qui abr 18, 2024
quinta-feira, abril 18, 2024

Lições após 30 anos do fim da URSS

Em agosto de 1991, grandes manifestações de massas, em Moscou e em toda a antiga URSS, derrubaram o regime ditatorial do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). O processo vinha de alguns anos antes. Começa com a rebelião na Armênia em 1988; continua nas lutas populares das nações oprimidas na URSS, no contexto das manifestações de massas que levaram à queda do muro de Berlim em 1989; passa pela revolução que derrubou o Partido Comunista e prendeu e executou o tirano Ceaușescu da Romênia, em 1989, e pelas demais que varreram a Europa Oriental submetida às ditaduras dos partidos comunistas sob tutela de Moscou. A impotência do regime do PCUS para impedir a queda dos regimes stalinistas em seus satélites da Europa Oriental já prenunciava uma crise aguda no regime da própria Rússia após a implantação da chamada Perestroika, política que restaurou o capitalismo e deixou a sociedade soviética exposta a uma queda cada vez maior de seu nível de vida.

Por: Redação LIT-QI

No ano de 1991, frente a uma tentativa de golpe de Estado da ala mais repressiva e ditatorial da burocracia encabeçada por Yegor Ligachev, as massas o derrotaram nas ruas e derrubaram o aparato do PCUS abrindo um período de liberdades democráticas em toda a URSS. Quem dirigiu o processo na Rússia foi Yeltsin, que poucos meses depois decreta o fim da URSS numa reunião dos três governantes, da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia.

Qual foi a natureza e o resultado desse movimento? A queda da URSS foi muito comemorada pelo imperialismo como a vitória do capitalismo e lamentada pelos stalinistas com o argumento de derrota do socialismo, fruto de uma “contrarrevolução”, por isso muita confusão se mantém até hoje na hora de avaliar os fatos.

Significou uma vitória ou uma derrota para o movimento operário? Retomar os fatos e ter uma posição permanece sendo decisivo para que a militância tenha um programa adequado frente à realidade mundial atual.

A LIT-QI, depois de apresentar uma resposta inicial com erros importantes, a partir do ano de 1997 elaborou uma análise original frente aos fatos. Esta análise está expressa no livro Veredito da História do camarada Martin Hernandez e nos armou, tanto para entender o processo de restauração na URSS e Europa Oriental, como na China e em Cuba. Neste artigo vamos retomar essa elaboração e colocar algumas novas questões para entender mais precisamente a desintegração da URSS.

I. O que era a URSS em 1991

Em 1917, a classe operária havia tomado o poder sob a direção do Partido Bolchevique e Lenin e Trotsky sempre disseram que a Revolução Russa só poderia resistir ao cerco imperialista e alcançar o socialismo se o proletariado dos países mais avançados também tomasse o poder. A Guerra Civil russa (1917-1923), que contou com a intervenção dos exércitos russos brancos e com uma invasão militar de várias nações imperialistas, sustentando também vários exércitos mercenários, desferiram golpes poderosos sobre um país atrasado. Grande parte da vanguarda da classe operária russa, que havia tomado o poder, perdeu a vida na luta militar. A fome e a miséria atingiram proporções catastróficas no jovem Estado operário.

O atraso das massas russas, majoritariamente camponesas; a quase desaparição da classe operária durante a guerra civil; o cansaço das massas como consequência da própria guerra; a derrota da revolução alemã (1918-1923), etc., permitiu base objetiva para o fortalecimento dos setores mais burocráticos e conservadores no Partido Bolchevique e no Estado. A revolução sobreviveu, mas com contradições graves: uma nova camada de funcionários, originária de velhos membros do aparato czarista e reforçada por novos burocratas e carreiristas tomou o controle do Estado operário após um processo duro e violento de luta política. Surgiu, assim, a burocracia do Estado operário. Um retrocesso que vai se materializar na ascensão de Stalin à direção do partido e do Estado após a morte de Lenin em 1924[1].

A contrarrevolução stalinista pavimentou o caminho com o sangue dos quadros que resistiram ao retrocesso. Como resultado de uma repressão impiedosa, os trotskistas e demais oposicionistas foram povoar as prisões do Estado[2]. A partir daí, essa nova casta ataca duramente a concepção e o programa original de Lenin e do Partido Bolchevique que havia encabeçado a revolução. E elabora uma teoria justificativa para impor uma orientação oposta à de Lenin, mas apresentada enganosamente em nome dele e do marxismo: O ‘socialismo em um só país’.

