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sexta-feira, julho 26, 2024

As tentativas de revolução política no bloco soviético

Ninguém analisou tão profundamente quanto Leon Trotsky o caráter do Estado soviético após o triunfo da contrarrevolução stalinista. Em 1936, em meio ao auge econômico vivido pela URSS, quando os fatos pareciam confirmar a correção das teorias e políticas da casta burocrática, Trotsky publicou um livro intitulado A Revolução Traída. Nesta obra, que deve ser estudada por quem deseja compreender a trajetória dos antigos Estados operários, o futuro fundador da IV Internacional não só analisou a degeneração e as contradições do Estado soviético, mas também fez uma previsão precisa da restauração capitalista meio século antes desse processo começar.

Por: Daniel Sugasti

O livro buscou responder a um acontecimento inédito, de enorme impacto político: a degeneração burocrática do primeiro Estado operário da história. Esse processo altamente contraditório era fonte de confusão e duras polêmicas, mesmo entre os membros da chamada Oposição de Esquerda Internacional, a organização liderada por Trotsky para enfrentar a contrarrevolução stalinista.

Tratava-se, antes de tudo, de caracterizar cientificamente o caráter da União Soviética. Sem isso, a tarefa de elaborar um programa revolucionário era impossível. Na década de 1930, enquanto o mundo capitalista mergulhava em uma terrível crise, a economia soviética crescia de maneira impressionante. Trotsky propôs que se buscasse a base dos indicadores econômicos surpreendentes na expropriação da propriedade burguesa, na nacionalização dos principais meios de produção, no planejamento da economia e no monopólio estatal do comércio exterior; isto é, nas conquistas estabelecidas pela revolução socialista de 1917, não na política burocrática do stalinismo. Ele explicou que a camarilha do Kremlin mantinha essas bases sociais apenas na medida em que constituíam a fonte de seus privilégios materiais, embora, paralelamente, as estivesse minando gradualmente.

As conquistas da revolução socialista permitiram que, na década de 1940, a URSS saísse de um país materialmente atrasado para se tornar a segunda potência econômica e militar do mundo.

Isso significa que, como afirmam os burocratas, a URSS alcançou o socialismo? Trotsky rejeitou categoricamente tal afirmação. Ele caracterizou a URSS como um estado operário que degenerou depois que a burocracia stalinista usurpou o poder político dos sovietes (conselhos) e, com isso, esse aparato deixou de ser um instrumento a serviço da classe trabalhadora e da revolução mundial para converter-se justamente no contrário, isto é, um instrumento de repressão interna e um freio a qualquer processo revolucionário internacional.

A dinâmica da casta burocrática, interessada apenas em aumentar seus privilégios, levou a uma sabotagem da economia planificada e das bases sociais do Estado operário, uma vez que a direção econômica não era discutida democraticamente pela classe operária. Por isso, para o stalinismo, foi essencial liquidar a democracia soviética e estabelecer um regime totalitário, que sempre apelou aos métodos da guerra civil contra a classe trabalhadora. Um regime político – embora sustentado em fundamentos socioeconômicos opostos – gêmeo do fascismo. Consequentemente, os planos econômicos não estavam a serviço de responder às necessidades da classe operária, mas aos mesquinhos interesses da burocracia.

Resumindo: a burocracia expropriou politicamente o domínio da classe operária sobre o Estado, esterilizou os Sovietes, liquidando seu caráter de classe e anulando seu conteúdo revolucionário. Dos sovietes ficou apenas uma casca vazia. Com base nesta política contrarrevolucionária, uma ditadura foi imposta contra o proletariado.

Mao e Stalin em 1949

Sobre as contradições das relações de classe na URSS, Trotsky demonstrou que a expropriação da burguesia não eliminou as classes, ao contrário do que dizia o stalinismo, mas que a burguesia se reconstruía através da pequena burguesia rural e urbana, bem como pela a própria burocracia privilegiada. Não só a URSS estava longe de ser um “país socialista”, como sequer havia atingido o nível das economias capitalistas avançadas. A questão toda residia no fato de que, de acordo com o marxismo, é impossível para um país chegar ao socialismo isoladamente. O proletariado pode tomar o poder num determinado país e pôr em marcha uma economia de transição para o socialismo, mas o socialismo como sistema só é possível à escala mundial, isto é, pressupõe a derrota do imperialismo.

Na verdade, a própria existência de um Estado policial, uma terrível ditadura contra a classe operária e os setores populares, foi uma demonstração, por um lado, do atraso material da economia soviética; de outro, a prova irrefutável de que o “socialismo” nunca existiu na URSS. Em primeiro lugar, porque a transição para o socialismo pressupõe uma ampla democracia operária, isto é, o controle do proletariado sobre seu próprio Estado. Em segundo lugar, porque o socialismo exige, ao mesmo tempo, o desaparecimento gradual do Estado rumo ao comunismo.

O “Estado operário degenerado”, entretanto, era um elemento contraditório dentro da economia mundial dominada pelo imperialismo. Em algum momento, essa contradição deveria ser resolvida. Seja por uma extensão da revolução socialista aos países capitalistas mais avançados, seja por meio da restauração capitalista nos estados operários.

Nesse sentido, Trotsky colocou que existiam três hipóteses para a evolução dessa formação socioeconômica contraditória.

A primeira era que uma revolução liderada por um partido revolucionário, “tendo todas as qualidades do velho partido bolchevique”, derrubasse a burocracia e regenerasse o estado soviético. Isso significaria, conforme definiu, uma revolução política:

“A revolução que a burocracia prepara contra si mesma não será social como a de outubro de 1917, pois não tentará mudar os fundamentos econômicos da sociedade ou substituir uma forma de propriedade por outra. A história conheceu, além das revoluções sociais que substituíram o regime feudal pelo burguês, revoluções políticas que, sem tocar nos fundamentos econômicos da sociedade, derrubam as antigas formações dominantes (1830 e 1848 na França; fevereiro de 1917, na Rússia). A subversão da casta bonapartista terá naturalmente profundas consequências sociais; mas não vai sair do quadro de uma revolução política “[1].

Em outras palavras, seria uma revolução no regime político, não no caráter de classe do Estado. O trotskista argentino e fundador da LIT-QI, Nahuel Moreno, resumiu esta definição em 1980:

“A revolução política é uma verdadeira revolução porque reflete a luta feroz e mortal entre diferentes setores sociais, não classes, mas setores sociais. A revolução política é a revolução da classe operária de base popular contra a aristocracia operária e seus funcionários, ou seja, suas burocracias. É política porque é a luta feroz de um setor da classe operária contra outro setor ou contra seus funcionários E dizemos que é uma verdadeira revolução porque o movimento operário terá que se mobilizar em massa para tirar este setor da direção de suas organizações, que lutará até a morte para defender seus privilégios”[2].

Uma revolução dessa natureza, segundo Trotsky:

“[…] começaria restaurando a democracia nos sindicatos e nos sovietes. Poderia e deveria restaurar a liberdade dos partidos soviéticos. Com as massas, à frente das massas, procederia a uma limpeza implacável dos serviços do Estado; aboliria os graus, as condecorações, os privilégios e restringiria a desigualdade na remuneração do trabalho, na medida permitida pela economia e pelo Estado. Daria à juventude a chance de pensar livremente, de aprender, de criticar, em uma palavra, de formar-se. Introduziria modificações profundas na distribuição da renda nacional, de acordo com a vontade das massas operárias e camponesas. Não teria que recorrer a medidas revolucionárias em matéria de propriedade. Continuaria e aprofundaria a experiência da economia planificada. Depois da revolução política, depois da queda da burocracia, o proletariado levaria a cabo reformas muito importantes na economia sem precisar de uma nova revolução social”[3].

A segunda hipótese consistia em que a contrarrevolução triunfasse por meio de “um partido burguês” que restaurasse o capitalismo. Isso teria sido uma contrarrevolução social, não política:

“Embora a burocracia soviética tenha feito muito pela restauração burguesa, o novo regime seria forçado a realizar, no regime de propriedade e no modo de gestão, uma verdadeira revolução e não uma simples reforma”[4].

Mas havia uma terceira hipótese: a de que a burocracia permanecesse no poder por um período relativamente longo. Nesse caso, o que aconteceria? Trotsky desenvolveu esta alternativa em A Revolução Traída:

“A burocracia continua na cabeça do Estado. A evolução das relações sociais não para. É evidente que não se pode pensar que a burocracia vai abdicar em favor da igualdade socialista […] no futuro, ela inevitavelmente buscará apoio nas relações de propriedade. Provavelmente será objetado que as formas de propriedade das quais ele obtém sua renda pouco importam para o alto funcionário. Isso é ignorar a instabilidade dos direitos da burocracia e o problema de sua descendência. O recente culto da família soviética não caiu do céu. Privilégios que não podem ser legados aos filhos perdem metade de seu valor; e o direito de testamento é inseparável do direito de propriedade. Não basta ser diretor de um truste, é preciso ser acionista. A vitória da burocracia naquele setor decisivo criaria uma nova classe possuidora. Pelo contrário, a vitória do proletariado sobre a burocracia marcaria o renascimento da revolução socialista “[5].

Em outras palavras, se a burocracia conseguisse se manter no poder do Estado operário, essa mesma casta restauraria o capitalismo e, ao fazê-lo, se transformaria em uma classe possuidora, uma nova burguesia.

León Trotski fez previsões sobre a restauração burguesa na URSS que, meio século depois, se mostraram acertadas

No Programa de Transição, o programa com o qual a Quarta Internacional foi fundada em 1938, Trotsky colocou esse problema de forma mais categórica:

“o prognóstico político tem um caráter alternativo: ou a burocracia se transforma cada vez mais em um órgão da burguesia mundial dentro do Estado Operário, derruba as novas formas de propriedade e retorna o país ao capitalismo; ou a classe operária esmaga a burocracia e abre caminho para o socialismo”[6].

Resumindo: se a classe operária soviética não realizasse uma revolução política que derrubasse o Termidor stalinista, mas ao mesmo tempo salvaguardasse as relações de propriedade não capitalistas, a restauração capitalista, mais cedo ou mais tarde, seria um fato.

Infelizmente – embora não sem luta, como veremos – esta foi a hipótese, antecipada de forma brilhante por Trotsky, que se confirmou na realidade.

Em meados da década de 1980, a direção de Mikhail Gorbachev, junto com a cúpula da KGB, decidiram restaurar o capitalismo. Em 1986, o XXVII do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) iniciou o processo de desmantelamento de toda a estrutura do Estado operário em três sentidos principais: a liquidação da propriedade socializada dos principais meios de produção; o fim do monopólio do comércio exterior; o fim da economia planificada. A restauração burguesa, de fato, havia começado muito antes na ex-Iugoslávia e na China. Atualmente, todos os ex-estados operários são países capitalistas, em todos eles impera a economia de mercado.

Bush e Gorbachev se reúnem em Moscu, 31 de julho de 1991
© Peter Turnley/Corbis

A restauração do capitalismo é o balanço histórico do stalinismo. A ideologia oficial do “socialismo em um país”, prevalecente desde 1924, implicava uma renúncia à perspectiva da revolução socialista mundial. Essa proposição – uma falsificação grosseira do marxismo – nunca foi além de uma teoria justificativa das concepções nacionalistas enraizadas na burocracia soviética e sua principal preocupação: expandir seus privilégios materiais. Isso teve uma derivação nas regras da política internacional da URSS: a “coexistência pacífica” com o imperialismo, formulada no segundo pós-guerra, mas aplicada desde antes[7].

