de modernização das infraestruturas após a integração) foram determinantes para absorver as tensões do período revolucionário e estabilizar o país, convencendo a população de que o caminho para a CEE era o caminho da prosperidade, democracia e justiça social, em rutura com as décadas de atraso e pobreza do salazarismo.
Por outro lado, ao acenar com a cenoura da entrada na CEE, os governos portugueses utilizaram o objetivo da integração como um processo de chantagem e pressão para atacar algumas das conquistas do período revolucionário. A necessidade da “livre concorrência” para integrar o Mercado Único Europeu foi utilizado para pressionar no sentido de abrir a banca à iniciativa privada, de privatizar setores nacionalizados, de indemnizar quem tinha sido expropriado, etc.. Não é por acaso que a revisão constitucional que vai permitir a privatização da banca será apenas aprovada em 1989, já após a integração da CEE.
Nesse sentido, a CEE jogou ,não apenas um papel de enquadramento político, mas também de pressão para a normalização das relações económicas e sociais entre trabalho e capital, que tinham sido abaladas na revolução. O avanço da reação democrática em Portugal tem na entrada na CEE um aspeto central, não como um instrumento democrático, mas como parte do desmonte da revolução.
A destruição produtiva, produto da integração na CEE, as privatizações massivas (bancos, indústrias centrais, setores que eram monopólios naturais, como as energias, as telecomunicações, etc.), e agravadas pela entrada no Euro a partir de 2000, são durante algum tempo “compensadas” aos olhos das massas trabalhadoras pelo crédito barato e fácil e por uma conjuntura internacional de crescimento, que se reflete também no país.
A entrega e submissão da burguesia portuguesa para entrar no clube dos empresários europeus mostrou o seu custo a partir da crise do início do século XXI –onde o Euro impede a utilização de mecanismos tradicionais de desvalorização cambial como forma de alavancar a economia– e é agravada, em particular, com a crise internacional de 2008/2009, que se transforma na crise da dívida portuguesa, a representar uma máximo de cerca de 130% do PIB em 2014. O grau de dependência fica exposto: a Troika vem a Portugal dizer que empresas privatizar, que direitos laborais anular, em que bancos intervir, como cortar nos serviços públicos, e uma longa lista de etcétera.
O livro que o leitor tem em mãos é, nesse sentido, visionário na localização de Portugal no mundo e nas contradições abertas pela revolução para o capitalismo português: “Se a revolução operária não chega a impor-se, a tendência do Portugal imperialista não deixa dúvidas: o seu atraso condená-lo-á a se transformar em submetrópole, ou seja, sócio menor de outros impérios mais poderosos na exploração da classe operária e das colónias; e a curto prazo, não está descartada a perda total da sua influência nas colónias, que o levará a transformar-se diretamente numa semicolónia. Portugal, para manter a sua atual independência do capital estrangeiro, só tem uma alternativa: o socialismo, que o faria superar o seu atraso sem cair sob o domínio dos grandes monopólios internacionais.”
Não se tendo imposto a revolução operária e socialista, o país iniciou, assim, um caminho de decadência que, em alguns aspetos, apresenta elementos de submetrópole intermediária entre o imperialismo europeu e alguma influência que ainda mantém nas suas ex-colónias. Mas, em particular a partir da intervenção da Troika, onde predominam, cada vez mais, os elementos semicoloniais de total dependência e submissão a nível económico do imperialismo europeu.
Isto reflete-se claramente –e cada vez mais– numa continuada degradação das condições de vida da sua classe trabalhadora, que tanto direitos conquistou, mas que hoje se vê a braços com a existência de dois setores paralelos: uma que ainda mantém os direitos e estabilidade do passado e uma nova geração para quem os direitos –mesmo quando consagrados na lei– são uma miragem devido à imensa precariedade e incapacidade das instituições de atuarem. É a perspetiva da austeridade sem fim. Este é um processo em curso e transitório, mas que precisa ser profundamente estudado para entendermos a fundo os desafios colocados ao país.
O presente da luta pela revolução em Portugal
O processo que se abriu em Portugal a partir do 25 de Abril de 1974 foi uma revolução profundíssima que mudou a cara do país. Foram arrancadas pelos trabalhadores em luta grandes conquistas e amplos direitos democráticos, com clara diferença, por exemplo, do regime do Estado Espanhol, onde a transição pactuada com o franquismo deixou fortes marcas de bonapartismo. Foram conquistas fundamentais no direito ao trabalho, na nacionalização de setores estratégicos, na construção de serviços públicos de qualidade e com uma cobertura nacional, num país marcado pelo extremo atraso. Nada foi dado de mão beijada –tudo foi conquistado a ferro e luta pela classe trabalhadora, que tomou o seu destino nas mãos.