A burocracia impôs um retrocesso completo na questão da mulher, da família, da homossexualidade. O mesmo aconteceu com as nacionalidades oprimidas e incluiu a volta do velho “patriotismo russo” chauvinista e o antissemitismo, traços típicos do czarismo.

A ideia de Stalin de que a URSS, em forma isolada do resto do mundo já havia chegado ao socialismo, não só era utópica, como era reacionária. Sua outra cara era “a coexistência pacífica com o imperialismo”. Afinal, se era possível chegar ao socialismo em um só país isolado, não era necessário, ou pelo menos não era imperioso, ter como centro garantir todo apoio à Revolução mundial. Isso justificou que a URSS, conduzida por Stalin, chegasse a acordos contrarrevolucionários com os distintos imperialismos.

Desta forma, a URSS deixou de ser uma alavanca da revolução mundial, que era a única forma que tinha a própria URSS de chegar ao socialismo. Transformou-se, através da Terceira Internacional estalinizada, no principal obstáculo para a vitória da revolução internacional. O resultado foi que a URSS continuou isolada frente ao imperialismo e, depois, frente à ameaça direta do nazifascismo. Entre 1938-40, Stalin concretizou o vergonhoso Pacto com Hitler, que dividiu a Polônia entre ambos os governos que ocuparam, cada um, uma parte desse país. O pacto foi escrito com o sangue dos trabalhadores e do povo polonês.

A invasão nazista à URSS, em 1941, implicou uma ruptura unilateral, por parte de Hitler, desse pacto. O avanço alemão tomou Stalin e o alto mando soviético completamente despreparados, apesar de terem sido informados com antecedência, pela rede comunista de informações Orquestra Vermelha de Leopold Trepper, que o ataque nazista era iminente. Para agravar ainda mais a situação Stalin havia ordenado, em 1938, um expurgo que destruiu todo o grupo dirigente do Exército Vermelho e comprometeu gravemente a capacidade de defesa da URSS. Todo o alto comando com Tukhachevsky, Yakir, dirigentes do Exército Vermelho e heróis da guerra civil foram fuzilados em segredo. Esse expurgo levou à eliminação de 90% de todos os generais, 80% de todos os coronéis, e 30 mil dos oficiais de patentes mais baixas e deixou o Exército Vermelho seriamente enfraquecido às vésperas da 2ª Guerra Mundial. Frente a uma razia desta magnitude no Exército Vermelho, Hitler se sentiu encorajado a atacar a URSS.

A vitória contra o nazifascismo, na verdade, coube à classe operária e o povo russos, não à burocracia stalinista. A vitória do povo soviético se produziu a pesar da camarilha governante. A resistência heroica dos trabalhadores e camponeses russos consegue reverter o curso da guerra a partir de 1943, com a retumbante vitória dos trabalhadores russos em Stalingrado. Essa vitória abre o caminho para a derrota militar do nazismo e muda a situação da Segunda Guerra, não só na URSS, mas em toda a Europa.

Mas, ao invés de se apoiar nesse enorme triunfo dos trabalhadores para estimular a revolução mundial, Stalin continuou a defender a submissão de todas as revoluções ao acordo com o imperialismo norte-americano e britânico, com os quais assinou os Pactos de Yalta e Potsdam. Nesses dois acordos, Stalin aceitou que, após a derrota do nazismo, a Europa ocidental permaneceria capitalista. A partir de 1945, quando o ascenso revolucionário percorreu inúmeros países, inclusive os grandes centros capitalistas, a orientação para os Partidos Comunistas (PCs) da França, Itália e Grécia, que encabeçavam a resistência ao nazifascismo, foi no sentido de entregar o comando do país às respectivas burguesias. Assim como na China fazer o PC chines apoiar um governo de coalizão com Chiang Kai Shek.

Stalin saiu fortalecido pela vitória contra o nazismo. Mas a permanência da burocracia no comando da União Soviética após a guerra e a desastrosa condução burocrática fizeram com que, já no final dos anos 1950, o crescimento econômico começasse a diminuir. A economia continuava crescendo, porém a um ritmo bastante inferior.

II. A Restauração a partir da própria burocracia

Há uma ideia difundida de que a burocracia governava a URSS com o apoio, ativo ou passivo, dos trabalhadores. Mais uma vez se oculta as inúmeras demonstrações de resistência por parte da classe operária durante todo o período de controle totalitário do PCUS. A queda do nível de vida das massas encontrou resistência por parte dos operários de toda a URSS. Só para citar uma dessas manifestações, em 1962, sob o governo de Khrushchov explodiu uma greve dos mineiros de Novocherkask, com mais de 10.000 trabalhadores e que foi esmagada pela repressão assassina do PCUS através da polícia e da KGB[3].

