search
História

O lugar do Manifesto Comunista na história

março 25, 2021

«Esta obra expõe, com uma nitidez e brilho geniais, a nova concepção do mundo, o materialismo consequente aplicado também ao campo da vida social, a dialética como a mais completa e profunda doutrina do desenvolvimento, a teoria da luta de classes e do papel revolucionário histórico mundial do proletariado como criador de uma sociedade nova, comunista »VI Lenin, 1914.

Durante a última semana de fevereiro de 1848, a pequena litografia de J. E. Burghard localizada no número 46 da rua Liverpool, centro de Londres, completou a impressão de três mil cópias de um panfleto escrito em alemão com o título Manifesto do Partido Comunista. Ninguém poderia imaginar o tremendo impacto teórico que esse livreto, originalmente de 23 páginas, teria sobre o futuro da humanidade. Há 173 anos o “espectro” do Manifesto “percorre o mundo”, inspirando a consciência e a ação política de milhões de pessoas.

Por: Daniel Sugasti

Qualquer que seja a atitude com relação ao marxismo ou ao comunismo, é um fato que o Manifesto se tornou uma obra clássica não apenas do pensamento socialista, mas da literatura política universal. É um texto necessário para compreender nossa época histórica. Isso não significa, que seja bem entendido, que a realidade tenha confirmado todas as linhas escritas por Marx e Engels. Tal leitura seria dogmática, isto é, antimarxista¹. A força do Manifesto está relacionada ao fato de que, em termos metodológicos e programáticos, selou a passagem definitiva do socialismo utópico ao científico.

Nem Marx nem Engels inventaram o socialismo ou o comunismo, como alguns pensam. Antes de 1848, esses conceitos não apenas existiam, mas exerceram considerável influência por meio de autores penetrantes como o Conde de Saint-Simon, Charles Fourier, Robert Owen, etc.

Eles submeteram as injustiças e o pauperismo causados ​​pelo capitalismo a severas críticas. O problema era que as atrocidades da burguesia eram combatidas com sistemas oníricos, idealizados com base na filantropia e no esforço, para convencer as classes dominantes da imoralidade da exploração. Ou seja, não compreendiam a essência do capitalismo nem identificavam a força social capaz de superá-lo. Consequentemente, para os utópicos, o proletariado não era mais do que uma classe oprimida, desmoralizada e inerte, passível apenas de compaixão. No entanto, o socialismo utópico era um produto de seu tempo. “Suas teorias incipientes”, explicará Engels, “não fazem mais do que refletir o estado Incipiente da produção capitalista, a incipiente condição de classe. Pretendia-se tirar da cabeça a solução dos problemas sociais, latentes ainda nas condições econômicas pouco desenvolvidas da época. A sociedade não encerrava senão males, que a razão pensante era chamada a remediar”2. A nova sociedade, portanto, seria “a expressão da verdade absoluta, da razão e da justiça, e basta descobri-la para que, por sua própria virtude, conquiste o mundo”³.

O Manifesto enterra essa etapa infantil do socialismo. Em primeiro lugar, porque difunde uma nova teoria, a concepção materialista da história, um dos instrumentos mais fecundos do pensamento humano. De acordo com ela, “A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe”4, ou seja, o motor do desenvolvimento humano não reside nem na vontade de um ser superior nem no papel dos indivíduos na história, mas na luta entre opressores e oprimidos.

O conceito de classes sociais e a noção de luta entre elas também não eram originais. Antes do Manifesto, outros pensadores haviam considerado esses elementos. O que havia de inovador no panfleto de 1848 foi que, pela primeira vez, se propunha que o confronto entre as classes era o fato central nos processos de transformação social ao longo da história. Para entender melhor em que consistia a novidade trazida pelo socialismo científico, convém atentar para este trecho de uma carta de Marx: “O que de novo eu fiz, foi: 1) demonstrar que a existência das classes está apenas ligada a determinadas fases de desenvolvimento histórico da produção; 2) que a luta das classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3) que esta mesma ditadura só constitui a transição para a superação de todas as classes e para uma sociedade sem classes.5.