A história deu seu veredicto. A restauração do capitalismo nos antigos Estados operários é a prova do fracasso das teorias do socialismo em um só país e da coexistência pacífica com o imperialismo. A história confirmou, em um período relativamente curto, que não há possibilidade de se chegar ao socialismo no terreno nacional; que este novo tipo de sociedade – superior em todos os sentidos ao capitalismo – só pode ser alcançado através de uma revolução mundial que destrua o imperialismo. O socialismo será mundial ou não será. A realidade mostrou, em suma, que a transição para o socialismo é inconcebível sem um regime político de ampla democracia operária, já que a política contrarrevolucionária da casta burocrática – uma excrecência social alheia ao proletariado – em escala nacional e internacional, mina as bases econômico-sociais de qualquer Estado operário e, mais cedo ou mais tarde, impõe um retrocesso para o capitalismo.

As “democracias populares”

O fim da Segunda Guerra Mundial impõe um reordenamento do sistema internacional de Estados, selado pelos acordos firmados nas conferências de Yalta e Potsdam em 1945, entre Roosevelt-Truman (EUA), Churchill e Stalin. A burocracia soviética, seguindo a lógica da coexistência pacífica que delineamos, compactua com o imperialismo uma nova divisão do mundo. As potências imperialistas, por um lado, reconheceram à URSS o direito de constituir um “bloco” de nações aliadas na Europa Central e Oriental. Por outro lado, Stalin se comprometia a impedir a revolução no resto da Europa e no mundo, especialmente em países onde a resistência ao nazismo era liderada pelos partidos comunistas. O compromisso com os líderes imperialistas evitou a tomada do poder em países como França, Itália e Grécia. O Kremlin estava interessado apenas em consolidar sua área de influência que, segundo sua teoria, “coexistiria” pacificamente com o mundo capitalista. Assim nasceu a divisão oficial entre “dois campos”, “dois sistemas”: os “Estados imperialistas” e os “Estados amantes da Paz”.

No contexto do avanço militar soviético para Berlim, o Exército Vermelho libertou do jugo nazista uma faixa de países nos quais, após a guerra, manteve uma ocupação militar. Este foi o ponto de partida da formação do chamado “bloco do Leste”, ou o glacis soviético, uma cadeia de Estados controlada, manu militari, pela burocracia stalinista. Esses “países satélites” atuaram como um “colchão” entre a Europa imperialista e a URSS: Alemanha Oriental, Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária, Iugoslávia (até 1948) e Albânia (até 1960).

Entre 1945 e 1948, Stalin promoveu as chamadas “novas democracias”, isto é, governos de unidade com frações burguesas (frentes populares), preservando as formas de regime multipartidário e o ritual das eleições parlamentares, mas sob a tutela do Exército Soviético. No início, a propriedade privada dos meios de produção permaneceu quase intacta. Mas essa política mudou em 1948, principalmente devido às pressões imperialistas, concretizadas na doutrina Truman e com o Plano Marshall. Moscou orientava os partidos comunistas locais a tomarem todo o poder e incentivava a expropriação da burguesia. Assim, surgiram regimes de partido único, modelados no modelo stalinista russo[8]. Ou seja, no contexto de condições objetivas excepcionais e ao contrário de suas intenções originais, o Kremlin amplia a estrutura social e o regime bonapartista em vigor na URSS, mas esta mudança não é o produto de uma revolução operária (como a de Outubro de 1917), mas, essencialmente, da ocupação militar do Exército Vermelho nos países da Europa Central e Oriental[9].

Assim surgiram novos estados operários, mas burocratizados desde sua gênese[10]. Em outras palavras, embora os capitalistas tenham sido expropriados e essas economias planificadas, o poder político permaneceu nas mãos de uma burocracia privilegiada e ferrenha inimiga da democracia operária.

Este é o início das chamadas “democracias populares”, um bloco de países economicamente explorados e oprimidos pelo chauvinismo russo. Eles eram Estados dominados por uma ocupação militar estrangeira permanente. A opressão de Moscou, como veremos em outra seção, colocará repetidamente, e de forma dramática, o problema nacional.

O significado político das “democracias populares” gerou uma intensa controvérsia sobre o que eram esses novos Estados. Nas fileiras do trotskismo, extremamente enfraquecido pelo assassinato de Trotsky em 1940, a extensão da expropriação da burguesia a esses países fez correntes como a liderada por Michel Pablo e Ernest Mandel argumentarem que o stalinismo, sob certas condições, era capaz de cumprir um papel revolucionário. Daí a proposta deste setor de promover a política de “entrismo sui generis” nos partidos comunistas; o que de fato implicava a dissolução do trotskismo no aparato stalinista. Outro setor, no qual se inclui a corrente morenista, rejeitou categoricamente esta capitulação e definiu a ocupação soviética como “Estados operários deformados”. As consequências práticas desse debate, bem como os métodos burocráticos da fração Pablo-Mandel, precipitaram a primeira grande ruptura no trotskismo do pós-guerra, em 1953.

Em 1957, Nahuel Moreno sintetizou o processo que deu origem ao Bloco do Leste. Essa base conceitual será crucial para compreender as revoluções políticas e sua dinâmica.

“Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a Rússia se tornou um país que explora outras nações e seus trabalhadores. Aproveitando o ascenso revolucionário das massas do pós-guerra, que aterrorizou o imperialismo e o capitalismo, e a presença do Exército Vermelho no Leste Europeu, a burocracia russa negociou com o imperialismo o reconhecimento de sua influência na região. Para expandir sua esfera de influência no mundo, a burocracia ‘pagou’ entregando a revolução, e a partir desse momento o stalinismo se tornou o principal apoiador do regime capitalista enfraquecido e semiarruinado na Europa […] Como resultado desta negociação, às ‘Democracias Populares’ na Europa Oriental, e nelas as hierarquias do Kremlin estabeleceram – após muitas ‘limpezas’ – suas agências burocráticas nacionais “[11].

No campo da luta de classes mundial, digamos de passagem, a formação da ocupação soviética, junto com o triunfo da Revolução Chinesa de 1949, inaugurou uma nova etapa em escala mundial: um longo período de vitórias táticas – a expropriação da burguesia em um terço do planeta como produto da imensa pressão da mobilização revolucionária das massas, especialmente na China – embora no contexto de uma derrota estratégica. Moreno sempre falou que essa enorme conquista continha a terrível contradição de que esse processo fortaleceu o principal aparato contrarrevolucionário da história, o stalinismo, exacerbando assim a crise da direção revolucionária.

“No entanto – dizem as teses fundadoras da LIT-QI em 1982 – esses processos revolucionários colossais não conseguiram atender à necessidade objetiva da revolução socialista mundial. Ao contrário, chegamos a uma situação contraditória, paradoxal: o maior triunfo alcançado no decorrer desse processo revolucionário – a expropriação do capitalismo em um terço da humanidade e a constituição de mais de uma dezena de Estados operários – parecia voltar-se contra. Enquanto, liderados por burocracias, os Estados operários nacionais se tornaram obstáculos no caminho da revolução mundial “[12].

Dada a caracterização desses novos Estados operários deformados, Moreno delineou os eixos gerais do programa trotskista nesses países. A precisão alude à polêmica com Pablo e Mandel:

“O programa desenvolvido pela Quarta Internacional para a área dominada pela burocracia e para a própria URSS é simples e gira em torno de dois pilares: a revolução política e o direito à autodeterminação das nações dominadas pela URSS. Este programa foi atualizado no pós-guerra com um acréscimo de fundamental importância para os países ocupados pelo Exército Vermelho: Que saia o Exército Vermelho para que cada país faça o que quiser! Que o Exército Vermelho dê o exemplo, não ocupando ou dominando nenhum país! Essa conquista teórica e programática custou anos ao nosso movimento […]”[13].

Esta síntese estreita do cenário do pós-guerra na Europa de Leste e das bases programáticas da ala principista do trotskismo servirão para compreender os processos decorrentes da crise mundial do aparato stalinista.[14]. Um primeiro marco dessa crise é, sem dúvida, a morte de Stalin, ocorrida em 5 de março de 1953. Após três décadas de “culto à personalidade”, o desaparecimento do infalível “brilhante guia dos povos” não poderia menos que abalar o poder da burocracia. Não é por acaso que, poucos meses depois, eclodiu o primeiro processo de revolução política. A primeira de muitas tentativas que, embora derrotadas, confirmariam a tendência apontada por Trotsky.[15].

A revolta operária em Berlim Oriental

Entre 16 e 17 de junho de 1953, uma greve iniciada por operários da construção em Berlim Oriental levou a uma rebelião que se espalhou por toda a República Democrática Alemã (RDA). Cerca de meio milhão de operários cruzaram os braços e cerca de um milhão de alemães orientais foram às ruas em 700 cidades e vilas.

A gota d’água foi a proposta de aumentar o ritmo de produção sem aumento de salário. De fato, no final de maio o governo da RDA determinou um aumento de 10% na cota de produção. Se os operários de um determinado ramo industrial não atingissem as metas estabelecidas pela burocracia, seus salários seriam reduzidos.

As constantes demandas por aumento de produtividade eram particularmente odiosas para a classe operária de um país em ruínas, que suportava as privações materiais algemadas, sem qualquer liberdade democrática efetiva. Por outro lado, havia uma ampla consciência de que as metas para acelerar o desenvolvimento da indústria pesada na RDA faziam parte de um plano econômico elaborado para atender às demandas da economia soviética, e não às necessidades básicas dos operários alemães. Dado o caráter totalitário do regime, nem as cotas de produção nem qualquer medida econômica foram decididas pelos trabalhadores, mas pelos burocratas, antes de tudo, os de Moscou. Eletricidade, carvão, aquecimento, tudo estava racionado. A nova cota de produção representou um atentado às condições de vida já castigadas. Na indústria da construção, por exemplo, implicou um corte salarial particularmente severo: entre 10 e 15% para operários não qualificados; a metade ou mais para os qualificados.

Essa ofensiva da burocracia contra os trabalhadores foi enquadrada na política do “novo curso”, oficializada em 9 de junho de 1953 pelo Comitê Central do SED[16], o partido governante. Justificada por indicadores econômicos fracos, a nova política significou uma série de concessões à burguesia, à pequena burguesia e às igrejas: créditos facilitados, desnacionalização de empresas, menos contribuições dos camponeses ao Estado, anistia para políticos burgueses corruptos na prisão, entre outras regalias. O “novo curso”, por outro lado, não instituiu nenhum aprimoramento material para a classe operária.

A política de crescimento desproporcional da indústria pesada, em detrimento da produção de bens de consumo básicos, derivou em escassez e fome para os alemães orientais. A própria burocracia, uma vez que a rebelião estourou, reconheceu esse fato. Em sua edição de 17 de junho, o jornal SED admitiu que “o desenvolvimento forçado da indústria pesada levou […] à restrição da indústria dos meios de consumo. Isso tem impedido o aumento do padrão de vida”[17].

Um alvoroço em Berlim Oriental. No dia 16 de junho, os pedreiros de todas as obras da Avenida Stalin (Stalinallee) decidiram democraticamente entrar em greve e marchar em direção à “Casa dos Ministérios” para exigir do governo “comunista” a revogação da nova cota de produção. Essa decisão foi precedida de uma série de debates. Já no dia 8 de junho, os operários do bloco 40 da Stalinallee, dos quais 75% eram membros do SED, votaram uma resolução contra essa imposição.

No início, os grevistas não tinham outra intenção senão entregar suas demandas por escrito às autoridades. Assim, desfilaram sob uma faixa vermelha que dizia: “Exigimos redução da cota!” À medida que os pedreiros avançavam, milhares de outros trabalhadores se juntaram à coluna entoando outros tipos de demandas: “Trabalhadores, uni-vos!”, “União faz a força!”, “Queremos eleições livres!”, “Queremos ser livres, não escravos!”.