Mas no sistema capitalista, todas as conquistas são efémeras, porque o seu âmago é viver da cada vez maior exploração e opressão dos trabalhadores: e o lucro dos patrões e banqueiros é totalmente incompatível com os direitos mais mínimos dos trabalhadores. São interesses irreconciliáveis entre trabalho e capital. A democracia portuguesa, apesar das concessões realizadas às classes trabalhadoras, foi em si mesma o projeto oposto ao da rutura revolucionária e da construção de uma sociedade socialista que esteve colocada em Portugal no ano de 1975.
Por outro lado, não só não se avançou para o socialismo, como 45 anos depois retrocedemos em direitos elementares, anteriormente conquistados.
Se novos burgueses surgiram, a verdade é que as grandes famílias burguesas, que historicamente dominaram e sugaram o país, voltaram –em muitos casos numa aliança subordinada ao capital internacional–, para continuar a explorar os trabalhadores. A precariedade substituiu a estabilidade no emprego. O salário mínimo, não alcança –em relação ao custo de vida– o valor que tinha em 1975, abrangendo hoje cerca de 23% dos trabalhadores ativos. Da nacionalização da banca, sobrou hoje a privatização dos lucros e a nacionalização dos prejuízos dos banqueiros, de que o caso do Novo Banco é apenas o mais visível, mas não o único. Das indústrias e setores estratégicos nacionalizados, temos a privatização de tudo, por tuta-e-meia, com um avanço extraordinário do domínio do capital internacional nos principais setores (inclusive em setores que sempre foram públicos, como é o caso dos aeroportos). Temos a enorme dependência dos investimentos internacionais, que levam à chantagem constante sobre os trabalhadores, como o caso dos Estivadores mostrou recentemente. O direito às 40h semanais e ao descanso ao fim-de-semana, está a ser totalmente destruído pela aceleração dos ritmos de trabalho e exploração, como mostrou a luta dos trabalhadores da Autoeuropa. A saúde e educação são asfixiadas pelos cortes orçamentais (explícitos ou produto das cativações como é a moda do Ministro Centeno) e pelo espartilho do défice, o que abriu as portas ao crescimento do serviço privado e deterioração das condições e qualidade do público, como bem vêm mostrando a luta dos enfermeiros, professores e outros funcionários públicos.
Está claro, portanto, o falhanço da democracia burguesa em garantir direitos fundamentais (trabalho, saúde, educação, justiça, habitação) aos trabalhadores, à juventude, às mulheres, aos negros e imigrantes, e de levar para a frente aquilo que era o desejo da população, não apenas de democracia, mas de justiça social, contra as grandes famílias burguesas, a injustiça e pobreza do salazarismo.
Hoje, para fugir da miséria e da barbárie do capitalismo, a revolução é não só necessária, mas urgente. Precisamos de uma nova revolução que alcance aquilo que esteve na ordem do dia em 1975, mas foi boicotado: o socialismo, o poder dos trabalhadores. Essa revolução, hoje, tem de passar necessariamente pela saída da União Europeia e do Euro, porque dentro da UE só há austeridade e ataques sem fim contra os trabalhadores, como a história da revolução portuguesa e os últimos anos bem demonstram. Essa revolução precisa também de uma alternativa dos trabalhadores e da juventude, independente dos governos, sejam eles de direita ou de “esquerda”, para que possa vir a triunfar: uma alternativa de luta e sindical, nos locais de trabalho e de estudo, mas, acima de tudo, uma alternativa política – um partido revolucionário, que possa fazer a diferença na próxima revolução; é nesse projeto que estamos hoje empenhados.
Cada vez mais trabalhadores e jovens estão desiludidos. Mas não veem alternativa. Uma revolução parece algo longínquo, impossível num país da União Europeia, perante a força que parece ter a inevitabilidade do capitalismo.
Recentemente, António Costa disse que a revolução do 25 de abril é inacabada[19] e que a festa continua a ser bonita[20] –mas aqueles que vivem do seu trabalho, que lutam para poder viver e sobreviver do seu salário sabem que não é assim, porque a austeridade continua sobre o governo Costa. Fernando Rosas, a propósito das comemorações dos 20 anos do BE, apontava para a chegada da esquerda ao poder [parlamentar] como a forma de o avançar do socialismo. O PCP quer hoje o socialismo como uma democracia avançada do século XXI: democracia política, económica e social. Todos rejeitam o socialismo enquanto tomada do poder revolucionária pelos trabalhadores; por isso, procuram justificar o mal menor de apoiar a Geringonça. Por isso, são a sustentação do regime capitalista e não os seus coveiros. Por isso, hoje todos querem que esqueçamos a revolução; que a comemoremos como algo do passado, porque o presente é a “democracia”. Nós dizemos o oposto: recuperemos a memória da luta pela revolução operária e socialista portuguesa para saber o que faltou e o que queremos na próxima revolução. O texto Revolução e Contrarrevolução em Portugal de Moreno é um contributo fundamental para isso.