Entre os anos 1963 e 1968, em todo o Leste europeu, a burocracia tentou fazer reformas profundas para tentar superar a situação. Essas reformas, que por um lado pretendiam modernizar a gestão e por outro aumentar o comércio exterior para trazer novas tecnologias, terminaram em um fracasso. Tanto a URSS como o conjunto dos países do Leste europeu começaram a entrar em uma crise econômica sem saída. A invasão do Afeganistão, em 1979, trouxe novas contradições explosivas que atingiu duramente o aparelho militar e a economia soviética, pois envolveu uma guerra de ocupação que durou muitos anos, fato que implicava gastos imensos e sem conseguir estabilizar minimamente o país ocupado.

Quando Gorbachev assume o poder, em 1985, logo após a morte de Tchernenko, a situação era cada vez mais insustentável. Andropov, que havia sido chefe da KGB por muitos anos, foi o secretário geral do PCUS que sucedeu Brejnev e quem sustentou Gorbachev em sua ascensão. Andropov já tinha um projeto restauracionista e tinha como objetivo abrir espaço para Gorbachev, que vinha da agricultura, onde tinha se dado conta da perda de competitividade da agricultura da URSS frente aos países imperialistas e impactado por problemas decorrentes do aparelho burocrático, queria impor um novo curso para o mercado. Mas Andropov teve seu mandato abreviado devido a uma doença, e a ascensão da nova camada de dirigentes dispostos a abrir caminho à restauração ocorre após a rápida passagem de Tchernenko pela secretaria geral do PCUS.[4] Andropov havia modificado a composição do comitê central do PCUS algum tempo antes para poder implementar as reformas pró-capitalistas. Essa mudança deu base para a ascensão de Gorbachev ao cargo máximo, o que define a dominação do PCUS pela ala Restauracionista.

Andropov e Tchernenko

O plano desse setor majoritário da burocracia era abrir a economia ao investimento externo e ao comércio exterior, acabar com o planejamento centralizado e estabelecer relações diretas com o imperialismo norte-americano. E para isso ter uma política externa de ‘paz’, de levar à ‘coexistência pacífica’, uma postura de aceitação e entrega, que se concretizou com a cúpula Reagan-Gorbachev. Não por acaso, poucos anos depois, Gorbachev recebeu o título do Prêmio Nobel da Paz. E é homenageado até hoje pelo imperialismo. Na Rússia, ao contrário, seu nome ficou associado ao período de carências de bens básicos, de inflação e miséria. Só restou a Gorbachev se afastar da vida política.

A aplicação do projeto de restauração de Gorbachev 

Mas a restauração capitalista, iniciada concretamente em 1986, trouxe consigo ainda mais flagelos para a população e uma crise econômica e social ainda pior. A liberação de preços descarregou nas costas da população os custos da liberação do comércio. A guerra no Afeganistão, para piorar o quadro, continuava a drenar os recursos.

Gorbachev e Reagan, em 1987

O descontentamento cresceu em escala geométrica. As nacionalidades oprimidas continuavam a ser marginalizadas em relação à Rússia. Nesse contexto, explodiu a rebelião na Armênia em 1988.

Começaram as manifestações por democracia em todo o Leste europeu. Em 1989, a onda de revoluções na Europa oriental teve um grande impacto: a queda do Muro de Berlim e em seguida, a queda de vários partidos comunistas e a derrubada do ditador Ceauşescu na Romênia, que acabou sendo fuzilado pelos insurretos.

A crise se estende à burocracia e ao regime ditatorial e opressor no próprio PCUS. Além disso, esta já havia mostrado sua debilidade quando ao contrário de 1956 na Hungria e de 1968 na Tchecoslováquia, não pôde intervir para reprimir os levantes vitoriosos nos países satélites da Europa oriental, como na Alemanha Oriental em 1989.

A revolução democrática contra o regime ditatorial do PCUS à frente de um Estado burguês.

Esse acúmulo de crises e derrotas vai se concentrar na URSS entre 1989 e 1991. E se dá contra uma ex-URSS com um Estado burguês já em transição ao capitalismo. Gorbachev tinha o plano de ir fazendo uma abertura econômica controlada para chegar ao capitalismo, assim como certas medidas de abertura política limitada, mas a crise profunda que cruzava o país deflagrou um processo que essa direção política não conseguiu controlar.

