No dia 18 de abril, 12 dos clubes de futebol mais poderosos da Europa anunciaram, através de um comunicado, o que vinha fermentando há muito tempo: a constituição da nova “Superliga Europeia”.
Por: Antonio Rodríguez
O futebol e suas origens
O futebol, esse esporte que cativa as massas e que faz séculos que nos acompanha, há muito tempo deixou de ser uma paixão de muitos/as para ser um negócio de poucos. Nas suas origens, o futebol começou a ser praticado de forma amadora e em cada local tinha suas próprias regras. Algumas pessoas se divertiam praticando e outras se divertiam assistindo.
É em Londres, em 1863, que as regras do futebol são unificadas e se cria a “The Football Association“. Em 1871 foi criada a “FA Cup” e os ingressos começam a ser cobrados para poder assistir às partidas. A partir daí os jogadores de futebol começam a receber ofertas econômicas para jogar em cada clube. Em 1904 foi criada a FIFA e em 1930 foi organizado o primeiro campeonato mundial de futebol no Uruguai.
O dinheiro começou a circular em torno do futebol e para que os jogadores de futebol se dedicassem de maneira exclusiva deveriam ser pagos. A partir daí, os clubes tiveram que gerar receitas e estas vieram da venda de ingressos nos estádios. Uma boa fonte de receita, considerando que os estádios recebiam muitos espectadores. Em 30 de julho de 1930, 93.000 espectadores lotaram o Estádio Centenário de Montevidéu para ver a final da primeira Copa do Mundo entre as seleções da Argentina e do Uruguai.
Do futebol amador para uma grande indústria
Desde há muito tempo, em alguns estádios, podemos ver algumas faixas ou cartazes que põem em cheque o futebol atual e tudo o que o rodeia: “Ódio eterno ao futebol moderno“. E o que é o futebol moderno? O futebol moderno é uma coleção de circunstâncias que, na maioria dos casos, fazem com que muitas/os torcedoras/es sintam-se frustrados com o tratamento que recebem de alguns (Tebas¹ e companhia) e outros (os dirigentes que estragaram o futuro de numerosas equipes). A Lei Bosman, permitindo grandes milionários como Roman Abramovich e Xeiques Árabes se apossassem dos clubes, as grandes diferenças na distribuição de contratos de televisão, entre outras questões, foram deixando de fora a opinião dos/as sócios/as e decretando os primeiros passos do que acontece hoje em dia.
O futebol se tornou o esporte mais popular do mundo, e com isso o avanço da tecnologia foi decisivo. O papel da televisão liderando os grandes campeonatos do estádio à poltrona de cada casa foi um grande salto que transformou a indústria do futebol. Passaram da venda de milhares de ingressos à venda de direitos de transmissão para bilhões de pessoas no mundo. Se adicionarmos o marketing a isso, as/os torcedoras/es deixaram de ser meros espectadores e passaram a ser vistos como clientes, aos quais se vende um produto criado pelos clubes. Já não se investe em jogadores com talento única e exclusivamente com o propósito de ganhar campeonatos, mas sim desenvolver a marca do clube por meio deles. Ganhar o campeonato não é tudo, o importante é obter o maior número de torcedoras/es que pagam para ver os jogos, se tornem sócios, comprem a camisa do clube e todo o merchandising que se move ao redor. Em outras palavras, o negócio dos clubes de futebol é o marketing e os direitos televisivos.
A Superliga
E buscando espremer ainda mais um negócio que depois da pandemia foi seriamente afetado, doze dos clubes mais poderosos da Europa anunciaram por meio de um comunicado que vinha sendo gestado há muito tempo: a constituição da nova “Superliga Europeia”. A iniciativa, que estava em andamento há anos por Andrea Agnelli (empresário italiano que desde 2010 ocupou o cargo de presidente da Juventus) e Florentino Pérez, aconteceu definitivamente no dia 18 de abril e pretende se tornar o arcabouço de uma nova Federação governada pelos seus clubes fundadores: Milan, Arsenal, Atlético de Madrid, Chelsea, Barcelona, Inter de Milão, Juventus, Liverpool, Manchester City, Manchester United, Real Madrid e Tottenham Hotspur.
O aumento de receitas e as dívidas que esses clubes acumulam são os principais motivos que explicam o interesse por esta Superliga. Em janeiro de 2021 eles divulgaram passivos que chegam a 1.1 bilhões de euros no caso de Barcelona e 901 milhões de euros no caso do Real Madrid. Milan e Juventus da Itália, por sua vez, acumulam dívidas por 151,8 milhões e 458,3 milhões de euros respectivamente. Tottenham e Manchester United também estão entre os clubes mais endividados do planeta (933 e 581 milhões de euros apenas na temporada 2019/2020, período mais atingido pela pandemia). Nem o rico futebol europeu, cheio de estrelas e jogadores estelares, escapa da crise mundial.
