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150 anos da Comuna de Paris

As Petroleuses: as mulheres que “incendiaram” a Comuna

março 18, 2021

Os retratos das mulheres que participaram da Comuna tornaram-se uma metáfora da atitude dos historiadores em relação a essa experiência revolucionária. Petroleuses é o termo francês utilizado para designar as mulheres acusadas de terem provocado incêndios com petróleo em 1871: sobre estes incêndios historicamente discutiu-se longamente, no entanto, a consulta dos documentos oficiais dos julgamentos realizados pelas autoridades de Versalhes revela que estas acusações são infundadas, pois nenhuma communard foi realmente condenada como incendiária.

Por: Laura Sguazzabia

É uma imagem criada pela burguesia reacionária, para a qual as communards eram mulheres misóginas enlouquecidas, vadias sanguinárias e fanáticas incendiárias que, nos últimos dias da Comuna, com seus filhos inocentes sobre os ombros, teriam incendiado grandes prédios de Paris. Com esta invenção, a burguesia tentou esconder o que realmente acontecera, ou seja, que dezenas de milhares de proletários, mulheres e crianças foram massacradas em um mar de sangue, presas e deportadas em condições desumanas.

Naquela extraordinária experiência revolucionária que foi a Comuna parisiense, pela primeira vez na história das sociedades modernas assistimos a uma maciça intervenção das mulheres na cena política, também através de uma participação ativa na vida económica e na luta armada. Durante a Comuna, milhares de mulheres da classe trabalhadora e algumas intelectuais conquistadas para as ideias socialistas foram exemplos de coragem e devoção, bem como arautos de ideias inovadoras. Esta é, sem dúvida, a razão pela qual elas, mais do que os homens, foram punidas e condenadas em Versalhes, vítimas também de calúnias infames.

Em abril de 2013, a associação parisiense “Os Amigos da Comuna de Paris 1871” publicou um pequeno dicionário das Comunardas, na tentativa de tirar das sombras as muitas figuras femininas que “incendiaram” com coragem e paixão os 72 dias parisienses. A leitura desta breve resenha nos permite compreender a quantidade e a qualidade da ação das mulheres na experiência parisiense e tornar seu exemplo atual na situação de crise econômica e opressão social a que as mulheres de hoje estão submetidas em um grau semelhante ao de 1871. ( 1)

A condição das mulheres (e das operárias)

Durante o Segundo Império, as mulheres eram reduzidas a um estado de submissão total. O código civil de 1804 considera as mulheres legalmente inferiores e tão dependentes de seus maridos que elas nem podem trabalhar sem sua autorização. Geralmente menos instruídas do que os homens, aquelas que têm acesso à educação frequentam escolas para meninas dirigidas por freiras onde, além de uma rígida moralidade cristã, elas são ensinadas a se tornarem boas esposas. Além disso, as mulheres não têm direito a voto.

Muitas mulheres trabalham em Paris, em particular estão empregadas na produção têxtil industrial: o anuário estatístico de 1871 indica que de 114.000 trabalhadoras, 62.000 são operárias. São as primeiras vítimas da industrialização: além da alienação que daí decorre, elas têm que enfrentar a concorrência de máquinas e a dos conventos que oferecem mão de obra a custo menor. Elas também sofrem diariamente preconceitos, misóginos de seus colegas de trabalho, inspirados no pensamento de Proudhon. (2) As mulheres trabalham de doze a quatorze horas por dia por um salário diário insignificante, entre 50 centavos e 2,50 francos, a metade dos homens. Se pensarmos que, na época, um quarto era alugado entre 100 e 200 francos ao ano, é claro que uma mulher sozinha não podia enfrentar as suas próprias necessidades, especialmente porque ela muitas vezes tinha filhos e parentes idosos dependentes. Neste contexto, a prostituição assume importantes implicações econômicas, mesmo para as mulheres casadas que podiam, portanto, unir os seus rendimentos com os do marido ou companheiro: o recurso à prostituição, muitas vezes não pontual, corresponde ao que elas chamam de “quinto quarto” do seu dia.