Nesse processo surgem lideranças como Boris Yeltsin. Vindo do aparelho do próprio PCUS, abre uma dissidência para ir mais fundo que o próprio Gorbachev no caminho da abertura ao mercado e ao imperialismo, e, para isso, assume algumas bandeiras democráticas como eleições livres imediatas para as autoridades regionais. Com isso, se torna popular e assume a direção do processo de luta contra a burocracia, quando assume como presidente da Federação Russa. A partir daí, Yeltsin desafia o poder central do PCUS e propõe acelerar mais a abertura política e econômica para o mercado. Nesse processo, uma ala da burocracia, que contava com dirigentes como Ligachev, queria manter o controle político total desse processo com repressão dura (como fizera a burocracia chinesa de Deng Hsiao Ping nas 4 modernizações) e por isso exigia um fim das aberturas políticas controladas de Gorbachev (conhecidas pelo nome de glasnost) e a prisão de dissidentes como Yeltsin e outras figuras semelhantes.

No dia 19 de agosto de 1991, tanques e carros blindados invadiram o centro de Moscou. Os militares tomaram o controle dos edifícios estatais, da torre de televisão e da sede dos correios. Um grupo de altos dirigentes do PCUS, encabeçados por Ligachev, anunciou a passagem do poder ao Comité Estatal de Emergência por causa de uma “grave e repentina enfermidade” do então presidente soviético, Mikhail Gorbachev. Era um golpe de Estado contra a linha de Gorbachev.

As massas soviéticas derrotam o golpe militar de agosto de 1991

Quando esse grupo de burocratas do PCUS tenta esse golpe de Estado para fechar o regime, desperta uma reação imediata de massas, que tomam a cidade de Moscou, e fazem com que as forças armadas se dividam no momento de reprimir. O exército se recusa a reprimir as massas agrupadas junto ao Parlamento russo e assim o golpe é derrotado e os golpistas obrigados a renunciar. Foram detidos e presos. Mas o poder não será mais devolvido a Gorbachev. Cai o regime de partido único e suas instituições repressivas. O próprio PCUS é apeado do poder. A luta de conjunto por liberdades democráticas das massas russas e das nacionalidades acabara derrubando o regime.

A derrota do Stalinismo foi uma vitória dos trabalhadores

O stalinismo era um aparato mundial que, como vimos, foi o maior obstáculo para as revoluções do século XX. Por isso, a derrota do PCUS pela ação das massas soviéticas foi uma vitória de caráter internacional, pois colocou em xeque o stalinismo, todo o aparato internacional dos PCs, pôs abaixo o maior obstáculo até então existente ao avanço da classe operária e de sua organização revolucionária. A partir daí, se deu uma ruptura no mundo inteiro com os partidos comunistas, liberando forças para a construção de partidos leninistas, e da Internacional, e melhores condições para a retomada do método e do programa marxista no movimento operário, se abriu um espaço imenso para esse combate. Não resolveu a crise de direção revolucionária, mas colocou essa tarefa em melhores condições objetivas.

Mas isso não elimina os aparatos nem destrói as ideologias existentes. A burguesia continua mantendo sua guerra ideológica associando o stalinismo e as burocracias ao ‘marxismo’ e ao socialismo para combatê-los. E a prova disso são as campanhas contra o ‘comunismo’, feitas a partir da leitura da queda da URSS como uma “revolução pró-capitalismo, que derrotou o socialismo”. Cabe aos revolucionários dar uma batalha contra essa interpretação. A construção de partidos revolucionários necessita de uma luta permanente ligada aos processos da luta de classes e um combate ideológico contra as alternativas burguesas, reformistas e aos neo-stalinistas.

III. As interpretações sobre 1991, vinte anos depois

Podemos sintetizar as duas interpretações existentes em dois grandes blocos:

a) A explicação que foi e continua sendo pelo próprio stalinismo: segundo eles, haveria problemas econômicos na URSS e no bloco do COMECON[5] pelo bloqueio do imperialismo e uma campanha ideológica ocidental que teve impacto nas mentes dos trabalhadores da URSS e da Europa Oriental, onde também haveria renegados e infiltrados que faziam o jogo do imperialismo. O Ocidente e sua publicidade teria ganhado a cabeça dos operários. Tal versão é uma ofensa para toda a classe operária russa, que foi capaz de enfrentar e derrotar o invasor nazista em 1943, e defender as bases sociais do Estado operário, apesar de sua direção catastrófica. Assim como para as classes operárias da Hungria em 56, Polônia em 56 e 80-81, a Tchecoslováquia de 68 que poderiam abrir um novo caminho para o socialismo com democracia operária livrando os povos desses países dessa burocracia, mas foram esmagadas com a repressão e invasão das tropas russas, sob o pretexto que seriam agentes do imperialismo. Assim como para os trabalhadores que lutaram com manifestações e greves na própria URSS, e as centenas de milhares de opositores internos que foram reprimidos e assassinados nos campos de concentração stalinistas, começando pelos dirigentes bolcheviques que Stalin liquidou sem exceção no final dos anos 30.

Os informes sobre a existência da oposição nas cadeias de Stalin nos anos 30-39, revelados pelos próprios arquivos da KGB e pela pesquisa de Pierre Broué[6], mostram a luta pela defesa da retomada do caminho socialista através de uma revolução antiburocrática, e por isso sofreram os horrores de uma mecânica de torturas e repressão igual ou pior que a do czarismo russo e do nazi-fascismo em campos de concentração como o de Vorkuta na Sibéria.

Essa versão neo-stalinista de que os trabalhadores foram iludidos pelo discurso imperialista é um intento desesperado de tirar a culpa da burocracia contrarrevolucionária desde Stalin, passando por Kruschev, Brejnev até Gorbachev, aos Rákosi da Hungria, Gomulka da Polônia e Ceausescu da Romênia. Esses foram os algozes da vanguarda da classe operária de seus países e das oposições que tentaram enfrentar seus planos contrarrevolucionários e foram esses mesmos dirigentes burocráticos que prepararam o caminho e levaram à restauração a partir de 1985-6 na antiga URSS e em todo o leste europeu sob sua dominação ditatorial.

Por outro lado, alguns stalinistas ou neo-stalinistas acusam a Gorbachev, como antes acusaram Kruschev nos anos 50-60 de ter vacilado frente a essas pressões e as agressões imperialistas. Kruschev havia assumido a direção da URSS e denunciado os crimes de Stalin em 1956. Nos anos 60, tanto os maoístas como o PC da Albânia, e seus seguidores como o PCdoB do Brasil, tinham o discurso de que Kruschev era um ‘revisionista’ pró capitalista e eram defensores da herança de Stalin frente à ‘revisão’ de Kruschev, já que tinha sido Kruschev quem havia revelado os crimes de Stalin a partir de sua morte em 1953.

Impactadas pelo fortalecimento do stalinismo logo após a segunda guerra mundial, na esteira da revolução iugoslava e a vitória de Tito, ainda mais com a vitória da revolução chinesa com Mao Tse Tung em 1949 e mais adiante a indochinesa, esse tipo de posição se estendeu com a revolução cubana de 1959 e a tática guerrilheira de Fidel Castro e Che Guevara. Embora esses mesmos processos tenham dividido o próprio stalinismo, levavam a posições diferentes, mas que não deixavam de ser stalinistas. Alguns como o castrismo e os vietnamitas acabaram por se alinhar com a burocracia russa, e outros como o PC chinês e o PC da Albânia de Enver Hoxha tiveram uma ruptura e construíram outra corrente internacional[7]. Na época os maoístas chamavam a burocracia russa de defensores do ‘social-imperialismo’.

Hoje essa posição voltou a ganhar força com os que tentam resgatar Stalin como um verdadeiro defensor do socialismo. Esses setores afirmam que houve algumas injustiças e que até mesmo os Tribunais de Moscou dos anos 30 teriam sido apenas erros de um dirigente comunista com uma orientação geral correta, mas com alguns ‘métodos equivocados’, e que caso triunfassem naquele momento, seus opositores teriam levado a URSS ao desastre.

Trotsky fez uma analogia histórica importante, quando demonstrou que esses métodos eram uma necessidade da burocracia contra revolucionária para garantir seu domínio. Que o extermínio da oposição foi uma necessidade da burocracia contrarrevolucionária para perpetuar-se no poder e garantir seus privilégios, assim como o Termidor de Napoleão Bonaparte fora necessário para terminar com o processo revolucionário na França aberto em 1789.