Sobre isso, dois comentários. David Riazanov observou que a expressão “ditadura do proletariado” não existe no Manifesto, embora seja possível notar os elementos básicos dessa ideia. Em 1848, no entanto, isso ainda era abstrato. Seus autores argumentaram que o primeiro passo a ser dado após a revolução operária será “a ascensão do proletariado à situação de classe dominante”. A categoria “ditadura do proletariado” aparecerá explicitamente durante 1850: “Este socialismo é a declaração da permanência da revolução, a ditadura de classe do proletariado como ponto de trânsito necessário para a abolição das diferenças de classes em geral, para a abolição de todas as relações de produção em que aquelas se apoiam, para a abolição de todas as relações sociais que correspondem a essas relações de produção, para a revolução de todas as ideias que decorrem destas relações sociais.”6.

À missão de elevar o proletariado à condição de “classe dominante” [herrschende Klasse], Marx e Engels acrescentam “e a conquista da democracia”. Isso, de acordo com Ryazanov, seria a democracia proletária em oposição à democracia burguesa; isto é, outro componente elementar da formulação atual da ditadura revolucionária do proletariado7.

O segundo é notar o quão longe certos marxólogos acadêmicos estão da essência do marxismo, muito mais preocupados em cortar o pensamento de Marx em pedaços para estudá-lo, de forma estática, como um “filósofo”, “sociólogo”, “economista”, em suma, como um pensador de gabinete.

Marx e Engels, ao comprovarem a historicidade e a transitoriedade do capitalismo – apresentado pelo liberalismo como sistema “natural” – identificaram no proletariado a principal força social revolucionária, apontando-a como um produto inevitável e coveira da sociedade burguesa: “Com o desenvolvimento da grande indústria, portanto, a base sobre a qual a burguesia assentou seu regime de produção e apropriação dos produtos é solapada. A burguesia produz, antes de mais nada, seus próprios coveiros”.

Mas a missão histórica do proletariado, na visão dos autores do Manifesto, tinha uma particularidade com relação às classes oprimidas anteriores. Devido ao grau de desenvolvimento das forças produtivas que a sociedade atingiu, “…o proletariado não pode realizar a sua emancipação sem emancipar ao mesmo tempo toda a sociedade da separação em classes e, com ela, das lutas de classes.”8.

Em outras palavras, de acordo com a teoria marxista, a aspiração suprema do proletariado não consiste em se cristalizar como “classe dominante”, mesmo que assuma esse papel por um período necessário, mas na abolição das classes sociais e, com ela a extinção do Estado burguês moderno. A esta altura, vale reafirmar que o resultado da luta entre as classes não está, de jeito nenhum, predestinado, como costumam repetir aqueles que acusam o marxismo de ser “determinista”. O próprio Manifesto – para não falar de outras obras de seus autores – alerta que esse processo “terminou sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio conjunto das classes em conflito”. Ou seja, o comunismo não é algo “inevitável”, fatal, mas o resultado desse embate histórico. Sua contrapartida é o triunfo da barbárie.

Isso nos leva a outro conceito fundamental exposto no Manifesto, o do Estado moderno. O Estado, segundo a teoria marxista, não é um aparelho “neutro”, fora da luta de classes. Seu surgimento não é apenas um produto inevitável da divisão da sociedade em classes, mas, sob o controle das classes dominantes, é o principal instrumento de sujeição das classes dominadas. “O poder do Estado moderno“, afirmam Marx e Engels, não passa de um comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como um todo.” O Manifesto prossegue explicando que O poder político propriamente dito é o poder organizado de uma classe para dominar outra. Se, em sua luta contra a burguesia, o proletariado necessariamente se constitui em classe, se por meio de uma revolução se converte em classe dominante e, como tal, suprime violentamente as velhas relações de produção, então, junto com elas, suprime os antagonismos de classes e as classes em geral e, com isso, abole sua própria dominação de classe”. Desse modo, expõe a teoria da extinção do Estado: Uma vez que, no processo, desapareçam as diferenças de classe e toda a produção esteja concentrada nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político”.