Apesar dessas condições, as mulheres são ativas e participam da vida política. Já em 1870, durante os acontecimentos franco-prussianos, elas são presenças numerosas: em 4 de setembro estiveram entre a multidão que derruba o Império e proclama a República; em 8 de setembro, uma manifestação de mulheres em frente ao Hôtel de Ville exige armas para lutar contra os prussianos; no dia 7 de outubro, as mulheres exigiram o direito de participar dos postos avançados para socorrer os feridos (direito que só obtêm com a Comuna).

A partir de janeiro de 1871, algumas organizações de mulheres são ativadas ou reativadas: são pequenos grupos como os comitês das cidadãs, grupos femininos que tentam fazer valer os direitos das mulheres, clubes muito ativos como o de Madame Allix no VI bairro, que reúne cerca de 300 adesões de mulheres que querem se armar para ir lutar nas barricadas.

Através dessas experiências, as mulheres compreendem que têm muito a ganhar, principalmente o que mais desejam, ou seja, o reconhecimento de sua dignidade. Elas têm total confiança no que está acontecendo e protegem, participando ativamente, as mudanças que levarão ao nascimento da Comuna, desde os primeiros dias até o fim sangrento da experiência revolucionária.

Na madrugada de 18 de março de 1871, quando as tropas de Thiers tentam confiscar os canhões dos parisienses, elas se opõem fisicamente dirigindo-se aos soldados que simpatizam com a população e que se recusam a cumprir a ordem, dada três vezes pelos oficiais, de atirar nos manifestantes. Edith Thomas escreve que “seria um exagero dizer que este dia revolucionário foi o das mulheres, mas elas contribuíram decisivamente para isso”. (3)

Nos dias seguintes, Paris é uma grande festa popular, cujo ponto culminante é a proclamação da Comuna em 28 de março. As mulheres confiam nas resoluções imediatamente tomadas que, embora simples e práticas, permitem vislumbrar uma nova justiça e, sobretudo, aliviar as agruras sofridas pela população parisiense, especialmente pelas mulheres, durante o longo cerco prussiano. Desde esses primeiros dias, as mulheres se mobilizam socorrendo os enfermos e necessitados, discutindo e propondo ideias inovadoras, movendo-se sempre em uma lógica de classe, não de sexo ou gênero: elas compreendem que só graças à revolução social poderão ter garantidos os seus direitos.

Em 3 de abril de 1871, quinhentas mulheres deixam a Place de La Concorde para marchar sobre Versalhes. Na ponte Grenelle, elas se juntam a outras setecentas. Os líderes da Comuna pedem que não saiam de Paris. Diante de um anseio tão revolucionário, surge a necessidade de uma organização.

A União das mulheres

Duas organizações de mulheres desempenharam um papel predominante na Comuna: o Comitê de Supervisão de Montmartre, de orientação blanquista, e a União de Mulheres para a Defesa de Paris e Ajuda aos Feridos, de orientação marxista. A União, cujos princípios refletiam a perspectiva revolucionária da ala marxista da Primeira Internacional, revelou-se a mais importante formação feminina, agrupando mais de seis mil membros. Destacou-se não só pela sua importância numérica, mas também pelo seu funcionamento muito rigoroso e ao mesmo tempo muito democrático. Foi capaz de guiar e organizar o profundo fermento popular entre as mulheres e tornou-se o elo entre as mulheres da cidade e o governo da Comuna. Nenhum outro grupo teve uma influência estendida a toda a cidade e tão duradoura, desde a sua fundação até a queda da Comuna nas barricadas.