Tanques soviéticos esmagam a greve geral em Berlim oriental, 1953

Quando a passeata chegou ao seu destino, eles não foram recebidos pelo “camarada” Walter Ulbricht, secretário-geral do SED, mas por funcionários secundários. Isso enfureceu os presentes. Diante de uma multidão de cerca de 10.000 pessoas, um orador apresentou uma lista de reivindicações: cancelamento dos aumentos na cota de produção; Redução de 40% nos preços nas lojas estatais; aumento geral de nível dos operários; abandonar a tentativa de criar um exército; eleições livres na Alemanha; democratizar o partido e os sindicatos. Diante da indiferença da burocracia, os operários decidiram convocar uma greve geral para o dia seguinte. Uma crônica da época conta como os operários, enfurecidos, enfrentaram seu interlocutor stalinista, gritando: “Nós somos os verdadeiros comunistas, não vocês!” Durante a noite, as atividades de preparação para a greve foram frenéticas. De um dia para o outro, havia assembleias por toda parte e comitês de fábrica foram formados. Os debates abordaram questões que iam muito além das meras demandas econômicas, como a exigência de que dias de greve sejam pagos e que não haja represálias contra membros da comissão; redução dos salários da polícia; Liberdade para presos políticos; renúncia do governo; estabelecimento de eleições secretas, gerais e livres, que garantiriam uma vitória operária em uma Alemanha reunificada.

A greve geral de 17 de junho foi um sucesso retumbante. Mais de 150.000 operários, principalmente metalúrgicos, pedreiros e de transportes, ocuparam as ruas do setor soviético de Berlim. Delegações de operários da Alemanha Ocidental se juntaram à luta. Assembleias, moções de solidariedade, protestos de todo tipo eclodiram em todos os centros industriais da RDA. Surgiram comitês de fábrica e até embriões de sovietes (conselhos de operários). A radicalização dos trabalhadores foi muito acelerada. Em questão de horas, a greve dos pedreiros da Avenida Stalin se transformou em um verdadeiro levante revolucionário, abalando a burocracia stalinista.

Mas a greve como tal não se estendeu ao setor ocidental. A burocracia operária ocidental conseguiu impedir a unificação da luta.

Os chefes da RDA, assustados, pediram ajuda a Moscou. Eles haviam perdido o controle da situação. Então, mais de 20.000 soldados russos apoiados por tanques do Exército Vermelho estacionados na Alemanha Oriental, além de 8.000 policiais locais (Volkspolizei), invadiram as ruas para esmagar o levante. Os tanques abriram caminho por entre a multidão, que inutilmente atirou pedras e o que quer que estivesse à mão. Os russos não hesitaram em abrir fogo para dispersar a manifestação. O relatório oficial admite que mais de 50 pessoas morreram. Outras estimativas falam de centenas de mortes durante a repressão. A rebelião operária havia sido sufocada.

Nos dias que se seguiram ao massacre, a Justiça da RDA e os tribunais militares soviéticos julgaram sumariamente centenas de pessoas. Houve execuções e torturas nas prisões da temível polícia política, a Stasi. Pela primeira vez, a burocracia fechou o setor oriental, isolando-o do resto da cidade, um prelúdio do futuro Muro de Berlim.

Porém, a partir da jornada do dia 17 de junho ocorreram greves e protestos em diversas localidades. Mas a derrota foi selada em Berlim. O governo stalinista de Grotewohl-Ulbricht foi salvo pela intervenção dos tanques soviéticos. Otto Nuschke, um dos vice-presidentes do Conselho de Ministros, afirmou: “Os russos têm razão em usar os tanques, porque, como potência ocupante, é seu dever restaurar a ordem”[18]. O primeiro ato de revolução política, embora passageiro, seria um exemplo para os povos de outros países do Leste. Mostrou que a burocracia não era onipotente. 

A Revolução Húngara de 1956

Entre 23 de outubro e 10 de novembro de 1956, a Hungria foi palco de uma revolução popular e operária contra o regime burocrático stalinista. Foi um processo muito mais amplo e profundo do que a greve geral de Berlim. No entanto, como se sabe, teve o mesmo destino de seus irmãos de classe alemães. A revolução política húngara acabaria sendo esmagada pelo Exército Vermelho, não sem antes legar uma referência de combatividade que inspiraria processos futuros no Leste Europeu.

Dois antecedentes importantes. Em fevereiro de 1956 foi realizado o XX Congresso do PCUS, no qual Nikita Khrushchev denunciou os “crimes de Stalin” – dos quais também participou -, condenou o “culto à personalidade” do ex-líder soviético e prometeu reformas no estado e no partido. O “Discurso Secreto” anunciou uma “desestalinização” da sociedade soviética, medida concebida para responder à crise criada pela morte de Stalin, dentro da própria burocracia. Também respondeu às pressões geradas pelo descontentamento em massa que crescia na área de influência soviética. Nahuel Moreno comentou sobre as diferentes interpretações da manobra de Khrushchev e sua ala dentro da camarilha:

“O 20º Congresso serviu, aliás, para que as tendências reformistas do movimento operário – dos titoístas à seita pablista – alimentassem esperanças de uma forma pacífica, calma e reformista de realizar a revolução política contra a burocracia. Em oposição a eles, afirmamos que o XX Congresso mostrava que a pressão das massas foi tão poderosa que anunciou a proximidade de um enfrentamento total, como um todo, das massas contra a burocracia, que não poderia deixar de ser contrarrevolucionária. Os fatos [ele se refere à revolução húngara] também neste sentido, provaram que estávamos certos”[19].

Na verdade, as mudanças anunciadas logo se revelaram cosméticas. Não havia intenção de democratizar o aparelho stalinista. Porém, o estremecimento provocado pelo XX Congresso fez com que setores dos partidos comunistas do Leste Europeu, mas principalmente os povos desses países, concebessem seu resultado como o início de uma verdadeira abertura. As massas dos estados ocupados perceberam pelo menos uma brecha que poderia ser explorada. Mas quando se propuseram a ampliá-la, canalizando suas legítimas aspirações materiais e democráticas, a chamada “desestalinização” expôs toda a sua falsidade. A resposta foi a mesma de sempre: calúnia, perseguição, repressão impiedosa.

O primeiro exemplo disso foi Poznań (Polônia), o segundo antecedente imediato da revolução húngara. Entre 28 e 30 de junho de 1956, mais de 100.000 operários da fábrica de Cegielski entraram em greve por melhores condições de trabalho e de vida. O protesto foi reprimido pela ação de mais de 10.000 soldados e 400 tanques do exército polonês, comandados por oficiais russos. O saldo foi de mais de 70 mortos, cerca de 600 feridos e centenas de opositores presos. Embora a propaganda stalinista acusasse os manifestantes de serem “anticomunistas” ou “agentes provocadores contrarrevolucionários e imperialistas”, a realidade é que os grevistas cantavam A Internacional enquanto marchavam com faixas que diziam “Exigimos pão“. Poznań foi, por sua vez, o antecedente do chamado “Outubro polonês” do mesmo ano. Após a repressão em Poznań, ciente de que havia um despertar democrático e um influxo de autodeterminação nacional em curso, a ditadura do Partido Operário Unificado Polonês (PZPR, na sigla em polonês) concedeu um aumento de 50% nos salários, além de prometer mudanças políticas.

Greves em Poznań, Polônia, 1956

Mas o descontentamento popular não tinha sido reprimido. À morte de Stalin, no caso polonês deve ser adicionada a morte, ocorrida menos de um ano após do escandaloso XX Congresso do PCUS, do então secretário-geral do partido, Bolesław Bierut, conhecido como o “Stalin da Polônia”. Assim, a crise da “ala dura” do stalinismo polonês se agravou a tal ponto que o próprio aparelho reabilitou um líder “moderado”, Władysław Gomułka, para assumir o poder. Moscou ameaçou invadir o país. Novos protestos populares estouraram. Uma delegação soviética, liderada pelo próprio Khrushchev, foi à Polônia para evitar a ascensão de Gomułka. Mas ele tinha o apoio do exército polonês e gozava de credibilidade entre o povo. Após tensas negociações, o Kremlin cedeu às mudanças, após obter plena garantia de que Gomułka e seus apoiadores não representavam qualquer ameaça séria ao domínio russo, nem pretendiam romper com o Pacto de Varsóvia. O novo líder polonês havia vencido o cabo de guerra apoiando-se habilmente na raiva popular contra Moscou. Os burocratas poloneses ganhariam assim maior autonomia nos assuntos internos. Em 24 de outubro de 1956, no auge de sua popularidade, antes de uma manifestação massiva em Varsóvia, Gomułka pediu o fim das manifestações, repetiu promessas e, em resposta às aspirações nacionais, garantiu um “novo caminho do socialismo”, uma espécie do “comunismo nacional polonês”.

Moreno apresenta as razões que explicam o fato de a Polônia não ter sido invadida pela URSS em 1956: “Gomułka era uma garantia para Moscou e ao mesmo tempo contava com o apoio dos trabalhadores, por ter sido perseguido por Stalin; O Kremlin não se atreveu a enfrentar a Hungria e a Polónia simultaneamente e optou por reprimir militarmente o perigo húngaro, mais imediato (a influência da Igreja Católica no movimento de massas polaco funcionou como última salvaguarda contrarrevolucionária da própria burocracia) …”[20].

O processo polonês foi seguido de perto na Hungria, onde uma terrível ditadura stalinista também reinou. A classe operária não tinha participação nas decisões políticas ou econômicas, controlada pela direção do Partido dos Trabalhadores Húngaros (MDP, na sigla húngara), que, por sua vez, estava sob a tutela de Moscou. Nesse regime de partido único, sem direito para a classe trabalhadora de formar outros partidos ou sindicatos independentes dos oficiais, a polícia política, chamada Autoridade de Proteção do Estado (ÁVH, na sigla húngara), era quase onipotente.

A falta de liberdades democráticas foi combinada com uma opressão nacional hedionda, expressa, acima de tudo, em uma pilhagem terrível da riqueza nacional em favor da burocracia russa. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os vencedores impuseram à economia húngara o pagamento de 300 milhões de dólares no prazo de seis anos, como reparações de guerra para a URSS, Tchecoslováquia e Iugoslávia[21]. Assim, o Kremlin penalizou as massas húngaras porque sua burguesia havia sido aliada do nazismo. O Banco Nacional da Hungria estimou em 1946 que o custo dos reparos representou entre 19% e 22% da receita anual nacional. Em 1956, a hiperinflação, a escassez e o racionamento estavam se tornando intoleráveis. A paciência popular estava se esgotando.

As concessões arrancadas do Kremlin pelos poloneses encorajaram no povo húngaro a determinação de lutar por uma série de reivindicações democráticas, até então sufocadas pelo aparato repressivo local. Mesmo antes do discurso de Kruschev, havia sinais de dissidência intelectual dentro do próprio partido governante húngaro. O mais conhecido foi o Círculo Petofi, em homenagem ao poeta nacional Sandor Petofi, símbolo da revolução burguesa de 1848 contra a dinastia dos Habsburgos. Este grupo de intelectuais publicou desde 1955 uma série de artigos críticos.

A crise piora. Em 18 de julho de 1956, o Politburo soviético forçou Mátyás Rákosi a renunciar ao cargo de secretário-geral do partido. Rákosi, que se descreveu como “o melhor discípulo húngaro de Stalin”, ocupava o cargo desde 1948. Sua queda sinalizou a fraqueza do regime. Foi sucedido por Erno Gerö, apelidado de “sanguinário de Barcelona”, por sua eficiente participação na repressão ao POUM e no assassinato de Andrés Nin durante a Revolução Espanhola. A mudança também não acalmou os ânimos. Em alguns meses, seu governo seria atropelado por acontecimentos.