A estratégia que o Manifesto propõe para superar a sociedade burguesa está relacionada ao exposto. O proletariado, dotado de organização política, deverá tomar o poder, concentrado pela burguesia através do controle da máquina do Estado, não por meios pacíficos, mas valendo-se da violência revolucionária: o proletariado funda seu domínio por meio da derrubada violenta da burguesia”. A tarefa dos comunistas, portanto, consiste na constituição do proletariado em classe, a derrubada do domínio da burguesia, a conquista do poder político pelo proletariado”. As lições da Comuna de Paris, ocorrida 23 anos após a publicação do Manifesto, ajustaram a teoria dos fundadores do socialismo científico sobre a relação entre o Estado e a revolução proletária, que, segundo eles mesmos, havia “envelhecido”: “a classe operária não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já pronta e fazê-la funcionar para os seus próprios objetivos”, argumentou Marx em 1871. Era preciso “romper” esse aparato. Por sua vez, Engels escreveu em 1891: “…a classe operária, uma vez chegada à dominação, não podia continuar a administrar com a velha máquina de Estado […]para não perder de novo a sua própria dominação, acabada de conquistar, tinha, por um lado, de eliminar a velha maquinaria de opressão até aí utilizada contra si própria, mas, por outro lado, de precaver-se contra os seus próprios deputados e funcionários, ao declarar estes, sem qualquer exceção, revogáveis a todo o momento.9

Ao realizar este programa, segundo uma das frases mais citadas do Manifesto, “Os proletários não têm nada a perder nela, além de seus grilhões. Têm um mundo a conquistar”.

É assustador como a esquerda atual abandonou, de forma velada ou explícita, as lições do Manifesto. O método revolucionário foi substituído, sem mais, pela estratégia parlamentar inofensiva, totalmente adaptada à legalidade burguesa. Da mesma forma, foi posta de lado uma ideia que permeia todo o conteúdo do célebre folheto, a independência de classe do proletariado em relação à burguesia e seus representantes políticos. A doutrina das “frentes populares” e todos os tipos de “frentes amplas” com frações da burguesia “democrática” ou “progressista”, sacramentada pelo stalinismo, se opõe à máxima marxista de que “a emancipação dos trabalhadores só pode ser obra da própria classe trabalhadora” e, consequentemente, está em contradição com a célebre convocação que conclui o Manifesto: “Proletários de todos os países, uni-vos!”.

Nesta comprimida menção das ideias fundamentais do Manifesto, não pode faltar o princípio do internacionalismo proletário, baseado na premissa de que o capitalismo, então em expansão, não conhecia fronteiras. A união da classe operária, portanto, também não poderia se restringir aos limites nacionais: “Os trabalhadores não têm pátria. Não se lhes pode tomar uma coisa que não possuem”, diz outra frase icônica do Manifesto. Mais adiante reforçam: “A ação unificada do proletariado, pelo menos nos países 42 MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA civilizados, é uma das condições primordiais para sua emancipação”. O correlato organizacional deste princípio foi aplicado a partir de 1846 por meio da formação dos Comitês de Correspondência Comunista e, posteriormente, na Liga dos Comunistas, que tinha membros em Londres, Paris, Bruxelas, além de alguma influência em partes da atual Alemanha. Essa foi a base para a posterior organização da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), fundada em 1864, mais tarde conhecida como a Primeira Internacional.

O princípio da independência de classe, por sua vez, moldou toda a teoria marxista do partido revolucionário. O Manifesto, primeiro programa científico de um partido comunista, declarou que era chegado o momento “de os comunistas exporem abertamente sua visão de mundo, seus objetivos e suas tendências, contrapondo assim um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo”. No capítulo dois, expõe o papel do partido comunista como “a parcela mais decidida e mais avançada dos partidos operários de cada país; eles compreendem teoricamente, adiante da massa de proletários, as condições, a evolução e os resultados mais gerais do movimento proletário”.