Em 11 de abril de 1871, o jornal oficial da Comuna publica um longo “Apelo às cidadãs de Paris”, no qual, segundo as signatárias, sintetizam-se o espírito e as aspirações da Comuna. Este texto explica às mulheres parisienses que a melhor forma de defender o que elas amam é lutar contra o inimigo impiedoso. O apelo é seguido de um aviso convidando-as para uma reunião naquela mesma noite. Com a sua primeira reunião, a União das Mulheres propõe ao comitê executivo da Comuna que ajude materialmente a constituição de estruturas em cada conselho distrital, que subsidie a imprensa com circulares e cartazes e a distribuição de avisos. A comissão executiva começa imediatamente a implementar as propostas da reunião, imprimindo o texto integral das diretrizes da União no Jornal Oficial do dia 14 de abril, acompanhado de um resumo das decisões tomadas pela assembleia.

As diretrizes destacam qual era a ideia da União das Mulheres sobre a origem da opressão feminina. O título “operária” foi colocado ao lado do nome de seis das sete signatárias para indicar sua origem proletária. As diretrizes referiam-se à Comuna como a um governo cujo objetivo final devia ser a abolição de todas as formas de desigualdade social, incluindo a discriminação contra as mulheres. Fundamentalmente, elas descreviam a discriminação das mulheres como um instrumento para manter o poder das classes dominantes: “A Comuna, que representa o princípio da extinção de todos os privilégios e desigualdades, deverá, portanto, considerar legítimos todos os protestos de cada setor da população, sem nenhuma discriminação de gênero, discriminações que foram criadas e perpetuadas para manter os privilégios da classe dominante. O sucesso da atual luta, cujo objetivo é (…) em última análise o de regenerar a sociedade, garantindo o domínio de trabalho e justiça, é tão importante para as mulheres quanto para os homens de Paris ”.

A organização tem sede no 10º distrito. Um comitê central composto por 20 delegadas nomeia uma comissão executiva de sete membros, com a tarefa de fazer a ligação com as principais comissões do governo da Comuna: desta forma, elas podem transmitir de forma eficaz e rápida as reivindicações das mulheres ao governo central. Cada militante deve contribuir com dez centavos e reconhecer a autoridade do comitê central da União. Os comitês distritais instituídos pela União das mulheres são coordenados por uma presidente rotativa, coadjuvada por um comitê que pode ser revogado pelos militantes.

A comissão executiva é composta de quatro operárias (Nathalie Le Mel, Blanche Lefèvre, Marie Leloup e Aline Jacquier) e três mulheres sem profissão (Elisabeth Dmitrieff, Aglaé Jarry, Thérèse Colin). Na prática, as duas grandes impulsionadoras da comissão foram Natahalie Le Mel e Elisabeth Dmitrieff.

Elisabeth Dmitrieff

Elizaveta Loukinitcha Kouceleva nasce em 1º de novembro de 1851 em uma família nobre russa. Ela recebe uma boa educação e é fluente em vários idiomas. Mora em São Petersburgo, onde milita nos círculos socialistas desde muito jovem, sonhando com a emancipação para ela e para outras mulheres. O casamento branco com o coronel Toumanovki permite que ela vá para o exterior. Em 1868 ele emigra para a Suíça, onde participa da fundação da seção russa da Internacional. Delegada em Londres, em 1870, frequenta a família de Marx com quem mantém longas conversas: o autor do Capital está empenhado neste período em aprender a língua russa. Elizaveta permanece três meses em Londres durante os quais, além de se encontrar com Marx e sua família, pode conhecer os seus colaboradores mais próximos, em particular Engels, e participar de numerosas reuniões da Internacional. A única fonte que nos permite conhecer, pelo menos em parte, o conteúdo dessas reuniões é dada por uma carta escrita em 7 de janeiro de 1871 a Marx por Elizaveta, que adoecera com bronquite: a discussão está centrada na comuna rural russa.

Marx a envia a Paris em março de 1871 para ser sua correspondente nos acontecimentos da Comuna, como representante do Conselho Geral da Internacional. Sob o pseudônimo de Dmitrieff, durante a Comuna ela cria a União das mulheres: é membro do comitê executivo da União e idealizadora de um plano de reorganização do trabalho feminino, que foi apenas parcialmente implementado. Sua ação é tão incisiva que uma disposição do comitê central da organização feminina concede-lhe a cidadania parisiense, aguardando que a futura República lhe reconheça o título de cidadã da humanidade.