Em 22 de outubro, uma assembleia de milhares de universitários aprovou uma lista de dezesseis reivindicações políticas[22]. A primeira delas dizia: “Exigimos a retirada imediata de todas as tropas soviéticas de acordo com as disposições do Tratado de Paz”. O ponto dois exigia a eleição, por voto secreto, de uma nova direção para o partido comunista em todos os níveis. O ponto três exigia a constituição de um governo “sob a direção do camarada Imre Nagy”, o único dirigente do partido com credibilidade. Eles acrescentam: “Todos os líderes criminosos da era Stalin-Rákosi devem ser depostos imediatamente”. As demais reivindicações vão desde o direito à greve, liberdade de opinião, expressão, imprensa, rádio livre, salário mínimo para trabalhadores, etc. O movimento estudantil também anunciou sua adesão a uma marcha de solidariedade com “o movimento libertário polonês”, convocada para o dia seguinte. A declaração termina com um chamado: “Trabalhadores de fábrica estão convidados a se juntar à manifestação”[23].

Em 23 de outubro, mais de 200.000 pessoas marcharam em direção à sede do Parlamento. Alunos e trabalhadores gritaram: Fora os russos!, Rákosi, para o Danúbio!, ​​Imre Nagy, para o Governo! Todos os húngaros, com a gente! As ruas da capital foram inundadas com bandeiras nacionais nas cores vermelho, branco e verde, embora aparecesse com um buraco recortado no meio, onde antes estavam estampadas a estrela vermelha, o martelo e as duas pontas, símbolos do partido stalinista.

Erno Gerö emitiu uma proclamação condenando escritores e estudantes e chamando os manifestantes de uma multidão reacionária e chauvinista. Isso despertou a raiva da multidão, que derrubou uma estátua de Stalin com dez metros de altura. Uma parte marchou em direção à Rádio Budapeste, fortemente protegida por ÁVH. Quando uma delegação tentou entrar para transmitir suas reivindicações, a polícia política abriu fogo. Muitos morreram. Manifestantes enfurecidos incendiaram carros da polícia e invadiram depósitos de armas. Em vez de reprimir, os soldados húngaros solidarizaram-se com o povo. A revolução havia começado.

Manifestantes húngaros derrubam uma estátua de Stalin

Naquela mesma noite, tanques russos entraram em Budapeste. Houveram trocas de tiros por toda parte. Em 24 de outubro, os trabalhadores declararam greve geral. Mais unidades do exército húngaro passaram para o lado dos revolucionários. A rebelião dominou o país. Erno Gerö e o então primeiro-ministro, András Hegedüs, fugiram para a União Soviética. János Kádár assumiu como secretário-geral do partido e convocou Imre Nagy, um dirigente da ala “reformista” para primeiro-ministro. A primeira coisa que Nagy fez foi tentar desmobilizar o povo. Ele prometeu que negociaria a retirada das tropas soviéticas se a ordem fosse restaurada. Mas o povo estava em movimento. Surgiram os primeiros conselhos de operários e milícias. Apesar de sua superioridade militar, os soviéticos sofreram pesadas baixas. Os húngaros adotaram táticas de guerrilha urbana que desativaram dezenas de tanques russos.

Em 27 de outubro, foi formado um novo governo chefiado por Nagy, com o filósofo Georg Lukács como Ministro da Cultura e dois ministros não comunistas. O objetivo dos “reformadores” era apaziguar as massas, fazer o movimento retroceder e reconciliar-se com os russos. Após negociações com o Kremlin, Nagy anunciou a retirada imediata das tropas soviéticas de Budapeste e a dissolução do ÁVH. Em 30 de outubro, a maioria das unidades soviéticas haviam se retirado para seus quartéis fora da capital. Júbilo nas ruas. Parecia que os russos estavam definitivamente deixando a Hungria.

Tanque soviético inutilizado pelas massas húngaras, 1956

Mas, apesar da exortação de Nagy para retomar a calma, a realidade mostrou que a organização independente da classe estava se fortalecendo. Os conselhos de operários estavam se multiplicando. Em alguns municípios, eles assumiram tarefas típicas de um governo. Havia planos para eleger um Conselho Nacional. Uma revolução política estava em andamento tão avançada que havia criado embriões de duplo poder.

Neste ponto, o movimento parecia imparável. Pierre Broué recolhe o testemunho de Gyula Hajdu, um ativista comunista de 74 anos, que tornou pública a sua indignação com a burocracia: “Como os dirigentes comunistas poderiam saber o que está acontecendo? Nunca se misturam com os trabalhadores e as pessoas comuns, não aparecem nos grupos, porque todos têm carro, não se encontram no comércio ou no mercado, porque têm os seus armazéns especiais, não se encontram nos hospitais, eles têm hospitais para eles “[24].

A revolução antiburocrática, como suas predecessoras, também adquiriu o conteúdo de uma revolução de libertação nacional. Um processo revolucionário em que a luta contra a opressão nacional exercida pelos russos, que o povo húngaro justamente identificou no odioso regime stalinista baseado no Kremlin, foi um dos mais poderosos motores sociais. Não foi um processo “chauvinista”, como o stalinismo propagou, mas o grito de uma nação oprimida. Sem entender o problema da opressão nacional e o anseio popular de autodeterminação, é impossível entender as revoluções no Leste Europeu. Sobre esse caráter, Nahuel Moreno escreveu em 1957:

“O mesmo está acontecendo em todos os lugares: padrões de produção brutais e salários miseráveis, o confisco de safras dos camponeses e uma política autoritária para que eles entrem nos coletivos agrícolas. Essa dupla exploração sofrida pelos trabalhadores dos países dominados pela Rússia se reflete na estrutura política desses países: um regime totalitário, sem qualquer democracia, controlado por uma burocracia fabricada e dirigida a partir de Moscou. Daí o duplo caráter das revoluções húngara e polonesa, isto é, nacionais por um lado e operárias por outro. Por isso, no início, dado o caráter geral do movimento, o conjunto da nação contra o opressor estrangeiro, toda a população interveio na luta. Mas depois a classe operária fica como a única direção, que não só luta contra a exploração nacional, mas também contra a exploração da burocracia nativa.”[25].

O aparato stalinista afirmava estar enfrentando uma contrarrevolução ultranacionalista ou diretamente fascista que buscava restaurar o capitalismo e entregar o país à OTAN. Isso, como antecipamos, é completamente falso. Nenhuma das principais demandas dos estudantes, operários e do povo em geral jamais questionou a economia nacionalizada. A revolução buscou conquistar as liberdades democráticas, ou seja, democratizar o partido e o Estado; além do respeito pelo direito à autodeterminação nacional, começando com a expulsão das tropas de ocupação russas. Tanto é verdade que, para essa tarefa, a maioria confiou em Nagy e em um setor do próprio partido no poder.

Nos primeiros dias de novembro, Moscou estava discutindo como liquidar a revolução. Molotov propôs uma intervenção militar. O marechal Zhukov, a princípio, se opôs. Khrushchev teria conversado com Mao Zedong e Tito, ambos a favor do uso da força. Enquanto isso, a situação dos soviéticos se tornou mais precária. Durante o intervalo em que as tropas russas estavam fora da cidade, multidões invadiram a sede do partido no poder, queimaram bandeiras da URSS, lincharam membros da polícia política, não por “ódio ao comunismo”, mas por repulsa pelo stalinismo e seus agentes nativos.

Um elemento que pesou nas considerações soviéticas sobre a intervenção militar foi a possível atitude dos Estados Unidos. Mas, quando a Guerra de Suez estourou em 29 de outubro, a burocracia soviética entendeu que seus adversários tinham problemas mais urgentes do que o destino dos húngaros. Eisenhower, que também não queria conflitos bélicos com a URSS, deu a entender que a Hungria fazia parte da esfera de influência soviética.

O governo húngaro estava completamente superado. A figura do primeiro-ministro havia se desgastado tanto diante do povo quanto diante dos hierarcas russos. Em 1º de novembro, Nagy anunciou a neutralidade húngara e uma possível retirada do Pacto de Varsóvia. O Kremlin decidiu lançar uma segunda ofensiva, a última para esmagar a revolução.

Na noite de 3 de novembro começa a “Operação Redemoinho”, comandada pelo Marechal Iván Kónev. Os russos invadiram Budapeste de diferentes lugares, combinando ataques aéreos, artilharia e a ação conjunta de tanques e infantaria de 17 divisões. Mais de 30.000 soldados e 1.130 veículos blindados entraram atirando em tudo o que se movia. A resistência húngara concentrou-se nas áreas industriais, bombardeadas sem pausa pela artilharia soviética. Em 10 de novembro, a revolução foi esmagada. Mais de 2.500 húngaros morreram e cerca de 13.000 ficaram feridos. Os russos perderam mais de 700 soldados e centenas de tanques, fato que mostra a combatividade dos revolucionários.

Revolução húngara, 1956

Em 10 de novembro, um novo governo chefiado por János Kádár é instalado. Este personagem, completamente subserviente a Moscou, permaneceria no poder até 1988. A perseguição foi implacável. Uma orgia de vingança política foi desatada. Milhares foram capturados, enviados para os gulags siberianos. Outros foram executados sumariamente. O próprio Nagy foi baleado em 1958. Estima-se que 200.000 pessoas deixaram o país para escapar da repressão stalinista.

Mais uma vez, o aparato central do stalinismo conseguiu sufocar, por meio da repressão, uma tentativa de revolução política. Na Hungria, os conselhos operários foram o ponto mais avançado da revolução. Mas essas organizações não tinham centralização nem direção revolucionária que propusesse uma estratégia independente de todas as alas da burocracia – a confiança de um amplo setor na figura de Nagy, por exemplo, se mostrou fatal – que promoveu a centralização dos conselhos operários e visava a estratégia de tomada de poder para estabelecer um regime de democracia operária com base na economia não capitalista. Sem um partido revolucionário, o proletariado não poderia resolver a dualidade de poderes a seu favor. Os regimes stalinistas de Moscou e o de Budapeste, foram capazes de manobrar, enganar, desgastar e, assim, preparar o terreno para a ofensiva militar final do Exército Vermelho.

Moreno sempre enfatizou o essencial de uma política independente da burocracia como um todo. No texto que citamos, ele explica o caráter não revolucionário dos “reformadores” dos partidos comunistas do bloco soviético. A dinâmica do processo mostrou que setores favoráveis ​​a uma autêntica revolução política nunca saíram das entranhas da burocracia. No máximo, apareceram forças que, pressionadas pela ação das massas, se propuseram a reformular certas políticas, mas sempre no âmbito de regimes de partido único:

As revoluções húngara e polonesa – escreve Moreno – também demonstraram, por outro lado, que as forças fundamentais na atualidade são a revolução operária e [anti] colonial e a contrarrevolução imperialista. Os revolucionários húngaros apelaram à solidariedade do proletariado internacional, enquanto o poder oficial – Nagy e Gomułka – apelou ao apoio do imperialismo. Este último e a Igreja tendiam a apoiar esses governos contra – ou frente – às massas”[26].

A primavera de Praga: “Lenin, levanta-te! Brezhnev está louco! “

Entre os países do glacis, a Tchecoslováquia era um dos mais industrializados. Teve uma classe operária com uma longa tradição de luta. Em 1948, o Partido Comunista (PCCH) tomou o poder e estabeleceu um regime de partido único, subordinado a Moscou. Na década de 1950, o stalinismo se consolidou por meio de farsas judiciais, expurgos, prisões, tortura etc. Um clima sufocante de terror se impôs na sociedade. O rígido controle exercido pelo PCCH foi muito além da política e da economia. Imprensa, literatura, pintura, música, ciência … nada escapava à censura do regime.