O Manifesto, em sua forma definitiva, apresenta com uma perspicácia penetrante um claro panorama do passado, presente e futuro da sociedade. Embora quase todas as ideias do documento tenham sido desenvolvidas anteriormente por seus autores, por exemplo, no título então inédito A Ideologia Alemã (1846), a profundidade e o estilo com que sintetizaram a nova visão do mundo, criando uma unidade entre teoria e prática, fez dessa obra um verdadeiro patrimônio histórico do proletariado.

O contexto histórico do Manifesto

O Manifesto não foi um raio em um céu sereno. Surgiu no contexto de uma Europa politicamente efervescente. Uma terrível crise econômica, somada a repetidas safras ruins, acelerou o desgaste dos antigos regimes monárquicos. O pauperismo desencadeou uma série de rebeliões pelo pão em muitos países. As mentes mais lúcidas não duvidavam que uma revolução estava prestes a estourar, aquela que seria a mais europeia de todas as revoluções.

Assim, o momento histórico em que surge o Manifesto deve ser compreendido como um processo único, condicionado pelo grau de desenvolvimento que o capitalismo havia alcançado na Europa Ocidental e, consequentemente, pelo estágio de organização da classe operária, bem como pela própria evolução das ideias de Marx e Engels, isto é, sua transformação de democratas radicais em comunistas.

Durante a sua primeira estadia em Manchester, entre 1842 e 1844, Engels diz ter chegado à ideia de que “os fatos econômicos — que na historiografia até hoje não desempenham nenhum papel ou apenas um papel desprezado — são, pelo menos no mundo moderno, um poder histórico decisivo; em que eles formam a base para o surgimento das oposições de classes hodiernas; que estas oposições de classes — nos países em que, em virtude da grande indústria, elas se desenvolveram completamente […] são, por sua vez, a base da formação de partidos, das lutas de partidos e, com isso, da história política toda.10. É conhecido o fato de que Engels se antecipou a Marx na tentativa de sintetizar a filosofia clássica alemã com a economia política inglesa. Captou essas ideias em seu Esboço para uma crítica da economia política, artigo publicado nos Anais franco-alemães e que exerceria enorme influência sobre o jovem Marx.

Este, por sua vez, apresentou no mesmo jornal uma ideia semelhante, que Engels assim resumiu: “… não é o Estado que condiciona e regula a sociedade civil, mas é esta que condiciona e regula o Estado, e que, portanto, a política e sua história devem ser explicadas pelas relações econômicas e seu desenvolvimento, e não o contrário”11. Assim, quando se encontraram em Paris em agosto de 1844, ambos constataram que haviam chegado às mesmas conclusões teóricas fundamentais por caminhos diferentes. Sua colaboração intelectual e, sobretudo, sua intensa atividade militante datam desse encontro, como veremos.

Em fevereiro de 1846, Marx e Engels fundaram o Comitê de Correspondência Comunista em Bruxelas – cidade em que Marx se instalou após ser expulso de Paris um ano antes – com o objetivo de estreitar as relações com os emigrados políticos e outros elementos revolucionários espalhados pela Alemanha, França e Inglaterra; o objetivo dos amigos era organizar as lutas com base na nova concepção materialista da história.

Os Comitês de Correspondência foram muito importantes, pois consistiam no embrião de uma associação internacional de trabalhadores. Marx e Engels também organizaram a Associação Operária Alemã. Eles escreviam no Deutsche-Brüsseler-Zeitung, que praticamente transformaram em um órgão de suas ideias. Engels colaborava com o Northern Star, jornal da ala radical dos cartistas ingleses. Marx foi vice-presidente da Associação Democrática, uma espécie de coalizão com democratas radicais de Bruxelas e socialistas pequeno-burgueses franceses agrupados no jornal La Réforme. Em meio a essa intensa atividade prática, os dois encontraram tempo para escrever uma obra fundamental do marxismo, A Ideologia Alemã, cujo manuscrito nunca foi impresso por falta de editor. Seu conteúdo acabou sendo submetido à “crítica roedora dos ratos”.