Após lutar corajosamente com armas na chamada semana sangrenta, consegue escapar de Paris, refugiando-se primeiro em Genebra e depois voltando para a Rússia. Condenada à revelia à deportação, em uma prisão fortificada, pelo conselho de guerra em 26 de outubro de 1872, foi perdoada em 1880. Entre 1900 e 1902 muda-se para Moscou e, a partir desse momento, as pesquisas históricas tornam-se confusas. A data de sua morte não é clara, embora algumas pesquisas de historiadores soviéticos pareçam confirmar que ela morreu em 1918 em circunstâncias pouco claras.

Nathalie Le Mel

Nathalie Duval, 1827, faz seus primeiros estudos em Brest, onde seus pais dirigiam um café. Desde os 12 anos trabalha como operária encadernadora. Em 1845 casou-se com um colega seu, Jérome Le Mel, com quem teve três filhos. Sem conseguir trabalho, eles se mudam para Paris em busca de novas oportunidades de trabalho. Na capital, Nathalie ainda trabalha como encadernadora e participa das greves que em 1864 agitaram sua categoria. Ela faz parte do comitê de greve que exigia paridade de salários para as mulheres e é notada pela polícia do regime que, em um relatório, a descreve como “uma exaltada que estava envolvida em política; nas fábricas, ela lia jornais ruins em voz alta; frequentava clubes assiduamente “. Em 1865 juntou-se à Internacional. Em 1868, depois de deixar o marido, fundou com outras uma cooperativa que cuidava da alimentação, chegando a dar trabalho a 8.000 pessoas, além de um restaurante popular onde trabalhava na preparação das refeições.

Durante a Comuna, ela fundou e dirigiu a  “União das mulheres para a defesa de Paris e o socorro dos feridos” com Elisabeth Dmitrieff. Quando as tropas de Versalhes entram em Paris, ela luta nas barricadas à frente de um batalhão de cerca de cinquenta mulheres e constroem a barricada da Place Pigalle hasteando uma bandeira vermelha.

Presa em 21 de junho de 1871, foi condenada à deportação para a Nova Caledônia em 10 de setembro de 1872. Quando os seus amigos apresentam um pedido de perdão em seu nome, da prisão de La Rochelle onde está detida, ela comunica ao chefe da polícia de Paris que desautoriza “todos aqueles que agiram ou irão agir sem seu conhecimento”. Em 24 de agosto de 1873, ela embarcou no Virginie para ser deportada para a Nova Caledônia onde chegou em 14 de dezembro. Aqui, a mando dos carcereiros para separar os homens das mulheres durante o encarceramento, ela se recusa a descer do navio e ameaça pular no mar se a divisão não for abolida: seguida no protesto por muitas outras mulheres, ela consegue que a detenção seja comum. Durante sua prisão, seu nome frequentemente reaparece na lista de prisioneiros sujeito a sanções, demonstrando que seu espírito indomável não se dobra nem mesmo durante esta experiência pesada; ao contrário de muitos deportados da Comuna, ela se solidariza com os Kanaki, que em 1878 se revoltaram contra os colonizadores franceses.

Após a anistia de 1880, ela retornou a Paris, onde conseguiu um emprego no jornal L’Intransigeant. Passou os últimos anos de sua vida na pobreza e, tendo ficado cega, foi acolhida, em 1915, no asilo  Ivry, onde faleceu em 1921.

