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200 anos de Engels

O patriarcado do ponto de vista marxista

fevereiro 8, 2021

Patriarcado é uma palavra muito utilizada nos debates sobre a condição da mulher, que costuma apontar a principal causa da opressão da mulher no mundo. O termo é utilizado como regra para se referir a tudo o que oprime ou exterioriza a opressão da mulher como tal na sociedade, mas muito raramente quem usa tem uma ideia definida do que é ou é capaz de dar uma definição exata. Isso porque não existe uma única, comum e coerente definição: as diversas variantes da ideologia feminista fazem diferentes interpretações do que deveria ser essa estrutura social chamada patriarcado e como aboli-la. O patriarcado aparece mais como uma ideia daquilo que precisa ser mudado socialmente, mas uma ideia, nem sempre, bem definida.

Por: Laura Sguazzabia

A teoria marxista, desde o início, fez um uso muito cuidadoso do termo patriarcado porque para os marxistas tornar os conceitos explícitos, estabelecer as origens, história, fundamentos, esclarecer e especificar como um conceito nasce e se adapta à realidade histórica, e mutável, é fundamental para avançar não apenas empiricamente, mas, sobretudo, na luta de classes. Na obra na qual se desenvolve principalmente a teoria marxista sobre a origem da opressão da mulher, A Origem da Família, a Propriedade Privada e o Estado publicada em 1884 [1], Engels utiliza o termo «patriarcal» para caracterizar certo tipo de família, em uma época na qual as famílias eram comunidades. E a certa altura fala de «comunidade familiar patriarcal»: é, na análise de Engels, uma forma transitória que surge entre a família construída nos direitos maternos (ou o que se denomina erroneamente matriarcado, mais propriamente a família matrilinear ou matrilocal), e a família monogâmica moderna.

A família patriarcal é aquela que surge quando a filiação feminina e os direitos maternos são substituídos pela filiação masculina e pelo direito hereditário paterno, de modo que o pai passa a ser o chefe da família, constituindo-se ao redor dele a gens paterna. A família patriarcal é caracterizada por uma autoridade e poder crescentes do pai sobre o grupo e pela incorporação de membros independentes e submissos nesta estrutura de dominação. Esse tipo de família, para Engels, assim como para os antropólogos da época, sobrevive por uma fase relativamente breve da história humana porque depois se produz uma grande mudança que cristalizará a opressão da mulher: muito rapidamente, com o desenvolvimento das forças produtivas, a sociedade dividida em classes se afirmará e, assim, um novo tipo de família baseada no casamento monogâmico, onde o homem reduz a sua mulher a uma propriedade e, assim, estabelece uma autoridade firme e ampliada no sistema social.

A análise marxista sobre a opressão da mulher

A obra A Origem da família, da propriedade privada e do Estado é em grande parte baseada na pesquisa pioneira do antropólogo do século XIX Lewis Henry Morgan. A pesquisa de Morgan, Ancient Society, publicada em 1877, pode ser considerada a primeira tentativa de abordar a evolução da organização social humana de um ponto de vista materialista.

Morgan pesquisa, após um extenso contato com os índios iroqueses em Nova York, um sistema de parentesco estruturado de forma completamente diferente da moderna família nuclear. O estudo de Morgan sobre os iroqueses mostra dois fatos: 1) que no interior desse sistema as mulheres e os homens tinham uma rígida divisão do trabalho entre os sexos, mas 2) que as mulheres eram iguais aos homens, com total autonomia em relação às próprias responsabilidades e poder de decisão dentro da sociedade como um todo. Essa descoberta o inspirou a estudar outras sociedades e o levou a descobrir outros nativos americanos, situados a milhares de quilômetros dos iroqueses e estruturados com formas de parentesco notavelmente semelhantes. Morgan conclui que a sociedade humana evoluiu através de sucessivas fases, com base no desenvolvimento de «sucessivas artes de subsistência».

Engels toma como base a teoria de Morgan para escrever sua obra e, como sugere o título, para desenvolver a teoria de como o nascimento da sociedade dividida em classes levou ao nascimento do Estado, representando os interesses da classe dominante, e da família, como um meio pelo qual a classe dominante transmite as riquezas mantendo a propriedade privada. A descoberta de Morgan confirma que o período do «comunismo primitivo» precedeu por muito tempo à sociedade de classes e auxilia Engels a esclarecer com precisão como nasce a opressão da mulher em concomitância com o nascimento da sociedade dividida em classes.

Três períodos distintos são delineados na obra de Engels, cada um como um estágio progressivo do desenvolvimento social: estado selvagem, barbárie e civilização. Esses termos, refletindo a terminologia vitoriana, mudaram desde então, mas mantêm válido o esquema de base: o estado selvagem se refere à caça e a coleta; a barbárie, à fase em que predomina a agricultura, primeiro através da horticultura (ou prática do «corte e queima») e, depois, pelo uso de técnicas avançadas como o arado e a irrigação em grande escala; a civilização, à evolução da sociedade urbana e os primórdios da indústria.

Essas três fases abarcaram um período muito longo. Os primeiros ancestrais humanos provavelmente surgiram há dois milhões de anos ou mais, enquanto os humanos anatomicamente modernos o fizeram entre 200.000 e 100.000 anos atrás. As primeiras formas de agricultura não começaram antes de 10.000 anos atrás, e apenas nos últimos mil anos que a sociedade humana se desenvolveu muito mais rápido devido à tecnologia. Esta periodização evolutiva significa que, na maior parte da história humana foi impossível acumular riqueza, nem havia motivos para isso. Para começar, não havia local onde armazená-la: as sociedades de caça-coleta eram nômades e se sustentavam com a coleta de frutos e raízes, caça e pesca. Além disso, na maior parte dessas sociedades não era preciso trabalhar mais do que o necessário para obter o que lhes servia para o sustento. Mesmo nas primeiras sociedades de horticultura, não era realmente possível produzir muito mais do que seria consumido imediatamente pelos membros do grupo.