A Liga dos Justos, uma sociedade secreta com métodos conspiratórios, típica da tradição dos revolucionários franceses da época12, redobrou seus esforços para se aproximar de Marx e Engels. A Liga havia recrutado operários modernos, mas era composta principalmente por artesãos alemães emigrados: alfaiates, sapateiros, ferreiros, relojoeiros, etc. O setor com perfil mais proletário e radical era o de Londres. Seus principais líderes foram os alemães Karl Schapper, Heinrich Bauer e Joseph Moll.

Este último recebeu a tarefa de se encontrar com Marx em Bruxelas e Engels em Paris para convidá-los oficialmente a ingressar na sociedade. Se aceitassem, poderiam intervir livremente no processo de reelaboração teórica e reorganização política que seria definida em um congresso internacional. Moll explicou a ambos que a maioria da Liga estava convencida da justeza de sua teoria e se dispunham a abandonar os métodos conspiratórios, forma de atuação à qual eles eram contrários.

A Liga tinha um programa utópico baseado no comunismo igualitário francês, emanado das ideias de Babeuf, misturado com elementos de uma interpretação confusa do cristianismo primitivo pregado por um talentoso alfaiate alemão chamado Weitling. Esse homem, que se via como um profeta chegou a elaborar um projeto de idioma universal, estava muito influenciado pelas ideias de Proudhon. O lema da Liga dos Justos era “Todos os homens são irmãos”. Para um setor da seção londrina da Liga, esse comunismo “filosófico-sentimental” não estava à altura das mudanças sociais e das tarefas do proletariado impostas pelo poderoso desenvolvimento da indústria capitalista. A crise interna foi crescendo, acelerada em certa medida pela propaganda incansável de Marx e Engels: “Ao mesmo tempo”, diz Marx, “publicamos uma série de panfletos, impressos ou litografados, nos quais a miscelânea do socialismo anglo–francês e filosofia alemã, era submetida a uma crítica implacável que na época constituía a doutrina secreta da Liga, recomendando ao invés o estudo científico da estrutura econômica da sociedade burguesa como único fundamento teórico pertinente, explicando-se em uma linguagem claramente popular que não se tratava da imposição de um sistema utópico qualquer, mas da participação ativa e consciente no processo revolucionário social que estávamos testemunhando”13.

A isso devemos acrescentar o trabalho de Engels, que em agosto de 1846 marchou rumo a Paris para tentar atrair e organizar os emigrados alemães sob a bandeira do comunismo científico. Para isso, ele teve que travar uma dura batalha contra as ideias de Proudhon e o “socialismo real” de Karl Grün, disputa que teve um forte impacto dentro da Liga dos Justos.

A verdade é que essa Liga oferecia a Marx e Engels uma oportunidade de atuação que eles não podiam desperdiçar. Assim, eles concordaram em incorporar-se em janeiro de 1847. Intervieram com força total no debate interno, com o apoio dos londrinos.

O primeiro congresso começou em junho de 1847. Marx não teve dinheiro para a viagem, então toda a responsabilidade recaiu sobre Engels. Após violentos debates, a Liga se reorganizou. Tanto os estatutos como os esboços de programa deveriam ser submetidos à apreciação da base, para posteriormente serem tratados em novo congresso. A tradição autoritária de “decisões desde cima”, típica das seitas, foi superada. A organização mudou seu nome para Liga dos Comunistas. O primeiro artigo dos estatutos indicava a penetração das ideias do socialismo científico: “O objetivo da Liga é a derrubada da burguesia, a dominação do proletariado, a supressão da velha sociedade burguesa baseada nos antagonismos de classe, e a criação de uma nova sociedade, sem classes e sem propriedade privada”. Em setembro, a Liga publica a Revista Comunista, onde aparece o novo lema da organização: “Proletários de todos os países, uni-vos”.