Conquistas sociais

As mulheres da União pretendem “trabalhar juntas pelo triunfo da causa do povo”, “bater e vencer ou morrer pela defesa dos (…) direitos comuns”. O primeiro objetivo é, pois, certamente o de participar na defesa de Paris: para permitir a participação do maior número de mulheres, a União preconiza a utilização de salas para a organização de conferências. (4)

Elas discutem muito, inclusive sobre decisões militares que consideram indispensáveis, como, por exemplo, a necessidade de marchar sobre Versalhes. Inicialmente, as mulheres conseguem estar presentes em postos avançados de combate para criar um serviço de primeiros socorros aos feridos: a União das mulheres recruta mais de mil socorristas que recebem o mesmo pagamento e a mesma alimentação dos guardas nacionais, segundo o princípio de “trabalho igual, salário igual”. No âmbito militar, nem sempre são bem recebidas e o jornal La Sociale costuma denunciar a misoginia de alguns oficiais ou médicos cirurgiões que perseguem mulheres em postos avançados. Além de casos isolados, somente durante a “semana sangrenta” as mulheres lutam nas barricadas. A formação de departamentos femininos era uma ideia já acalentada durante o cerco parisiense: as “Amazonas do Sena”, uma ambiciosa proposta de batalhões femininos avançada em 1870 por Félix Belly, não será implementada, mas atesta a necessidade de responder aos pedidos das mulheres para serem autorizadas a participar em combates armados. Além disso, há evidências históricas da existência da “Legião das federadas do 12º do distrito”, formada na primeira quinzena de maio, comandada e composta exclusivamente por mulheres. (5)

Ferozmente laicistas e anticlericais, como pode ser visto em algumas intervenções nas assembleias distritais (6), as mulheres substituem as religiosas em asilos, nos orfanatos, nas escolas e nas prisões com voluntárias laicistas. Nesse clima, amadurece a convicção de que é preciso atuar também na educação das mulheres e das jovens: uma vez empossada a Comissão de Ensino, Marguerite Tinayre, professora militante da União e da Internacional, foi nomeada no dia 11 de abril “inspetora geral dos livros e dos métodos de ensino” em escolas para meninas; sua ação é marcada por propósitos inovadores e laicistas. Algumas iniciativas haviam sido lançadas em nível distrital antes da posse de Tinayre: uma “nova escola” para meninas é inaugurada no VII bairro com uma oficina adjacente, um abrigo para órfãs e jovens mulheres desempregadas; no dia 26 de março, surge uma Sociedade da Educação nova (entre cujas delegadas constam duas mulheres que vamos encontrar nas organizações femininas sucessivas à Comuna) que propõe uma reformulação geral dos programas escolares e o uso de métodos pedagógicos inovadores; por fim, já funcionam um atelier école para o ensino profissional e uma escola de desenho, mais conhecida como escola de arte industrial para moças.

Em 2 de abril de 1871, a Comuna vota a lei de separação entre Igreja e Estado: assim, em uma época em que era inevitável seguir a ordem moral imposta pela Igreja, se estabelece o direito ao divórcio e o reconhecimento da união livre, como também, a pensão de 600 francos à mulher, casada ou companheira, de membros da Guarda Nacional falecidos em combate, e pensão de 365 francos aos filhos legítimos ou naturais dos mortos.

A Comuna também proíbe a prostituição, que é declarada uma “forma de exploração comercial de criaturas humanas por outras criaturas humanas”.

A questão do trabalho feminino

Muito em breve, porém, a União se depara com um problema urgente, a saber, o da organização do trabalho feminino. Elisabeth Dmitrieff adverte logo de início a Comuna: “na presença dos acontecimentos atuais, devido à miséria crescente em uma proporção incrível […] deve-se considerar que o elemento feminino da população parisiense, momentaneamente revolucionário, pode retornar, devido privações contínuas, ao estado passivo mais ou menos reacionário que a ordem social do passado havia criado – um retorno fatal e perigoso para os interesses revolucionários e internacionais dos povos e, consequentemente, para a Comuna”. A República já havia organizado o trabalho das mulheres durante o cerco: 32.000 mulheres receberam trabalho para confeccionar os uniformes da Guarda Nacional, mas após o armistício, todas as atividades foram interrompidas.

Através das comissões distritais, as mulheres da União fazem novo cadastro das desempregadas e, por força do decreto da Câmara Municipal de 16 de abril sobre a requisição das oficinas abandonadas pelos patrões refugiados em Versalhes, identifica os locais a serem utilizados para a criação dos chamados “ateliers cooperatifs”.