b) Ao longo dos 60 anos de dominação da burocracia no Estado operário russo, houve outro grupo de correntes na esquerda socialista que fizeram críticas duras ao stalinismo e à burocracia da URSS, mas sempre depositaram esperanças numa reforma do regime interno e na modificação gradual dessa burocracia pelo surgimento de forças renovadoras no seu interior que poderiam regenerar a URSS. Quando havia polarizações, esses setores assumiam uma posição centrista, colocando a ‘defesa da URSS’ à frente de qualquer outra questão política. Confundiam a defesa das conquistas da revolução russa e do Estado operário com a defesa da burocracia stalinista

Nas forças que compunham a IV Internacional no pós guerra e nas que se reivindicaram do trotskismo, esse mesmo tipo de interpretação foi predominante ao longo de todo o pós guerra e até 1991. Inclusive os trotskistas, em sua maioria, se puseram do lado dos que lamentaram a queda da ditadura da burocracia da URSS. Para eles, as massas russas tinham sido ganhas para a restauração e eram as responsáveis pela volta do capitalismo, porque o apoiaram.

Houve correntes sectárias como o SWP inglês que não assumiam a defesa do Estado operário burocrático, frente a um ataque do imperialismo. Classificavam a URSS como capitalismo de Estado. Sua posição frente a eventos como a Guerra da Coréia, era “nem EUA, nem URSS”. E houve setores como o lambertismo da França e o healysmo inglês que não reconheciam os novos Estados operários burocráticos do pós guerra e mantiveram essa caraterização por todo um período de 1952 a 1980.

Mas o setor que assumiu a direção da IV e causou sua dispersão no pós-guerra foi o ‘pablismo’ que afirmava declaradamente sua aposta na regeneração da burocracia soviética. Confundia a proposta de Trotsky de “defesa da URSS” com a defesa da burocracia da URSS. Recusou-se a apoiar a revolta de Berlim Oriental em 1953, porque ia contra a URSS e, portanto, beneficiaria o imperialismo. Embora Pablo tenha rompido com o trotskismo, seus aliados da época ainda mantiveram posições que capitulavam ao stalinismo. Quando se reorganizou o SU em 1963, os partidos europeus, com Mandel, Pierre Frank e Maitan à cabeça passaram a seguir em particular ao castrismo. Foram guerrilheiristas nos anos 60-70, e mantiveram essa capitulação, mesmo depois da adesão do PC cubano ao aparato stalinista.

Mandel e a Perestroika

O pano de fundo dessa posição de Mandel, e que fora antes de Pablo era uma análise equivocada da natureza da burocracia. Sua análise era que havia uma dupla natureza na burocracia: se por um lado era contra os trabalhadores, por outro, ela necessitaria defender o Estado operário, pois este era a fonte de seus privilégios como burocracia. Por isso, o teórico mais importante do Secretariado Unificado, Ernest Mandel dizia que era um erro grave pensar que a burocracia poderia levar à restauração.[8] Por isso, ele acompanhou com expectativa a Perestroika, levantou a possibilidade de ‘Autorreforma’ e viu Gorbachev como um setor ‘lúcido’ da burocracia. Essas ilusões na ala Restauracionista levaram a uma confusão enorme nas fileiras do SU, que os deixou descolocados frente às revoluções do Leste europeu e a queda do regime do PCUS e de Gorbachev.

Tal confusão levou a que o SU lamentasse o fim da burocracia, confundindo a dominação da burocracia com a manutenção do Estado operário e considerando a queda dos regimes e do stalinismo entre 1989 e 1991 como uma derrota histórica do socialismo e do proletariado. Tal avaliação levou Bensaid, que foi o principal teórico do SU após a morte de Mandel, a teorizar sobre uma “Nova época”[9], aberta por essa suposta derrota histórica do movimento operário, que assim, haveria retrocedido ao período anterior à organização classista do proletariado devido a uma vitória ideológica do capitalismo. Para ele, a revolução socialista não estaria colocada por todo um período.

Ao contrário de Trotsky, que sempre deixou claro que se a burocracia continuasse a frente da URSS, a restauração acabaria se impondo, esse setor do trotskismo acabou aparecendo como uma ‘colateral do stalinismo’, ou seja, se sentia derrotado junto com a burocracia e atribuía essas derrotas a uma vitória ideológica do imperialismo. Essas posições são um eco da própria campanha imperialista da rejeição ao socialismo e do ‘Fim da história’ no capitalismo. Qual é seu grande equívoco? Primeiro fazem uma reivindicação do ‘socialismo realmente existente’, que é ininteligível para as massas russas, ucranianas, ou romenas, tchecas, polacas. Dizem “mal com Stalin e a burocracia, pior sem eles”. E abstraem do papel contrarrevolucionário- e no final restauracionista da burocracia soviética, de Kruschev a Brejnev, de Andropov a Tchernenko e a Gorbachev.