No início da década de 1960, a economia começou a dar sinais de crise. Entre 1961 e 1963, o produto interno bruto passou de um crescimento de 7% para uma queda de 0,1%. A recessão foi a base material para uma aceleração da crise política. Em 1967, as primeiras perguntas sobre o stalinismo vieram de escritores e estudantes. Intelectuais da União dos Escritores da Tchecoslováquia, da Academia de Ciências e do Instituto de Ciências Econômicas deram início a um movimento crítico da política econômica e da censura imposta pelo partido no poder. O Literární Noviny, revista semanal com artigos de escritores comunistas publicados que, entre outras coisas, sugeriam que a literatura deveria ser independente da doutrina do partido. A censura dispensou os editores e estabeleceu que o controle da revista caberia ao Ministério da Cultura. Mas as reivindicações de liberdade de expressão, de imprensa, de criação artística e científica não paravam de crescer. A censura tornou-se insuportável. Os estudantes protestaram por uma educação melhor e mais liberdades. Eventuais protestos foram duramente reprimidos, mas a violência policial apenas alimentou o movimento pelas liberdades democráticas. Então veio a demanda por uma federação justa entre tchecos e eslovacos. Duas décadas de governo stalinista tornaram a subordinação do país à URSS odiosa, insuportável. Observe que, como nos casos anteriores, o problema nacional surgiu com grande força na preparação da revolução política da Tchecoslováquia. A reivindicação de livre organização sindical e partidária, por outro lado, questionava diretamente o monopólio político do PCCH.

O movimento democrático teve impacto na alta hierarquia do PCCH. Agravou a divisão entre os que admitiam a necessidade de certas reformas, no sentido de fazer concessões que dissipassem o descontentamento, e a “linha dura”, em favor de redobrar a repressão, sufocando a crise antes que ela se tornasse incontrolável. Assim, as primeiras fissuras aparecem no partido governante. A pressão do movimento fez com que Antonín Novotný, o secretário geral do PCCH desde 1953, fosse destituído do cargo em janeiro de 1968. O cargo foi passado para Alexander Dubček, um líder da “ala reformista” da burocracia. A princípio, essa mudança foi aprovada por Leonid Brezhnev, o líder supremo da URSS desde 1964.

O setor Dubček não queria nenhuma revolução política, pois isso significaria o suicídio. Por meio de certas concessões secundárias, buscava novas formas de diálogo com as massas fartas do totalitarismo russo. Sua intenção não era o fim do domínio político do PCCH, mas restaurar certo grau de credibilidade popular naquele partido, reciclar a imagem do governo para interromper o processo em andamento, não empurrá-lo até às últimas consequências. Enfim, era um setor disposto a entregar os anéis para não perder os dedos. Dubček proclamou essa política como “socialismo com rosto humano”.

Em fevereiro de 1968, ele declarou que a missão do partido era “construir uma sociedade socialista avançada com bases econômicas sólidas … um socialismo que corresponda às tradições democráticas históricas da Tchecoslováquia, de acordo com a experiência de outros partidos comunistas …”[27], embora enfatizando que a nova política visava “reforçar o papel dirigente do partido de forma mais eficaz “. Em 30 de março, Novotný entregou o cargo de presidente a Ludvík Svoboda, herói de guerra e referência da chamada ala da renovação, que também era bem visto entre tchecos e eslovacos. Em abril, o PCCH aprovou o slogan “socialismo com rosto humano”. Assim, o governo Dubček-Svoboda lançou um “Programa de Ação” com reformas democráticas e econômicas moderadas, mas que, no contexto do que existia, foi recebido com grande expectativa entre a população.

A censura foi abolida em 4 de março. Novos jornais apareceram. Houve um florescimento de diferentes expressões artísticas. Certos debates sobre questões espinhosas se tornaram públicos. A imprensa detalhou os crimes contra o país sob o governo de Stalin, a opressão nacional, criticou os privilégios do regime. O Programa de Ação contemplava uma abertura política controlada: voto secreto dos dirigentes, liberdade de imprensa, de reunião, de expressão, de movimento, ênfase econômica na produção de bens de consumo, além de admitir comércio direto com potências ocidentais e uma transição de dez anos para um regime multipartidário. O novo governo avançou para uma federação de duas repúblicas, a República Socialista Tcheca e a República Socialista Eslovaca. Na verdade, essa foi a única medida formal mantida após a invasão soviética.

O Programa de Ação escandalizou a “ala dura” do PCCH, que alertava para o perigo de admitir tantas liberdades, já que o movimento, ao se sentir vitorioso, poderia ultrapassar os limites das concessões. A sociedade, por sua vez, pressionava por uma aceleração das reformas. Questões políticas antes impensáveis ​​foram discutidas na televisão. Expurgos antigos foram revisados. Entre outros, a figura de Slánský foi completamente reabilitada em maio de 1968. O Sindicato dos Escritores nomeou uma comissão, liderada pelo poeta Jaroslav Seifert, dedicada a investigar a perseguição de escritores desde 1948. Não demorou muito para que publicações fora do partido surgissem, como o jornal sindical Prace. Surgiram novos clubes políticos, culturais e artísticos. Os alarmados “conservadores” exigiram o restabelecimento da censura. A ala Dubček insistiu em uma política moderada. Em maio, anunciou que o XIV Congresso do PCCH se reuniria no dia 9 de setembro. O conclave incorporaria o Programa de Ação aos estatutos do partido, redigiria uma lei de federalização e elegeria um novo Comitê Central.

As reformas foram além do que Brezhnev podia tolerar. Moscou pediu explicações a Dubček. Já no dia 23 de março, em reunião em Dresden, representantes da URSS, Hungria, Polônia, Bulgária e Alemanha Oriental criticaram duramente a delegação da Tchecoslováquia. Qualquer alusão a uma “democratização”, para os dirigentes do Pacto de Varsóvia, na prática punha em questão o modelo soviético. Gomułka e János Kádár, líderes da Polônia e da Hungria, estavam particularmente preocupados que a liberdade de imprensa levasse a um evento semelhante à “contrarrevolução húngara”.

Entre 29 de julho e 1º de agosto, houve um novo encontro. Brezhnev esteve presente. Do outro lado da mesa estavam Dubček e Svodoba. Os tchecoslovacos defenderam as reformas em andamento, mas reafirmaram sua lealdade a Moscou, sua adesão ao Pacto de Varsóvia e ao Comecon[28]. Eles se comprometeram a conter as tendências “antissocialistas”, impedir o renascimento do Partido Socialdemocrata da Tchecoslováquia e aumentar o controle da imprensa. Brezhnev, por sua vez, aceitou um acordo. Moscou prometeu retirar suas tropas da Tchecoslováquia, embora as mantivesse ao longo da fronteira, e permitir o Congresso do PCCH anunciado para 9 de setembro.

Mas o clima ainda estava agitado. Em março, os estudantes publicaram uma “Carta Aberta aos Operários”, cansados ​​de serem acusados ​​de “restauradores do capitalismo”. Denunciaram que a campanha de difamação pretendia separá-los da classe operária. Imediatamente os primeiros contatos entre estudantes e operários foram feitos nas fábricas, elevando na prática a unidade operária-estudantil do movimento democrático.

No final de junho, surge o manifesto “Duas Mil Palavras”, uma “proclamação aos operários, aos camponeses, aos profissionais, aos artistas, aos cientistas, aos técnicos, a todos.”[29], escrito pelo renomado jornalista e escritor Ludvik Vaculik. Em essência, ele exigia a Dubček que acelerasse o processo de reforma que havia prometido. O texto foi assinado por mais de cem mil pessoas, entre elas importantes personalidades da política e da cultura local. As “Duas Mil Palavras” criticaram severamente o partido e o regime. Citaremos algumas partes interessantes. Primeiro, seu resumo da burocratização do partido comunista e do Estado:

“Esperançosamente, a maioria da nação aceitou o programa de socialismo. A sua direção, no entanto, caiu nas mãos de homens inadequados […] O partido comunista, que depois da guerra gozava de grande confiança entre o povo, gradualmente foi mudando para a defesa dos seus cargos, até que todos foram ocupados, de forma que nada mais  sobrou[…] A linha errada da direção fez com que o partido mudasse, de um partido político e uma comunidade unida pela mesma ideologia, para uma organização de poder que era muito atraente para gananciosos egoístas, covardes petulantes e homens de consciência turva cuja renda influenciou no caráter e comportamento do partido […] Muitos comunistas lutaram contra a degeneração, mas não puderam evitar o que aconteceu”.

Então, com justiça, o documento rejeita a ideia de que as ações do PCCH foram uma expressão genuína da classe operária:

“O aparato decidia quem e o que deveria ser feito ou não, dirigia as cooperativas no lugar dos cooperativistas, as fábricas em vez dos operários […] Nenhuma organização, de fato, pertencia aos seus membros, nem mesmo a comunista. O principal erro, o maior engano desses governantes, foi que eles apresentaram sua vontade como a vontade da classe operária […Mas] ninguém razoável, é óbvio, pode acreditar nessa culpabilidade dos operários. Todos nós sabemos, e principalmente os operários sabem disso, que praticamente nada decidiam: eram outros que decidiam quem deveria ser eleito funcionário operário. Embora os operários acreditassem que governavam, um estrato muito particular de funcionários do partido e do estado governava em seu nome.”.

Também propunha uma participação política ativa e independente. Um chamado em defesa da democracia operária exigia mais auto-organização e controle operário:

“Peçamos […] que os diretores e presidentes nos expliquem o que e a que custo querem produzir, para quem e por quanto vender, quanto poderão ganhar desta forma, quanto da receita será usada para modernizar a produção e quanto será possível distribuir […] Os operários, como empreendedores, podem intervir selecionando os homens mais adequados nas administrações empresariais e conselhos de fábrica. Como dependentes, podem defender melhor seus direitos elegendo seus dirigentes naturais, pessoas capazes e leais, nos organismos sindicais, sem levar em conta a carteirinha do partido.”.

As “Duas Mil Palavras”, é claro, tinham limitações. Não propunha derrubar o PCCH, mas reformá-lo. Para seus autores, era preciso continuar acreditando na possibilidade de uma regeneração interna do partido e, consequentemente, do regime. Nesse sentido, acabou expressando apoio ao governo e à ala de Dubček na disputa fracional dentro do partido, que se intensificou com a proximidade do Congresso.:

“O Partido Comunista da Checoslováquia prepara o congresso que elegerá o novo Comitê Central. Exigimos que seja melhor que o atual. Se hoje o partido comunista afirma que no futuro pretende basear a sua liderança na confiança dos cidadãos e não na violência, acreditemos, na medida em que podemos acreditar nas pessoas que enviam agora como delegados aos congressos distritais e regionais”.

O manifesto, embora progressista, era um produto óbvio da ausência de uma direção revolucionária.

Mesmo assim, a reivindicação enfureceu Brezhnev em Moscou. Ele tachou o documento como um “ato contrarrevolucionário”. Na Tchecoslováquia, Dubček, o Presidium do partido e o gabinete também denunciaram o manifesto, mostrando instantaneamente os limites de suas intenções de “reforma”.

Em meio a esse clima de instabilidade, o Kremlin retirou seu apoio a Dubček. A burocracia stalinista decidiu apelar, mais uma vez, à força. Na noite de 20 a 21 de agosto, uma força combinada de quatro países do Pacto de Varsóvia – União Soviética, Bulgária, Polônia e Hungria – invadiu a Tchecoslováquia.[30]. Em poucas horas, mais de 250.000 soldados e 3.000 tanques ocuparam a capital.

Esmagamento da Primavera de Praga, 1968

A resistência nas ruas foi espontânea. Milhares saíram para protestar. Alguns estavam tentando dialogar com os tanquistas russos. Em outros lugares, os moradores mudaram as placas das rotas para enganar os invasores. Eles pintaram tanques soviéticos com a suástica, aludindo à invasão nazista de 1938. Nos muros apareciam pichações como

“O Circo Soviético está de volta a Praga”, ou “Lênin, levanta-te. Brezhnev está louco!”. Mas a cidade foi tomada. O Congresso do partido foi realizado na clandestinidade, em uma fábrica na periferia da capital, protegida por milícias operárias. Mais de 1.100 delegados repudiaram a ocupação soviética.