O projeto desenvolvido pela União das mulheres e encaminhado à Comissão do Trabalho, previa a criação de uma associação de produtores em cada distrito, autônoma, mas com regras coerentes com os princípios gerais da União, dotada de oficinas, armazéns e encomendas igualmente repartidas para evitar a competição; estabelecia preços de venda e tarifas para as trabalhadoras, de acordo com o princípio de “salário iguais por número igual de horas”. As associações produtivas elegiam internamente duas responsáveis e, por meio da mediação do comitê central da União, deviam entrar em contato com as associações do mesmo tipo na França e no exterior para estimular a exportação e o intercâmbio de produtos.

A ambição era reorganizar o mercado de trabalho feminino de forma mais geral, segundo o modelo já adotado com os homens, de modo que se pudesse “garantir o produto ao produtor […] retirando o trabalho do jugo do capital opressor”; garantir a gestão de seus negócios aos trabalhadores: diminuir a jornada de trabalho; eliminar a competição entre trabalhadores de ambos os sexos, pois seus interesses são completamente idênticos; igualar salários entre os dois sexos (este último pedido encontra aceitação parcial na igualdade de salários de professores e professoras, em  maio de 1871).

Inicialmente, o projeto dizia respeito ao setor têxtil (Paris, em particular, ostentava uma excelente reputação internacional na produção de roupas), mas deveria ter se expandido para todos os setores profissionais nos quais as mulheres tivessem demonstrado excelência. No curto período de funcionamento da Comuna, é também lançada no Palácio da Indústria uma comissão encarregada de organizar o trabalho “livre” das mulheres associadas nos ateliers, com a tarefa de adquirir matérias-primas, repartir os rendimentos e distribuir o trabalho nos vinte distritos.

Porém, em 6 de maio de 1871, Leo Frankel (7), chefe da Comissão do Trabalho, publica um longo relatório cujo sentido pode ser entendido pela seguinte frase: “O trabalho feminino é o mais oprimido, sua imediata reorganização é de todo urgente “. Para tanto, anuncia reunião de todas as corporações operárias de ambos os sexos e convoca os representantes da União para a formação de câmaras sindicais que enviem delegadas à Câmara federal. O encontro, que deveria ocorrer no dia 21 de maio, não acontecerá pela a entrada das tropas de Versalhes em Paris.

A repressão

A maioria das mulheres que participaram da Comuna morreram nas barricadas da “semana sangrenta”, ou em confrontos ou fuziladas no campo pelas tropas de Versalhes.

Segundo inquérito parlamentar apresentado pelo Capitão Briot, mais de mil mulheres foram presas: os motivos das prisões tentam justificar uma condenação criminal. Juntamente com a acusação de terem participado das agitações da Comuna, muitas vezes são acusadas ​​de roubo ou vadiagem, de prostituição por viverem em uma relação não sancionada pela Igreja, de serem exaltadas por ter falado em público durante as assembleias, de serem incendiárias porque elas tinham a tarefa de distribuir armas e petróleo durante os combates.

As mulheres presas cruzam Paris em direção a Versalhes em meio aos insultos da burguesia que veio assistir ao show. Presas na prisão Chantiers, eles passam por condições degradantes, jogadas em cubículos cheios de vermes. A obra de uma delas testemunha o horror desta detenção que durou vários meses, mas também a solidariedade com que as reclusas enfrentam a experiência apesar da degradação, da falta de higiene e das punições arbitrárias. (8) Uma vez pronunciadas as sentenças, elas são transferidas para outras prisões, onde aguardam a viagem para o período de deportação: 31 mulheres são condenadas a trabalhos forçados, 20 à deportação em uma prisão fortificada, 16 à deportação simples. A fragata Virginie parte em 10 de agosto de 1873 (dois anos após a Comuna) e leva 120 dias para tocar a costa da Nova Caledônia.