Como escreveu Trotsky para a revolução espanhola, as massas fizeram o possível sem uma direção revolucionária à cabeça. Não foram elas, mas sim a burocracia que levou a Rússia de volta ao capitalismo. As massas não puderam improvisar uma direção nesses anos de repressão e submissão do stalinismo. Cada um dos intentos de organizar a oposição marxista contra a burocracia foi perseguido e seus integrantes, torturados e caluniados como ‘pró-imperialistas’.[10]

Em nível internacional também não viram alguma referência de peso que lhes desse uma alternativa. O PC chinês tinha passado de ser uma nova esperança, ao derrotar o imperialismo e seu fantoche Chiang Kai Shek em 1949, a construir uma nova burocracia. Ainda por cima entraram em choque com a burocracia russa para se aliar com os EUA. Mao aceitou a proposta de Nixon para compor uma frente contra a URSS e, inclusive, entraram em guerra com o Vietnã recém-vitorioso e libertado do domínio dos EUA a serviço dessa política. Foi nesse período que os maoístas chamavam a URSS de ‘social-imperialismo’. Sob essa justificativa, apoiaram até mesmo a ditadura de Pinochet. E enquanto faziam isso, já encaminhavam a restauração a partir de 1978, antes mesmo da própria burocracia russa.

O PC cubano que havia tido um período de certa independência nos primeiros anos da revolução cubana, quando promoveu a Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), a partir dos anos 1970 passou a se submeter à burocracia russa, apoiou toda sua política internacional e foi seu instrumento na África Negra, como em Angola, respaldando o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e sua política de colaboração de classe e repressão aos dissidentes; na América central orientando a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) contra a ruptura com a burguesia e contra a expropriação da burguesia na Nicarágua; e apoiando a repressão das massas da Tchecoslováquia em 68 e na Polônia em 1981. Passou a fazer parte do aparato stalinista como qualquer Partido Comunista de linha ‘soviética’.

Por outro lado, a ampla maioria da esquerda dos anos 70 aos anos 90 se dividia entre o apoio à burocracia russa ou à chinesa. Ou ainda à burocracia cubana, o que por sua vez significava apoiar a linha internacional do PCUS.[11] Ou seja, não havia uma referência para que os trabalhadores e intelectuais descontentes com a burocracia e o stalinismo visse uma alternativa socialista antiburocrática que defendesse a necessidade de uma revolução política que aprofundasse e impusesse a democracia operária, o socialismo com democracia operária. Mesmo as correntes que se reivindicavam trotskistas, em sua maioria capitulavam ao stalinismo, seja o russo, seja o chinês, ou o cubano. 

IV) Conclusões

A realidade dura e crua do mundo sob o capitalismo ‘triunfante’, é de crise econômica e social profunda, miséria, fome para bilhões de seres humanos, da opressão permanente e violenta das mulheres, do racismo contra os povos não brancos, a perseguição das minorias e a xenofobia contra os imigrantes. E como uma síntese do que o capitalismo reserva para a humanidade, estamos em pleno genocídio com a atual pandemia, em especial nas camadas das populações e das nações mais pobres. O descalabro do sistema capitalista com o meio ambiente faz o planeta atingir níveis de destruição ambiental de tal magnitude, que o futuro das novas gerações está sob ameaça. A não ser que o capitalismo seja eliminado da face da terra, não haverá futuro para a civilização humana.

Numa situação dessa envergadura, contraditoriamente a ampla maioria, da assim chamada esquerda, passou a defender que já não se pode pensar no socialismo e no comunismo como saída, ou que isso seria uma utopia. Dentre esses que advogam por outro tipo de saída alternativa, estão os que defendem o ‘socialismo de mercado’ no estilo do modelo chinês, que devemos estar no seu ‘campo’, saber reconhecer os supostos ‘avanços’ dos governantes chineses e que seria necessário apoiá-los porque eles seriam os únicos a se contrapor ao Estados Unidos como “socialismo de mercado” (continuidade do Estado operário surgido a partir de 1949) ou como um “Estado híbrido” cujo regime jogaria um “papel progressivo” frente ao imperialismo. É a reedição do ‘socialismo em um só país’, mas agora ainda pior: se trata de defender que uma ditadura capitalista que explora seus trabalhadores e camponeses é a referência que todos os ativistas e socialistas do mundo devem seguir. E defender todas as atrocidades da ditadura chinesa como um ‘mal menor’, enfim como a ‘saída possível’ nos dias de hoje.