Florentino Pérez, empresário milionário e presidente do Real Madrid, que há muito tempo encabeça uma luta interna no futebol europeu para obter uma fatia melhor do negócio de televisão, sempre teve contra esse projeto nada mais, nada menos que Gianni Infantino, presidente da FIFA (órgão que dirige o futebol mundial) e Aleksander Ceferin, chefe da UEFA (Confederação Europeia). O projeto de Florentino e seus sócios seria reunir os clubes mais poderosos a fim de concentrar a maior parte dos lucros. Uma iniciativa que afastaria ainda mais os grandes clubes dos pequenos em uma tendência que já existe há 40 anos.
Se este novo formato for adiante, significaria um grande salto no processo de elitização do futebol europeu e mundial. Desde o início da antiga “Copa da Europa” até o formato atual, estão aumentando os obstáculos para que os clubes pequenos e as ligas menores possam fazer seu caminho em um futebol que deixa cada vez mais evidente a concentração do capital privado. Por exemplo, em seus primeiros anos, a competição continental incluía uma equipe por país, mais o campeão do ano anterior. Isso permitiu que equipes de nível inferior ou até mesmo desconhecidas chegassem a uma final ou mesmo ser campeões da Europa (Malmoe da Suécia, Partizan e Estrela Vermelha da Iugoslávia, Nottingham Forest, Leeds United e Aston Villa da Inglaterra, o alemão Hamburgo, o francês Stade de Remis e muitos outros). Hoje tudo isso acabou.
Florentino Pérez, um ladrão vestido de “salvador“
Não é por acaso que por trás deste projeto está Florentino Pérez, o presidente do Real Madrid e um dos mais importantes empresários espanhóis. Florentino dirige o grupo de construção e serviços ACS desde 1997, com um faturamento próximo a 35 bilhões de euros. ACS é uma grande construtora que se desenvolveu e expandiu no auge dos contratos urbanísticos concedidos pelos governos de esquerda e direita, estabelecendo assim uma rede que tem penetrado cada vez em mais espaços de mercado, em aliança com o poder estatal. Também aparece como um de seus impulsionadores a grande JP Morgan, associado a especulações de todos os tipos. De acordo com a Forbes a fortuna de Florentino Pérez é estimada em cerca de 2.3 bilhões de euros. Sob a batuta de Florentino Pérez os camarotes do estádio Santiago Bernabéu tornou-se o ponto de encontro onde as elites políticas e econômicas do país fecham muitos dos seus negócios.
“Vamos ajudar o futebol de todos os níveis a ocupar o seu devido lugar no mundo. O futebol é o único esporte global do mundo, com mais de 4 bilhões de torcedoras/es e nossa responsabilidade como grandes clubes é atender aos desejos das/dos torcedoras/es”. Na verdade, por trás dessas palavras de Florentino o que está em jogo é aumentar as receitas (7 bilhões de euros) e concentrá-las. “Mais de 3.5 Bilhões ficariam para os clubes mais importantes, distribuídos da seguinte forma: “350 milhões de euros para seis clubes, 225 para quatro, 112,5 para dois e 100 para três clubes, distribuídos de acordo com um sistema interno não sujeito à classificação de cada ano ”(El País, 19/4). Um montante ao que se deve somar 4 bilhões de euros em lucros da televisão cujo destino ainda não foi determinado. Portanto, não é uma liga para salvar o futebol, mas para aumentar a distância entre os clubes mais poderosos e os demais, independente do impacto que isso possa gerar.
Uma resposta que não demorou a chegar
As tensões pela condução do futebol não demoraram. O presidente da FIFA Gianni Infantino anunciou imediatamente sanções não só para os clubes, mas também para jogadores que competem com suas seleções. O presidente da UEFA, Aleksander Ceferin, também estava muito irritado e disse que se sentia traído: “A Superliga é uma cusparada na cara do futebol e da nossa sociedade”.
Outras vozes também foram ouvidas, como a do atual diretor geral do Bayern de Munique Karl-Heinz Rummenigge, que em sua opinião considera “que a Superliga não vai resolver os problemas econômicos dos clubes europeus derivados do coronavírus”.
Boris Johnson, primeiro-ministro britânico, foi o mais crítico: “Os planos de uma Superliga Europeia seria muito prejudicial para o futebol”. O presidente francês, Emmanuel Macron, se colocou ao lado dos clubes franceses para rejeitar sua participação em um projeto que ameaça o princípio da solidariedade e do mérito desportivo.