No final de outubro, Engels escreveu um esboço de programa, a pedido dos membros parisienses da Liga dos Comunistas, que ficou conhecido como Princípios do Comunismo, o principal antecedente do Manifesto. O rascunho assumiu a forma de um “credo”, com perguntas e respostas. No entanto, o próprio Engels, meticuloso, não demorou a se opor ao formato. O futuro programa deveria ser algo perene, com uma sólida fundamentação sobre “a história da questão”. Para Engels, um “catecismo” não “servia de forma alguma” para esse propósito. Então, em 24 de novembro, ele propôs a Marx dar à “coisa” o nome de “Manifesto Comunista”, um estilo familiar na literatura política francesa desde o Manifesto dos Iguais de 1796.

O segundo congresso, que iria completar a tarefa do primeiro, foi realizado em novembro-dezembro de 1847. Ele terminou de acordo com as aspirações de Marx e Engels. O congresso encarregou-os de elaborar um programa teórico e prático, para fins de publicação, para a Liga.

O encarregado da redação do Manifesto foi Marx. Terminou a tarefa em janeiro de 1848, enviando-o para impressão algumas semanas antes da eclosão da Revolução de fevereiro em Paris, que derrubou o rei Luís Filipe I e estabeleceu a Segunda República Francesa. O processo revolucionário espalhou-se como um incêndio na Itália, depois na Renânia, na Prússia e depois na Áustria e Hungria.

O Manifesto previu que a Europa, especialmente a futura Alemanha, estava às vésperas de uma revolução. Esse processo teria a vantagem de ocorrer em condições objetivas e subjetivas mais avançadas do que as revoluções burguesas clássicas dos séculos XVII e XVIII, a ponto de preverem que “a revolução burguesa alemã” seria o “prelúdio de uma revolução proletária.” Mas esse prognóstico não se confirmou. A revolução alemã de 1848-49 não triunfou como revolução proletária e, por esse motivo, tampouco como revolução democrático-burguesa. A derrotada “primavera dos povos” inaugurou uma nova dinâmica de classes dentro da época da revolução burguesa; suas lições seriam analisadas por Marx e Engels a partir de 1850.

Trotsky explicará, em 1905, o motivo pelo qual 1848 não foi 1789. A revolução europeia na qual Marx e Engels participaram eclodiu no contexto da pior situação, uma espécie de “meio-termo”. A burguesia de 1848 não se comportou como a de 1789. Os liberais já não “queriam” desenvolver a sua própria revolução e o proletariado ainda “não podia” levá-la até o fim: O proletariado era demasiado fraco; faltava-lhe organização, experiência e conhecimento. O capitalismo desenvolvera-se o suficiente para tornar necessária a abolição das antigas relações feudais, mas não o bastante para colocar em primeiro plano, como força política decisiva, a classe operária, nascida das novas relações industriais.14.

De qualquer maneira, não se pode dizer que o Manifesto exercia uma influência prática sobre os movimentos revolucionários de 1848-1849. Fora dos membros da Liga, poucos o conheciam. Não estava nem sequer à venda. Após a derrota, o Manifesto deixou a cena política completamente estigmatizado e, diz Engels, “logo foi relegado a segundo plano por causa da reação que se seguiu à derrota dos operários parisienses em junho de 1848”. A Liga dos Comunistas se dissolveu em 1852.

A transcendência do Manifesto teve que esperar um momento diferente na luta de classes e novos avanços na organização dos operários, que teve sua máxima expressão no final do século XIX e início do século XX, quando a socialdemocracia europeia experimentou um fortalecimento vertiginoso. Mas há um fato que marca o ponto de inflexão na realidade europeia e na difusão das obras de Marx: a Comuna de Paris. É a partir da experiência do “primeiro governo operário da história” que se multiplicaram as edições e traduções das obras dos pais do socialismo científico, principalmente do Manifesto.

Segundo dados de Bert Andréas, entre 1872 e a Revolução Russa de 1917 o texto de 1848 foi impresso em trinta línguas, incluindo três edições em japonês e uma em chinês. Foram 70 edições em russo, 55 em alemão, 34 em inglês, 26 em francês, 11 em italiano etc. A primeira tradução para o espanhol, feita pelo tipógrafo José Mesa, surgiu em 1872.