Todo outro setor afirma que o socialismo não está colocado na realidade, que se trata de uma proposta ‘totalitária’ em si mesma e que o horizonte possível seria a ‘democratização radical’ da sociedade atual (portanto da sociedade capitalista). Confundem o socialismo e o comunismo de Marx e Engels com a ditadura stalinista. Talvez aqui valha a pena citar o diretor de cinema Damien Szifron de Relatos selvagens: “se você vai um teatro e passam Hamlet de Shakespeare e ocorre que o diretor da peça e os atores são horríveis, você não pode colocar a culpa em Shakespeare sem entender como esse elenco atentou contra o próprio Shakespeare e transformou uma peça genial em uma trama de quinta categoria.”

Mas a realidade de nosso planeta, da desigualdade cada vez mais gigantesca, onde 1% da população tem 50% da riqueza mundial em suas mãos, onde vamos de crise em crise econômica, onde nem sequer se garante o emprego para bilhões de seres humanos, confirma as palavras do Manifesto Comunista: “Que as classes dominantes tremam diante da ideia de uma revolução comunista. Os proletários não têm nada a perder exceto as correntes que os prendem. Eles têm um mundo a ganhar. Proletários do mundo inteiro, uni-vos”.

Lenin na fundação da III Internacional afirmava “A importância histórica universal da III Internacional, a Internacional Comunista, reside em que começou a levar à prática a consigna mais importante de Marx, a consigna que resume o desenvolvimento do socialismo e do movimento operário, durante um século, a consigna expressada neste conceito: ditadura do proletariado.

Esta previsão genial, esta teoria genial está se transformando em realidade [….] Iniciou-se uma nova época na história universal. A humanidade se livra da última forma de escravidão: a escravidão capitalista, ou seja, a escravidão assalariada.

Ao libertar-se da escravidão, a humanidade adquire pela primeira vez a verdadeira liberdade.”

Estamos na mesma época descrita por Lenin. A única saída continua sendo a revolução socialista com a classe operária à frente, que expropria a burguesia e implanta a democracia operária, e segue a luta pela revolução e pelo socialismo em escala mundial. Esse é o caminho realmente de transformação do mundo. Esse é a única alternativa real de futuro a ser construído nas lutas e na organização dos trabalhadores.

Notas:

[1] O último combate de Lenin, já enfermo, foi justamente contra a burocracia em ascensão.

[2] Esse processo está bem descrito no livro Comunistas contra Stalin, de Pierre Broué, recentemente editado pela Editora Sundermann.

[3] Na revista Lutte de Classes 219, novembro 2021, da organização Lutte Ouvrière da França, há um artigo contando essa greve.

[4] No capítulo 10 de seu livro Minha Vida, Gorbachev conta todo o episódio entre a sua indicação por Andropov, que morre apenas um ano depois, sua sucessão por Tchernenko e, finalmente, após a morte deste em pouco mais de um ano, sua eleição no CC já modificado para o cargo mais importante da URSS.

[5] Esse era o nome do bloco econômico que ligava a URSS aos países da Europa oriental, sob o comando da burocracia soviética.

[6] Essas informações estão no livro Comunistas contra Stalin.

[7] Mais tarde, logo depois da visita de Nixon a Mao e o reatamento de relações econômicas e políticas entre China Popular e EUA, o PC chinês e o da Albânia romperam relações, e ambas as burocracias se dirigiram para a restauração do capitalismo.

[8] Essas posições estão bem explicadas no livro O veredito da História de Martin Hernandez

[9] Esta visão está muito clara no texto de 1995 Uma nova época de Daniel Ben Said.

[10] O livro de Pierre Broué, “comunistas contra Stalin” faz uma rica descrição do trabalho heroico dessa oposição. A abertura dos arquivos da KGB permitiu descobrir inclusive a existência de uma organização nas terríveis prisões stalinistas nos anos 30, com pelo menos 8.000 integrantes, que foram condenados a longas penas e à morte pelo regime stalinista.

[11] Uma história que expressa bem essa relação é que em 1989, numa escola de quadros da antiga Alemanha Oriental, participavam dirigentes importantes do PT brasileiro e outras forças de esquerda latino-americanas na cidade de Berlim na noite em que as massas derrubaram o Muro de Berlim. Esses quadros ficaram completamente confusos sobre o que estava acontecendo na Alemanha Oriental, afinal como era possível uma insurreição de massas em um país “socialista”.

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