Em 20 de agosto, Dubček, Svoboda e outros membros do governo foram presos e levados para Moscou. Sob forte pressão, eles capitularam um após o outro. Assinaram o Protocolo de Moscou, que justificava a intervenção armada, restabelecia a censura, denunciava o XIV Congresso do Partido e suas resoluções, reafirmava a lealdade ao Bloco de Leste, entre outros pontos. A Primavera de Praga terminou sob os rastros dos tanques russos.

Moscou manteve Dubček em seu posto por alguns meses, embora ele já fosse um cadáver político. Em abril de 1969, Dubček perdeu o cargo de secretário-geral para Gustáv Husák, que governaria o país até 1989. O período de “normalização” havia começado, revertendo todas as reformas democráticas. Depois de alguns meses como embaixador na Turquia, Dubček acabou como funcionário de um parque florestal. A “normalização” foi imposta cruelmente. As prisões estavam cheias. Entre 1969 e 1971, mais de 500.000 membros foram expulsos do PCCH. O terror stalinista foi totalmente restabelecido.

Tanques soviéticos em Praga, 1968

Na época, o aparato de propaganda do stalinismo acusava as massas tchecoslovacas de promover a “restauração do capitalismo”. Este foi o principal argumento para justificar a invasão do Pacto de Varsóvia e a perseguição brutal que se seguiu. Os nostálgicos do stalinismo, mais de meio século depois, repetem a mesma história. Mas uma análise rigorosa dos fatos não autoriza tal conclusão. O povo tchecoslovaco não lutou por uma restauração burguesa. Em nenhum momento, usando a formulação de Trotsky, foi proposto “mudar os fundamentos econômicos da sociedade”. Nem na Tchecoslováquia ou em qualquer lugar onde um processo de revolução política começou. As massas, no contexto de uma repressão implacável e à sua maneira, lutaram pela regeneração dos partidos comunistas e dos Estados operários; aspiravam a uma democracia operária.

O esmagamento da chamada Primavera de Praga foi, como nos casos anteriores, um sucesso militar com enorme custo político. A invasão exacerbou a crise em muitos partidos comunistas. A brutalidade do stalinismo mais uma vez manchou a imagem do socialismo perante o mundo. As cenas de tanques soviéticos reprimindo civis desarmados forneceram munição preciosa para a propaganda imperialista. Foi a burocracia stalinista, não as massas tchecoslovacas, que tornou as coisas mais fáceis para o movimento anticomunista. Como disse Pierre Broué: “Certamente a burguesia não pode deixar de se alegrar quando, para milhões de homens, a imagem do comunismo tem a face repulsiva do stalinismo, ditadura burocrática, força bruta e repressão policial contra a juventude e os trabalhadores.”[31].

Solidarność, a revolução política polonesa de 1980

Em meados de agosto de 1980, uma onda de greves de trabalhadores abalou a República Popular da Polônia. A faísca foi o anúncio de uma forte alta nos preços dos alimentos. Começou uma das revoluções políticas mais impressionantes, talvez aquela de maior destaque do movimento operário organizado. Após o chamado “degelo polonês” de 1956, ocorreram grandes lutas operárias, todas violentamente reprimidas: as greves de 1970 e 1976, além de um forte movimento de intelectuais e estudantes em 1968. Esse último processo desencadeou um repugnante expurgo antissemita, impulsionado pelo regime: mais de 20.000 judeus sobreviventes do Holocausto foram expulsos do país.

A greve de 1970 ocorreu entre 14 e 19 de dezembro. A repressão estatal matou pelo menos 44 operários e feriu mais de mil. Gomułka foi substituído por Edward Gierek. Este é um ponto de viragem na política polonesa do pós-guerra e na dinâmica futura do movimento operário. Em 1976, a ditadura do PZPR ordenou um aumento de 69% no preço da carne e 100% no do açúcar. O racionamento de produtos básicos se intensificou. Uma onda de greves abalou o país. Na cidade de Radom, manifestantes furiosos invadiram a sede da PZPR. A solidariedade com os trabalhadores por parte da intelectualidade deu origem ao Comitê de Defesa dos Trabalhadores (KOR, por sua sigla em polonês), uma plataforma de oposição democrática, em certa medida o antecessor do processo de 1980. A greve foi duramente reprimida, embora tenha acabado cancelando o aumento de preço.

Seguindo a política do imperialismo, o polonês Karol Wojtyła foi eleito Papa em 1978 e, no ano seguinte, visitou seu país. Durante uma missa em Varsóvia, João Paulo II pronunciou sua famosa frase “não tenham medo”, encorajando a oposição ao regime do Partido Operário Unificado da Polônia e, é claro, nomeando a Igreja Católica – a única instituição legal e independente do regime, com muitos fiéis na Polônia – como uma alternativa de direção política.

No início da década de 1980, a economia polonesa estava em crise total. A produção industrial e agrícola despencou. A Polônia tinha a maior dívida do mundo. Em 1979, a dívida externa era de 21 bilhões de dólares. Em 1982, o país devia 28,5 bilhões de dólares a quinhentos bancos e quinze governos ocidentais. Moscou contribuiu com mais de 10 bilhões de dólares para Varsóvia para pagar juros, mas foi incapaz de manter esse fluxo.[32]. O imperialismo drenava os recursos do bloco soviético. Neal Ascherson, jornalista especializado na Europa Oriental, descreveu o círculo vicioso da seguinte forma: “As importações de tecnologia avançada, por meio de empréstimos em moeda forte, devem continuar pelo motivo essencial de que são necessárias para a produção de bens exportáveis, única forma de obter as divisas necessárias para pagar dívidas anteriores.”[33]. Desde 1976, a dívida externa representava 40% do valor das exportações para o Ocidente. O regime se endividou basicamente para importar tecnologia ocidental – na expectativa de modernizar sua indústria e poder exportar produtos competitivos – mas, como a balança comercial era desfavorável[34], as contas nunca fechavam e a saída da burocracia era pedir mais empréstimos[35]. Era o ciclo da dívida típico de qualquer país semicolonial.

A gestão burocrática da economia, para piorar as coisas, dificultava a absorção de tecnologia importada. Em 1980 estimava-se que o valor dos equipamentos não instalados ultrapassam os 6 bilhões de dólares. Em 1979, a economia registrava queda de 2,3%. O serviço da dívida comprometeu 92% das exportações para os países capitalistas. Em 1986, a dívida polonesa com os países capitalistas ascendia a 31,3 bilhões de dólares, montante duas vezes e meia superior ao total das exportações anuais.[36]. Nesse mesmo ano, a Polónia entrou ao FMI e ao Banco Mundial. A Iugoslávia, a Romênia e a Hungria já haviam feito o mesmo antes.

Na última década, o imperialismo, dominante na economia mundial, havia penetrado firmemente na economia dos antigos estados operários. A política de submissão ao imperialismo, especialmente as exigências de pagamento da dívida externa, não permitia direcionar parte da produção que era exportada para o mercado interno, medida que poderia ter atenuado em parte a detestável escassez. A sabotagem da burocracia à economia socializada, por outro lado, adquiriu uma dimensão alarmante. Naqueles anos, na Polónia, cerca de 80% das terras aráveis ​​já estavam em mãos privadas. Este é o pano de fundo das greves de 1980.

Em 14 de agosto daquele ano, a greve começou no estaleiro “Lênin” em Gdansk, símbolo da repressão aos stalinistas poloneses em dezembro de 1970. Este processo perturba irreversivelmente a situação. A greve das ferrovias em Lublin, um entroncamento ferroviário estratégico na rota para a URSS, enfureceu Brezhnev. Diante da força do movimento grevista, o então ministro da Defesa Wojciech Jaruzelski não aconselhava o uso do exército. No final de agosto, mais de 700.000 trabalhadores entraram em greve em 700 locais de trabalho em todo o país. Comitês de greve surgiram em mais de 200 empresas.

Huelga en los Astilleros Lenin, 1980

O principal líder da greve do estaleiro de Gdansk foi o eletricista Lech Wałesa. Ele trabalhava lá desde 1967 e foi demitido em 1976. Ele formou o comitê de greve em 1970. Foi preso várias vezes por defender o sindicalismo livre. A outra líder importante foi Anna Walentynowicz, uma popular operadora de guindaste cuja demissão precipitou a greve. Os operários exigiram a reintegração de ambos, sem represálias.

Em 16 de agosto, um Comitê de Greve interempresarial (MKS, em sua sigla em polonês) é formado com delegados de outros comitês de greve que chegaram ao estaleiro em Gdansk.

Em 17 de agosto, o MKS fez uma lista de vinte e uma reivindicações. As especificações não se limitavam a demandas econômicas, mas, fundamentalmente, exigiam direitos políticos: a legalização dos sindicatos independentes, a liberdade de expressão, o direito à greve, etc. Os operários despedidos deveriam ser reintegrados. Os alunos expulsos das universidades por suas ideias devem ser readmitidos. Os grevistas também exigiram a libertação de todos os presos políticos, a abolição dos privilégios da polícia e do aparelho de Estado. Em suma, os sindicatos livres deveriam ter peso nas decisões políticas que afetaram seu dia a dia:“… Intervir nas decisões (…) que se relacionavam a: os princípios de distribuição da renda nacional entre o consumo e a acumulação, a distribuição do fundo de consumo social entre os diversos objetivos (saúde, educação, cultura), os princípios básicos das remunerações e a orientação da política salarial, nomeadamente no que se refere ao princípio do aumento automático dos salários em função da inflação, o plano económico de longo prazo, a orientação da política de investimento e a modificação dos preços”[37].

Demonstrando irreverência, as 21 reivindicações foram escritas em uma grande prancha de madeira que mais tarde foi pendurada na porta do estaleiro, símbolo da luta em escala nacional.

A greve, cercada de apoio popular, obrigou as autoridades a pedirem uma negociação. Assim, em 31 de agosto de 1980, Lech Wałesa, que havia se tornado o principal líder da greve, sentou-se à mesa junto com Mieczyslaw Jagielski, o vice-primeiro-ministro polonês, para assinar os acordos de Gdansk. O evento foi transmitido ao vivo pela televisão em toda a Polônia.

Este foi um mau negócio para a burocracia. A concessão mais importante foi a autorização para fundar um sindicato independente do controle do partido comunista. Os presos políticos também seriam libertados. As demandas econômicas deveriam ser atendidas gradativamente. Wałesa, por sua vez, concordou que o novo sindicato respeitasse a Constituição da República Popular da Polônia e reconhecesse a liderança do partido no poder. A figura de Wałesa cresceu. Em poucas semanas, o eletricista desconhecido se tornou um ator político nacional que a burocracia não podia ignorar. Para se ter uma ideia da magnitude da crise, em setembro de 1980 Edward Gierek perdeu a liderança do partido para Stanisław Kania. O movimento operário colocou a burocracia nas cordas.

Em 17 de setembro, foi realizado o congresso de fundação do sindicato Solidariedade. No seu apogeu, a organização contava com mais de 10 milhões de membros (aproximadamente 80% da força de trabalho total na Polônia), em um país com 35 milhões de habitantes. Nos primeiros 500 dias que se seguiram ao acordo de Gdansk, o Solidariedade acolheu setores do movimento estudantil, de agricultores e artesãos. Não foi apenas o primeiro sindicato independente nos Estados Ocupados, mas de longe o maior do mundo. Seu principal órgão de tomada de decisão foi a Convenção de delegados que representou 38 regiões e dois distritos. Foi aprovado um programa de reformas políticas e sociais. No programa estava escrito: “A história ensinou-nos que não há pão sem liberdade”. Lech Wałęsa foi eleito para a Comissão Nacional, o órgão executivo. Em novembro, um tribunal de Varsóvia legalizou o movimento Solidariedade. Em setembro de 1981, o primeiro Congresso do Solidariedade elegeu Wałęsa como presidente.