Finalmente, relembremos que, hoje, a revolução pode parecer inalcançável, mas como dizia Leon Trotsky: todas as revoluções são impossíveis, até que se tornam inevitáveis. A exploração brutal, a precariedade, a violência sobre a mulher, o racismo, o reaparecimento da extrema-direita, a austeridade sem fim que nos oferece como projeto a UE agravam-se, tocam os limites da barbárie, porque a revolução e o socialismo não triunfaram. E a sua brutalidade é tão forte, que mais cedo ou mais tarde, a revolução será, de novo, inevitável.
Fonte: “Introdução”. In Revolução e Contrarrevolução em Portugal, de Nahuel Moreno. Edições Em Luta (2019).
[1] Revista Argentina de temas internacionais. O texto que aqui publicamos pertence à edição de Julho-Agosto de 1975
[2] https://litci.org/es/archive/cronologia-da-vida-de-moreno-sp-1383334792/
[3] https://www.ernestmandel.org/en/works/txt/1987/moreno.htm
[4] Cunhal, Álvaro.1975. A revolução portuguesa. Lisboa: Publicações D. Quixote. Pág 147.
[5] Idem. Pág 159-160.
[6] Utilizamos aqui a expressão utilizada por Moreno no texto, embora nestes governos estivesse também presente o PPD.
[7] Por analogia com o governo de Alexander Kerensky na Rússia de 1917.
[8] Quem ler com atenção o Pacto MFA-Partidos encontrará claramente a anulação da conquista democrática da Assembleia Constituinte e um regime bonapartista, onde o centro é o poder do exército (com destaque para o Conselho da Revolução e o Presidente da República), que determina, nomeadamente, a votação indireta do Presidente da República e a escolha do Primeiro-ministro por este. Já no documento Aliança Povo-MFA fica bem clara a intervenção direta do MFA sobre os organismos de duplo poder (as comissões de trabalhadores, moradores, etc.), fundando e institucionalizando as “Assembleias Populares” controladas pelo MFA-PCP.
[9] Trotskista norte-americano e principal líder do Socialist Workers Party (SWP) dos EUA.
[10] Carta de Moreno a Hansen; Boletim de Discussão Internacional da IV Internacional, Janeiro de 1976, volume XIII, número I (versão original em inglês em https://www.marxists.org/history/etol/document/fi/iidb-1972-76/index.htm)
[11] Veja-se o trabalho de Sá, Tiago Moreira e Gomes, Bernardino. Carlucci vs Kissinger – Os EUA e a Revolução Portuguesa, 2008. Dom Quixote, e também Paço, António.“Friends in high places: o Partido Socialista e a Europa Connosco” in Varela, Raquel (coord.). Revolução ou Transição? História e Memória da Revolução dos Cravos. 2012. Bertrand Editora, onde encontramos dados muito relevantes sobre a atuação dos EUA e da social-democracia europeia na revolução.
[12] Cronologia do Centro de Documentação 25 de Abril (http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=ano1975). Para mais sobre este assunto, consultar livro de Varela, Raquel. O PCP na revolução dos cravos. 2011. Bertrand Editora.
[13] “parece-nos melhor reservar [o termo] “contrarrevolução” para quando se tortura, se persegue, se mete preso, e não onde, por métodos democráticos, se encurrala o movimento operário.” In Moreno, Nahuel. 1984. Escola de Quadros da Argentina 1984 – Crítica às Teses da Revolução Permanente de Trotsky. Crux Ediciones. Buenos Aires.
[14] Moreno, Nahuel. 2003. As revoluções do século XX. Editora José Luís e Rosa Sundermann. São Paulo.
[15] Intervenção de Álvaro Cunhal na Reunião do Comité Central do PCP, a 10 de Agosto de 1975 (http://www.pcp.pt/intervencao-de-alvaro-cunhal-na-reuniao-plenaria-do-comite-central-do-pcp)
[16] A 25 de abril de 1976, realizam-se as legislativas que dariam a vitória ao PS; a 27 de junho, Ramalho Eanes (o rosto do 25 de Novembro) foi eleito Presidente da República; a 23 de setembro, toma posse o I Governo Constitucional, liderado por Mário Soares.
[17] Ver Varela, Raquel. 2012. “Ruptura e Pacto Social em Portugal: um olhar sobre as crises económicas, conflitos políticos e direitos sociais em Portugal (1973-1975, 1981-1986) in Quem paga o estado social em Portugal?. Bertrand Editora. E também Varela, Raquel. 2014. “Democracia e revolução: o debate sobre o significado da revolução dos cravos” in A história do Povo na Revolução Portuguesa 1974-1975. Bertrand Editora
[18] Idem.
[19] https://www.tsf.pt/politica/interior/antonio-costa-a-festa-continua-a-ser-bonita-pa-10657468.html
[20] Em referência à música de Chico Buarque “Foi bonita a festa pá”, sobre a revolução portuguesa.