Qual é a vigência das ideias do Manifesto no século XXI?

Seria muito difícil, sem fazer papel de bobo, negar a influência que o legado teórico e político do marxismo continua exercendo no mundo; e o Manifesto é parte fundamental da vasta obra dos fundadores do socialismo científico. Traduzido para quase todas as línguas e publicado em quase todos os países, o poder das ideias contidas neste “panfleto” ainda é capaz de tirar a tranquilidade das classes dominantes. Não importa a passagem do tempo, pode-se dizer que, em cada luta, em cada revolução, vagueia o fantasma do comunismo…

Isso ocorre porque os princípios gerais enunciados no Manifesto mantêm total exatidão e vigência. É evidente que existem detalhes que estão antiquados. Existem também hipóteses e prognósticos que não se comprovaram. Trotsky tem razão, entre outras constatações, quando afirma que seus autores tenderam à “subestimação das possibilidades futuras latentes do capitalismo e, por outro lado, à supervalorização da maturidade revolucionária do proletariado”. Mas seria inexato não enfatizar que o Manifesto advertiu que “a aplicação prática desses princípios dependerá sempre e em toda parte das circunstâncias históricas existentes” (prefácio à edição alemã de 1872, ndt.). Seus próprios autores, vinte e cinco anos depois, reafirmaram os princípios enunciados no texto, mas admitiram que havia partes que justificavam um retoque ou uma redação diferente. Eles não eram videntes. Visto que a luta de classes é um processo vivo e dinâmico, e que o próprio objeto de análise do marxismo, o modo de produção capitalista, está em constante movimento, é impossível exigir que um texto publicado há 173 anos responda detalhadamente aos problemas apresentados pelo século XXI. O Manifesto não é um oráculo nem um texto sagrado. Portanto, nada menos marxista do que abordá-lo com o método talmúdico. O Manifesto pode não ser suficiente para responder em detalhes à atualidade da classe trabalhadora mundial, mas continua sendo um ponto de partida indispensável. Continua sendo um guia para a ação de quem pretende não só interpretar o mundo, mas transformá-lo.

Fontes:

1) Para um balanço das ideias do Manifesto, recomendamos o texto de Trotsky titulado: 90 anos do Manifesto Comunista: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1937/10/30.htm

2) ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. https://www.marxists.org/portugues/marx/1880/socialismo/cap01.htm

3) Idem.

4) MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Expressão Popular, 1ª edição, São Paulo, 2018. Salvo indicação contrária, todas as posteriores referências ao Manifesto remeterão a essa edição.

5) MARX, Karl. Cartas a Joseph Weydemeyer. https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/03/05.htm

6) MARX, Karl. As lutas de classe em França de 1848 a 1850. https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/11/lutas_class/cap03.htm

7) RIAZANOV, David. Notas aclaratórias. Em: Biografía del Manifiesto Comunista. Editorial México, 1949.

8) ENGELS, Friedrich. Para a História da Liga dos Comunistas. https://www.marxists.org/portugues/marx/1885/10/08.htm

9) MARX, Karl. A guerra civil em França. https://www.marxists.org/portugues/marx/1871/guerra_civil/index.htm

10) ENGELS, Friedrich. Para a História da Liga dos Comunistas. https://www.marxists.org/portugues/marx/1885/10/08.htm

11) Idem.

12) A Liga dos Justos nasceu em Paris em 1836, resultado de uma cisão da Liga dos Proscritos, uma sociedade de emigrados alemães que segundo Engels não era senão “uma rama alemã das sociedades secretas francesas, e principalmente da ‘Société des saisons’, dirigida por Blanqui e Barbès, com a que estava em íntima relação”.

13) MARX, Karl. Herr Vogt. Buenos Aires: Lautaro, 1947, p. 102.

14) TROTSKY, Leon. Balanço e perspectivas. https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1906/balanco/index.htm

Tradução: Nea Vieira

 

 

 

 

Leia também