Solidariedade se transformou em um movimento com presença nacional. Como consequência de que  27 membros do Solidariedade de Bydgoszcz foram espancados em 19 de março, o movimento respondeu com uma greve de quatro horas, envolvendo meio milhão de pessoas, e paralisou o país em 27 de março.[38]. O governo teve que abrir uma investigação sobre os espancamentos. Greves estouraram por todos os lados durante meses. A classe operária estava no auge.

A contradição deste enorme processo de reorganização operária foi a sua liderança política, a começar pelo próprio Wałęsa, agente da Igreja Católica, instituição que esteve plenamente empenhada na construção do Solidariedade. O bispo Henryk Jankowski, por exemplo, ficou lado a lado com Wałęsa, que logo se tornou uma celebridade no mundo capitalista. Em 15 de janeiro de 1981, uma delegação do sindicato Solidariedade, liderada por Wałęsa, se encontrou com o Papa João Paulo II em Roma. O apoio dos governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher à sua figura foi explícito. Em 1982, a revista Time declarou Wałęsa o “homem do ano”. Um ano depois, Wałęsa recebeu o Prêmio Nobel da Paz. O sindicalista polonês dedicou o prêmio à Virgem Maria Negra, na cidade de Częstochowa, um dos mais importantes locais de peregrinação católica. O perfil político do Solidariedade combinava, além do cunho católico, elementos do nacionalismo polonês e do liberalismo ocidental. Também pregou o preceito da não violência aos seus membros

Mas o Solidariedade não era apenas um sindicato. Foi a direção indiscutível da classe operária, a expressão genuína do ascenso revolucionário que, apesar de sua direção conciliadora e pró-imperialista, colocou o regime stalinista em xeque dentro e fora da Polônia.

Segundo Moreno, o Solidariedade tinha três características fundamentais: […] formalmente é um sindicato; é a única organização democrática que reúne a totalidade das massas revolucionárias; e ao mesmo tempo é indiretamente liderado por um grande aparato contrarrevolucionário, a Igreja”[39].

Em 1981, de acordo com o fundador do LIT-QI, havia um duplo poder na Polônia:

“Em primeiro lugar, que o poder dual é institucional e centralizado (o que representa um grande passo histórico) entre o governo do partido único, da burocracia e o Solidariedade. Existem dois poderes na Polónia: um em crise, quase em ruínas, que é o governo; a outra é a das massas trabalhadoras, que se expressa no Solidariedade. Entre os dois surge uma instituição que sustenta o poder vacilante da burocracia: é a Igreja, com Walesa na direção do Solidariedade ”[40].

Diante dessa realidade, o trotskista argentino propôs qual deveria ser o eixo de um programa revolucionário:

“A chave para a política trotskista em um processo revolucionário como o polonês é mostrar abertamente à classe operária, aos camponeses, aos estudantes, aos trabalhadores urbanos que nenhum problema tem solução fora de uma revolução popular e operária que derrube a burocracia governante. Esse é o problema decisivo, ao qual nossas táticas estão subordinadas. Embora não levantemos as consignas ‘abaixo o governo agora’ ou ‘vamos fazer a insurreição agora’, devemos apontar com absoluta nitidez ao proletariado e às massas que é necessário dar passos concretos em sua política, direção , organização e preparação para levar a cabo uma insurreição contra o aparato militar da burocracia. Consequentemente, o trotskismo deve apontar minuto a minuto, em sua agitação e propaganda, que o ponto nodal e decisivo do processo revolucionário é o poder do Estado. E a resolução deste problema passa pela preparação política e organizacional do movimento operário e das massas para enfrentar e derrotar as forças armadas da burocracia ”[41].

O crescimento do Solidariedade –que parecia imparável–, aliado a uma imensa crise econômica – agravada por uma gigantesca dívida externa com o imperialismo – e a constante pressão de Moscou para restaurar a ordem, fizeram com que o regime, embora aturdido, definisse o endurecimento da política de supressão do Solidariedade. Para fazer isso, em outubro de 1981, o primeiro secretário Kania foi substituído pelo general Jaruzelski, então primeiro-ministro (e ministro da Defesa), um verdadeiro cão de caça dos soviéticos.

Em 13 de dezembro de 1981, Jaruzelski decretou a lei marcial, um verdadeiro golpe reacionário. Patrulhas militares apareceram em todos os lugares. Cerca de 1.750 tanques e 1.400 veículos blindados foram às ruas. Wałęsa e os principais líderes do Solidariedade, reunidos em Gdansk, foram presos. Estima-se que mais de 10.000 militantes do Solidariedade foram encarcerados em 52 prisões, metade deles no meio da noite do golpe. Houve mais de cem greves e ocupações de fábricas e minas, mas todas foram derrotadas. Em 16 de dezembro de 1981, a polícia matou nove mineiros e feriu 22 outros durante a repressão da greve na mina Wujek em Katowice. O Solidariedade foi para a clandestinidade. No dia seguinte, em um protesto em Gdansk, a polícia matou outro operário e feriu dois. Em 14 de dezembro, a greve começou na mina de carvão Piast, na Alta Silésia: cerca de 2.000 mineiros resistiram por 14 dias a mais de 650 metros no subsolo. Mas o golpe foi consolidado. Foi criado um Conselho Militar de Salvação Nacional que controlou o país até 1983. Durante esse período, reinou o estado de sítio. Foram proibidas reuniões, greves e todo tipo de protestos. A censura se intensificou. Abrigado no clima de terror, o regime aplicou uma série de terríveis ataques ao padrão de vida. Em 1º de fevereiro de 1982, o aumento de preços atingiu 257% em média, mas alguns produtos subiram até 400%. Em 8 de outubro de 1982, o sindicato Solidariedade foi formalmente declarado ilegal.

O golpe não foi obra exclusiva de Jaruzelski. Mais tarde, descobriu-se que Moscou estava pressionando pelo fim do Solidariedade sob a ameaça de invadir o país ou orquestrar um golpe no palácio contra o próprio Jaruzelski. Na verdade, 20 divisões de tanques russos estavam estacionadas na fronteira. Moreno escreveu:

O golpe não foi obra exclusiva de Jaruzelski. Mais tarde, descobriu-se que Moscou estava pressionando pelo fim do Solidariedade sob a ameaça de invadir o país ou orquestrar um golpe no palácio contra o próprio Jaruzelski. Na verdade, 20 divisões de tanques russos estavam estacionadas na fronteira.”[42].

No entanto, o sindicato se reorganizou e continuou operando clandestinamente, convocando greves em minas, estaleiros e no setor de transportes entre 1981 e 1988. Por meio de uma estrutura ilegal e de meios de comunicação como a rádio Solidariedade, os ativistas conseguiram obter informações e organizar a resistência . No início de 1983, a organização tinha mais de 70.000 membros e, entre outras atividades, publicou mais de 500 jornais clandestinos chamados bibuła. Em 14 de novembro de 1982, Lech Wałęsa foi libertado.

Em 22 de julho de 1983, a lei marcial foi suspensa. Muitos membros presos do Solidariedade foram libertados e a anistia concedida. O regime foi derrotado.

Na segunda metade da década de 1980, a economia polonesa – e todo o bloco soviético – estava em péssimas condições. As greves de 1988 na Polônia mostraram aos burocratas locais que, sem uma solução para o problema do Solidariedade, a possibilidade de uma explosão social era real. Ao mesmo tempo, o aparato estatal foi atravessado por sérias disputas entre camarilhas. Na URSS, a Perestroika e a Glasnost estavam em andamento, no âmbito da decisão do PCUS de restaurar o capitalismo. Nesse contexto, o regime negocia com o Solidariedade uma transição para a democracia liberal.

Em fevereiro de 1989, começaram as negociações da chamada Mesa Redonda. Em abril foi decidido, entre outras coisas, devolver a legalidade ao Solidariedade – que logo obteve um milhão e meio de membros -, a criação da segunda câmara do parlamento e do cargo de presidente da República da Polônia. Também foi acordado convocar eleições gerais livres, nas quais seriam eleitos 100 cadeiras no Senado e 35% das cadeiras na Dieta, a câmara baixa do parlamento. Nessas eleições, realizadas em 4 de junho de 1989, os candidatos apoiados pelo Solidariedade conquistaram 99 das 100 cadeiras do Senado e todas as cadeiras disputadas para a Câmara dos Deputados. Em 12 de setembro de 1989, a nova Dieta elegeu Tadeusz Mazowiecki como chefe do primeiro governo não comunista da Polônia após a Segunda Guerra Mundial. Isso gerou um efeito dominó em todo o bloco oriental. Nesse mesmo ano, o muro de Berlim caiu e as primeiras repúblicas soviéticas ou sua esfera de influência declararam sua independência em relação a Moscou. Na Polônia, o próprio Jaruzelski liderou as negociações para a transição “pacífica” para um regime democrático liberal. O PZPR havia perdido todo prestígio. No final de agosto de 1989, por meio do jogo parlamentar, surgiu um governo de coalizão liderado pelo Solidariedade.

Em 9 de dezembro de 1990, Wałęsa triunfou nas eleições presidenciais e tornou-se presidente da Polônia pelos próximos cinco anos. Em 17 de setembro de 1993, o presidente Wałęsa selou o acordo que ordenava a retirada dos soldados russos da Polônia, acampados lá desde 1945.

O gigantesco movimento operário polonês de 1976-1989, embora heroico, não conseguiu consumar uma revolução política, em parte devido à dura repressão do regime, mas fundamentalmente devido à traição da direção contrarrevolucionária, agente do imperialismo e da Igreja Católica, corporificado na figura de Wałęsa. Ou seja, as condições objetivas estavam mais do que maduras, o que faltava era o sujeito político revolucionário. De acordo com Moreno:

“O fator que impediu esse triunfo e permitiu a vitória momentânea da burocracia [em 1981] foi a crise da direção revolucionária do proletariado, na ausência da única organização capaz de superá-la: o partido trotskista. Essa questão vital também separa as três grandes correntes que se dizem trotskistas. O SU, principalmente o SWP dos Estados Unidos, capitulou diretamente à liderança de Wałęsa. Eles a ponderaram em todos os momentos, nunca denunciaram seu caráter conscientemente contrarrevolucionário e se limitaram a apontar sua imaturidade. Era, para eles, uma liderança revolucionária imatura. O lambertismo, nos acompanhando, denunciou Wałęsa em algumas ocasiões, principalmente por seus laços com a Igreja. Mas, com sua concepção de que o Solidariedade era apenas um sindicato e não a organização das massas revolucionárias, não deu a essa denúncia a importância fundamental que ela tinha. Por essas duas vias, o lambertismo e o SU chegaram à mesma política: colocar em abstrato o problema da direção revolucionária e do poder, o pior crime que pode ser cometido durante uma revolução. A denúncia das lideranças contrarrevolucionárias é apenas um aspecto da política para superar a crise de direção; a outra, vital, é a construção do partido revolucionário com influência de massas”[43].

Considerações finais

Todos os processos de revolução política nos antigos estados operários foram derrotados. Este fato prolongou a existência da burocracia stalinista dominante e, infelizmente, acabou abrindo o caminho para a restauração burguesa. No caso da ex-URSS, como já argumentamos, esse processo teve início em 1986.

A explicação para a derrota envolve muitos elementos, mas foi basicamente devido a uma combinação da repressão brutal do aparato stalinista, o surgimento de direções – opositoras, mas igualmente contrarrevolucionárias – que fizeram de tudo para liquidar os processos de revolução política (Gomułka, Nagy, Dubček, Wałęsa) e, o mais importante, a ausência de uma direção revolucionária. Esse partido revolucionário, suficientemente enraizado na classe operária e nos povos da Europa de Leste, que propusesse a derrubada das burocracias sem tocar nas bases socioeconômicas desses Estados, nas condições do século XX, só poderia ter sido um partido trotskista de princípios. Mas tal coisa não existia na ex-URSS ou em seus estados satélites, ou na China, Cuba, Vietnã ou qualquer outro lugar onde a burguesia tivesse sido expropriada.