Todas essas mulheres pagaram um alto preço na esperança de fazer triunfar seu ideal de justiça social e de igualdade, lutando em um contexto difícil. Investiram todas as suas forças, convencidas de que seu destino dependia do resultado da experiência da Comuna. Organizaram-se em um movimento e impuseram-se no terreno político, conscientes de que, somente derrubando o sistema de exploração de uma classe sobre a outra, o problema da desigualdade entre os sexos poderia ser resolvido. Com a mesma convicção que hoje as mulheres da Síria, Egito, Tunísia, Espanha, Brasil, de todo os lugares do mundo se manifestam contra a violência, o estupro como arma de guerra, as discriminações no mundo do trabalho, a precariedade, as diferenças salariais, o direito à contracepção e ao aborto.

NOTA

(1) C. Rey – A. Gayat – S. Pepino, Petit dictionnaire des femmes de la Commune [Pequeno dicionário das mulheres da Comuna], Editions Le bruits des autres, 2013.

Em geral, todo o artigo é baseado em materiais consultados em Paris na associação Os Amigos da Comuna de Paris 1871 (http://www.commune1871.org) e no centro CERMTRI (www.trotsky.com.fr).

(2) Pierre Joseph Proudhon, filósofo e economista francês, 1809 – 1865. Respeitado na esfera política, inclusive pela esquerda, e entre intelectuais e trabalhadores de toda a Europa, Proudhon defendeu a ideia de que as funções das mulheres eram a procriação e o trabalho doméstico. A mulher que trabalhava (fora de casa) roubava o emprego do homem. Proudhon chegou a propor que o marido tivesse o direito de vida ou de morte sobre a esposa que tivesse desobedecido ou tivesse mau caráter, e demonstrou, por meio de uma relação aritmética, a inferioridade do cérebro feminino sobre o masculino.

(3) Edith Thomas, Les Pétroleuses [As Petroleiras], Gallimard, 1963.

(4) Após o decreto de 2 de abril de 1871 sobre a separação entre estado e Igreja, algumas igrejas são requisitadas para servir como locais de reunião para clubes da cidade.

(5) Em 14 de maio, um comunicado aos guardas nacionais da 12ª Legião informa aos soldados que as mulheres pediram para poder se organizar militarmente, para participar mais ativamente da defesa da cidade: “Um grande exemplo é dado a vocês, cidadãs, mulheres heroicas pediram armas para defender, como todas nós, a Comuna e a República … A primeira companhia de cidadãs voluntárias será formada imediatamente”.

(6) Em 15 de maio uma mulher chamada André, conhecida como “Matelassiére” por suas habilidades dialéticas, em uma reunião do clube Ambroise afirmou que “todos os representantes da Igreja deveriam ser fuzilados em 24 horas […] Não adianta prender os padres, devemos declará-los fora da lei para que todo cidadão possa matá-los como se matasse um cachorro raivoso”. Em 20 de maio, em Nicolas des Champs, uma mulher desconhecida propôs, pela defesa de Paris, a substituição dos sacos de terra pelos cadáveres de 60.000 padres e 60.000 freiras da cidade.

(7) Leo Frankel, 1844 – 1896, político húngaro, membro da Internacional desde 1867, representou a seção alemã em Paris onde trabalha como operário joalheiro. Durante a experiência da Comuna foi membro da Guarda Nacional, do Comité Central e presidente de várias comissões, incluindo a de trabalho. Ferido na semana de sangue nas barricadas, é socorrido por Elisabeth Dmitrieff, por quem parece fosse apaixonado e não correspondido, ele se refugiou primeiro na Suíça e depois na Inglaterra, enquanto na França o Conselho de Guerra o sentenciou à morte à revelia.

(8) Célestine Hardoin, La Détenue de Versailles en 1871 [A Detenção de Versalhes em 1871], obra reeditada em 2005 pela associação Les Amis de la Commune de Paris [Os Amigos da Comuna de Paris].

Tradução Maria Teresa Albiero e Alberto Albiero.

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