Faz muito tempo que testemunhamos como estão tirando das/dos torcedoras/es uma das diversões que possuem no fim de semana, após as longas jornadas de trabalho que a maioria tem quase todos os dias. A resposta das /os torcedoras/es do Liverpool pendurando faixas em Anfield com os dizeres: “RIP LFC”. Na Alemanha, colocando-se na vanguarda da luta contra as reformas da Liga dos Campeões a uma criação da SuperLiga. A torcida do Manchester City reunindo assinaturas para o clube desistir de participar desta Superliga. Na Itália, onde grupos de torcedoras/es mais organizadas estão iniciando campanhas desde o ano passado.
Tudo parecia estar indo bem. Florentino Pérez inflou o peito, mas a pressão das / dos torcedoras/es ingleses, ameaçaram em todos os níveis e a retirada de times da Pemier finalmente frustrraram seu plano em menos de 48 horas. Pérez, o instigador desta Superliga sai como o grande perdedor deste projeto. Porém não devemos descartar que, longe desse fracasso, um novo cenário se abra para poder de negociar com a UEFA e forçá-la a distribuir uma parte maior do bolo entre as equipes campeãs.
Capitalismo, futebol e o povo
O capitalismo tende a destruir e tirar até mesmo o que nos permitiu sentir como nosso em algum momento de nossas vidas. Isso não significa que o futebol seja um espaço descontaminado pela lógica capitalista. Muito pelo contrário: o projeto da SuperLiga é simplesmente mais um reflexo dos processos de concentração de capital global e uma tentativa dos clubes mais ricos de garantir seus lucros após a crise do COVID.
No entanto, não defender este novo modelo não significa sentir saudade do antigo modelo que levou à situação atual. O que aconteceu é parte de uma acirrada disputa entre os grandes clubes europeus e a UEFA sobre a distribuição do suculento bolo que é a Champions League. A FIFA e a UEFA agora falam de solidariedade e acusam que querem quebrar o futebol, mas na realidade estes dirigentes milionários apenas cuidam de seus interesses. Eles não buscam o bem do futebol de base nem se preocupam com os clubes mais humildes, o que procuram é aumentar os seus lucros. E se não é esse o caso, diga-nos por que a FIFA agora aposta em um Mundialzinho de 32 clubes e a UEFA criam uma Copa das Nações, e a Liga da Confederações, se não é porque apostam em mais jogos e mais dinheiro. Aqui está um duplo discurso bastante hipócrita: eles defendem o futebol e a integridade quando é conveniente, mas enquanto isso, não param de criar competições e de incluir mais partidas no calendário. Na verdade, a proposta dos novos campeonatos que a UEFA defende não é mais do que uma superliga secreta, projetada para que os grandes ganhem mais. Para a UEFA as/os torcedoras/es importam pouco, algo que é claramente demonstrado em cada final da Liga dos Campeões, onde entregam apenas dez por cento do que ganham para os finalistas. A UEFA pensa nos adeptos? Não, estão pensando nos seus patrocinadores, que recebem muito mais do que as equipes que chegam à final.
Volta às origens e resgate do futebol para as/os torcedoras/es
Que as/os torcedoras/es se sintam mais próximas/os do futebol de novo e recuperem esse romantismo que nunca deveria ter sido perdido significa certamente apostar em um modelo que desprivatize os times e desmercantilize as competições. Uma tarefa muito complicada, mas necessária, que implicaria limitar os salários dos jogadores de futebol e limitar os orçamentos dos clubes. Um futebol em que os membros são os que decidem e mandam: um futebol que seja de todas as pessoas que gostam de um esporte, que não vamos esquecer, sempre foi vivido e produzido pela classe trabalhadora.
Pode parecer uma utopia, mas na Espanha estão surgindo em pequena escala experiências de clubes populares de futebol, autogeridos por assembleia e enraizados em seus bairros e comunidades (Unionistas de Salamanca, Xerez, CD Ourense), ou o caso do Independiente de Vallecas “Futebol popular, em termos de bairro”, que nos mostra que outro futebol é possível e definitivamente nos afasta de macroeventos criminosos como a Copa do Mundo de Futebol, a serviço de ditaduras e construída com a exploração dos trabalhadores, como se vê claramente em tudo o que cerca a Copa do Mundo do Catar (com mais de 6.500 trabalhadores migrantes mortos nas obras, de acordo com o The Guardian). Não vamos negar que a tendência que o atual futebol assumiu há anos parece imparável. No entanto, se o que queremos é voltar às origens e recuperar o futebol para as/os torcedoras/es, isso passa inexoravelmente por recuperar o que outrora deu sentido a este esporte: trabalho duro, apoiando o futebol de base e vivendo e sentindo a competição sem outro objetivo que não seja a inestimável glória e emoção de ganhar todos os domingos.
¹ Javier Tebas, presidente da Liga Espanhola de Futebol