O balanço histórico do stalinismo é a restauração do capitalismo nos ex Estados operários

Seguindo uma esquematização de Nahuel Moreno, a realidade mostrou que as revoluções políticas não avançaram do primeiro momento, que ele chamou de “revolução de fevereiro”, caracterizada por “um movimento operário e popular pela conquista da democracia em geral, unindo todos os setores descontentes. Será um movimento operário e popular pela democracia: todos unidos contra o governo bonapartista e totalitário da burocracia. Por isso, surgirão correntes pequeno-burguesas que terão pouca nitidez sobre se compete ou não a colaborar com o imperialismo em sua ânsia de derrubar a burocracia totalitária. O que caracterizará esta primeira revolução antiburocrática de fevereiro é que ela não terá um partido trotskista à sua frente, pois não terá tido tempo de amadurecer e se formar.”[44]. A restauração ocorreu muito antes que o partido trotskista pudesse surgir e amadurecer.

Nesse sentido, é interessante ler o balanço de Nahuel Moreno sobre as revoluções políticas na Polônia e na Hungria:

“A razão fundamental pela qual o poder dos operários não prevaleceu na Polônia e na Hungria foi a falta de um partido revolucionário. A falta de uma direção revolucionária privou o movimento de centralização, homogeneidade e objetivos precisos. Nesses países, a revolução política estava colocada, a luta não apenas contra a opressão soviética, mas também contra a burocracia nacional [referindo-se à expectativa popular em Gomułka e Nagy]”[45].

Não menos importante foi a conclusão de que a realidade desses processos mostrava que os partidos stalinistas não podiam ser “reformados”, nem possuíam um “caráter duplo”, nem podiam ser “empurrados” para uma linha revolucionária, como propunha o pablismo-mandelismo. desde o início da década de 1950:

Nem os partidos comunistas, nem suas organizações de juventude – afirma Moreno – puderam ser ‘remendados’ ou transformados. Qualquer avanço revolucionário teve que ser feito apesar deles, com destacamentos e rupturas em busca de outros canais. Tanto na Hungria quanto na Polônia [a partir de 1956], o partido revolucionário inclinou a surgir como uma possibilidade independente, como um novo agrupamento e não como a continuação dos partidos comunistas como um todo.”[46].

O prognóstico de Trotsky, embora negativo, foi confirmado pela história. A burocracia não foi derrubada – ainda que não por falta de combatividade operária e popular – e a restauração capitalista se concretizou. A nova classe burguesa, intimamente ligada ao imperialismo, surgiu das entranhas da casta burocrática anterior e consolidou-se através da pilhagem do Estado. No entanto, alguns anos após a restauração, grandes mobilizações populares conseguiram derrotar os regimes stalinistas, totalitários e de partido único, tanto na Europa Oriental quanto na ex-União Soviética. O povo soviético e os povos da Europa Oriental conquistaram liberdades democráticas importantes nesses países, vingaram-se dessas ditaduras sinistras, mas não conseguiram impedir a restauração.

Por isso, em nossos dias, em todos esses países voltou a ser necessária uma revolução socialista, porque a classe operária terá que tomar o poder político e os meios de produção, agora nas mãos da burguesia surgida das entranhas da Burocracia soviética. Os partidos comunistas que ainda dirigem países, como China, Vietnã, Coréia do Norte e Cuba, na verdade dirigem Estados burgueses, que encorajam e defendem totalmente as relações capitalistas de exploração. Esses partidos são comunistas apenas no nome, mas são capitalistas de fato. A revolução socialista também terá que acertar contas com eles.

Notas:

[1] TROTSKY, León. A Revolução Traída. O que é e para onde vai a Rússia? Madrid: Fundación Federico Engels, 2001, p. 212.

[2] MORENO, Nahuel.  Atualização do Programa de Transição. Teses XXIII. Disponível em: <https://www.marxists.org/espanol/moreno/actual/apt_3.htm#t23>, consultado 17/11/2021. Destacado original.

[3] TROTSKY, León. A Revolução Traída…, p. 188.

[4] TROTSKY, León. A Revolução Traída…, p. 189. Destacado nosso.

[5] Idem.

[6] TROTSKY, León. Programa de Transição. A agonia do capitalismo e as tarefas da IV Internacional. Disponível em: <https://www.marxists.org/espanol/trotsky/1938/prog-trans.htm>, consultado 17/11/2021.

[7] O termo foi cunhado por Nikita Khrushchev em 1955. O XXII Congresso do PCUS (1961) aprovou o conceito como eixo da política externa oficial. O dicionário de economia política de Borísov, Zhamin e Makárova definiu-o da seguinte forma: “O fundamental na coexistência pacífica de Estados com regimes sociais diversos é a renúncia à guerra como meio de resolução de disputas internacionais e sua solução por meios pacíficos; direitos iguais entre os Estados, compreensão mútua e confiança entre si; levando em consideração os interesses de ambas as partes, a não ingerência nos assuntos internos, o estrito respeito pela soberania e integridade territorial de todos os Estados; o desenvolvimento da colaboração econômica e cultural baseada na plena igualdade e vantagem mútua[…]”.

[8] Em 1949, entre 80 e 95% da produção industrial desses países havia sido nacionalizada.

[9] Nesse contexto, em outubro de 1947 nasceu o Cominform, concebido como um instrumento de troca entre partidos comunistas europeus, e, em 1955, foi assinado o Pacto de Varsóvia, uma aliança militar do “bloco soviético” para se opor à OTAN, a coalizão militar criada em 1949 pelas potências imperialistas do Ocidente. A realidade mais tarde mostrou que o Pacto de Varsóvia foi estruturado para manter a disciplina dos países membros, não para um confronto com o imperialismo.

[10] Houveram outros estados operários burocratizados de origens diversas, ou seja, surgidos de revoluções: China, Iugoslávia, Albânia, Vietnã do Norte e Coréia do Norte, embora também fossem governados por burocracias.

[11] MORENO, Nahuel. O marco histórico da revolução húngara. Disponível em: <https://www.marxists.org/espanol/moreno/1950s/mhrh.htm#_Toc534111153>, consultado 29/11/2021.

[12] Tese da Fundação LIT-CI. Tese III. Disponível em: <https://www.academia.edu/14717003/Tesis_de_fundaci%C3%B3n_de_la_LIT_CI?auto=download>, consultado 30/11/2021.

[13] MORENO, Nahuel. O marco histórico da revolução húngara.

[14] A crise e a divisão do aparato stalinista foram expressas, entre outros marcos, na cisão Stalin-Tito em 1948 e na cisão sino-soviética no final dos anos 1950. Essas crises, bem como os conflitos entre a URSS e as camarilhas dirigentes nos Estados do glacis, decorrente de embates entre interesses nacionais, uma vez que cada burocracia nacional buscava maximizar seus privilégios, decorrentes do controle de “seus” Estados operários burocratizados.

[15] Sobre este tema, ver: TALPE, Jan. Os estados operários do glacis. Discussão sobre a Europa de Leste. São Paulo: Editora Lorca, 2019.

[16] Partido Socialista Unificado da Alemanha, SED, em suas iniciais em alemão. Ele nasceu em 22 de abril de 1946 como resultado da fusão, promovida por Stalin e Walter Ulbricht, entre o KPD (Partido Comunista da Alemanha) e o setor oriental do SPD (Partido Social Democrata da Alemanha). Foi o partido no poder na RDA até 1989.

[17] MANDEL, Ernest. O levantamento operário na Alemanha Oriental, junho de 1953. Disponível em: <https://vientosur.info/el-levantamiento-obrero-en-alemania-oriental-junio-de-1953/>, consultado em 30/11/2021.

[18] Declaração. Os proletários de Berlim se levantam. La Vérité. Órgão de defesa dos trabalhadores, nº 317, de 26 de junho a 9 de julho. Disponível em: <https://vientosur.info/el-levantamiento-obrero-en-alemania-oriental-junio-de-1953/>, consultado 30/11/2021.

[19] MORENO, Nahuel. O marco histórico da revolução húngara.

[20] MORENO, Nahuel. Escritos sobre revolução política. Disponível em: <http://www.nahuelmoreno.org/escritos/escritos-sobre-revolucion-politica-1958.pdf >, consultado 04/12/2021.

[21] Ver: <https://web.archive.org/web/20060409202246/http://yale.edu/lawweb/avalon/wwii/hungary.htm#art12>, consultado 30/11/2021.

[22] As demandas foram elaboradas por um setor de alunos do MEFESZ (União dos Estudantes da Universidade Húngara e da Academia). O encontro aconteceu na Universidade Tecnológica da Construção.

[23] Ver: <https://es.wikipedia.org/wiki/Demandas_de_los_revolucionarios_h%C3%BAngaros_de_1956>, consultado 30/11/2021.

[24] FRYER, Peter; BROUÉ, Pierre; BALASZ, Nagy. Hungria em 56: revoluções operárias contra o stalinismo. Buenos Aires: Edições do I.P.S., 2006, p. 106

[25] MORENO, Nahuel. O quadro histórico da revolução húngara…

[26] Idem.

[27] NAVRATÍL Jaromir. The Prague Spring, 1968. A National Security Archive Document Reader (National Security Archive Cold War Readers). Central European University Press, 2006, pp. 52-54.

[28] COMECON, Conselho de Assistência Econômica Mútua. Fundada em 1949, era uma organização de cooperação econômica entre a URSS e seus estados satélites.

[29] Manifesto “Duas Mil Palavras”: <https://pasosalaizquierda.com/dos-mil-palabras-dirigidas-a-los-obreros-a-los-campesinos-a-los-empleados-a-los-cientificos-a-los-artistas-a-todos/ >, consultado 30/11/2021.

[30] Romênia, Iugoslávia e Albânia se recusaram a participar da invasão. O comando soviético não apelou às tropas da RDA para evitar reviver as memórias da invasão nazista de 1938, embora isso fosse inevitável.

[31] Ver: <https://www.laizquierdadiario.com/La-primavera-de-los-pueblos-comienza-en-Praga>, consultado 30/11/2021.

[32] Ver: <https://elpais.com/diario/1982/03/02/internacional/383871604_850215.html>, consultado 04/12/2021.

[33] Idem.

[34] Entre 1971 e 1973, as importações cresceram 19,3% ao ano, enquanto as exportações apenas 10,8%.

[35] Ver: < https://elpais.com/diario/1981/02/17/internacional/351212403_850215.html >, consultado 04/12/2021.

[36] A dívida externa da Polónia e quem deve superá-la. Revista de Comércio Exterior, vol. 37, não. 8, México, agosto de 1987, p. 682.

[37] Ver: < https://elpais.com/diario/1981/02/17/internacional/351212403_850215.html >, consultado 04/12/2021.

[38] Ver: <http://isj.org.uk/the-rise-of-solidarnosc/>, consultado 30/11/2021.

[39] MORENO, Nahuel. Escritos sobre revolución política…

[40] MORENO, Nahuel. Sobre a revolução política polonesa(1981/1982). Buenos Aires: CEHUS, 2018, p. 2.

[41] Idem, p. 10.

[42] MORENO, Nahuel. Sobre a revolução política polonesa…, p. 11.

[43] MORENO, Nahuel. Sobre a revolução política polonesa…, p. 21.

[44] MORENO, Nahuel.  Atualização do Programa de Transição. Tese XXIII

[45] MORENO, Nahuel. O marco histórico da revolução húngara…

[46] Ídem.

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