Com a introdução de produções agrícolas mais avançadas, através do uso do arado e/ou sistemas de irrigação mais avançados, e com o nascimento de comunidades permanentes, em algumas sociedades, os homens conseguiam obter mais que os meios de subsistência. Isso leva à primeira acumulação de excedentes ou riquezas. Inicialmente, o excedente é compartilhado com todo o clã, de modo que a riqueza não é acumulada por um único indivíduo ou grupos de indivíduos. Mas, aos poucos, à medida que as comunidades crescem em tamanho e se tornam organizações sociais mais complexas, e cresce o excedente, a distribuição da riqueza se transforma em desigualdade e apenas um reduzido número de homens se distingue pela riqueza e o poder sobre o restante da população.

Engels sustenta que o nascimento da sociedade de classe traz consigo não apenas o crescimento da desigualdade entre governantes e governados, mas também entre homens e mulheres. O centro da teoria de Engels sobre a opressão da mulher baseia-se na relação entre a divisão sexual do trabalho e o modo de produção, que sofre uma transformação fundamental com o surgimento da sociedade de classe. Na sociedade de caçadores-coletores e horticultores havia uma divisão sexual do trabalho, um conjunto de responsabilidades rigidamente definido entre mulheres e homens.

E a ambos os sexos era concedido um grau elevado de autonomia no desenvolvimento dessas habilidades: a coleta e a distribuição de alimentos na tribo, por exemplo, era realizada inteiramente pelas mulheres (elemento que aprendemos justamente na investigação realizada no tempo de Engels), que podiam decidir inclusive não conceder a quem sentissem que não cumpriam adequadamente com seu dever no grupo. Nas sociedades pré-classistas, as mulheres estavam em condição de conciliar a maternidade como o trabalho produtivo, âmbitos entre os quais não havia uma separação clara: em muitos casos podiam levar seus filhos durante a semeadura e a colheita, ou deixá-los aos cuidados de outros adultos; ao mesmo tempo, se encarregavam de produzir muitas mercadorias em casa. Uma vez que as mulheres eram fundamentais para a produção nessas sociedades pré-classistas, não existia a desigualdade sistemática entre os sexos e elas eram tidas em alta consideração, inclusive quando eram idosas.

Tudo isso muda com o desenvolvimento da propriedade privada. O desenvolvimento da produção agrícola aumenta notavelmente a produtividade no trabalho, o que, por sua vez, aumenta a demanda de trabalho: quanto maior o número de trabalhadores no campo, maior é o excedente. Portanto, ao contrário da sociedade de caçadores-coletores que procurava limitar o número de filhos, a sociedade de agricultores buscava maximizar o potencial reprodutivo das mulheres porque a família precisava ter mais filhos para ajudar no trabalho agrícola. Assim, enquanto os homens desempenhavam um papel cada vez mais exclusivo na produção, as mulheres eram chamadas a cumprir um papel mais central na reprodução. A estrita divisão sexual do trabalho continua sendo a mesma, mas com a produção, agora, distanciada do lar e a família servindo apenas como função reprodutiva e, como tal, transformada em uma unidade econômica de consumo. As mulheres ficam presas em suas famílias individuais, como reprodutoras da sociedade, isoladas da produção.

Estas mudanças ocorrem inicialmente nas famílias que têm propriedades, as da classe dominante. Mas com o tempo, a família nuclear torna-se uma unidade econômica da sociedade em seu conjunto. Além disso, estas mudanças ocorrem ao longo de um período de milhares de anos e todas as sociedades do mundo, embora não tenham experimentado uma sucessão idêntica de mudanças no modo de produção, se transformaram. É importante sublinhar que a ganância não é a causa principal da distribuição desigual da riqueza, nem que o machismo é a razão pela qual o poder cai em mãos de (alguns) homens, enquanto a autoridade das mulheres é drasticamente reduzida. Não há evidência (e não há razão para supor) que as mulheres foram forçadas a desempenhar este papel pelos homens: de fato, para as famílias ricas, um excedente maior seria do interesse de todos os membros da família.

Nesse contexto, a família nuclear monogâmica como conhecemos hoje, inevitavelmente começa a tomar forma. Por um lado, assistimos a um deslocamento do direito da linha materna (neste momento histórico, a maioria de sociedades continuam sendo matriarcais ou, melhor dizendo, matrilineares) ao paterno, de modo que a herança não passa pela mãe, mas pelo pai. Por outro lado, existe a necessidade de uma rigorosa monogamia que garanta o controle absoluto sobre a descendência para que o homem tenha a certeza de que os filhos nascidos de sua mulher são seus. Desta forma, o homem passa a assumir o papel de chefe do seu lar.

Sem dúvida, Engels tinha razão – com mais evidências hoje do que quando escreveu sobre isso – que o nascimento da família nuclear provocou uma degradação social e a opressão da mulher, desconhecidas nas sociedades pré-classistas. A família moderna nasceu com o único propósito de transmitir a propriedade privada em forma de herança de uma geração à outra: “Foi a primeira forma de família que não se constituiu em condições naturais, mas em condições econômicas, precisamente na vitória da propriedade privada sobre propriedade comum originária e espontânea. A dominação do homem na família e a procriação de filhos indiscutivelmente seus, destinados a herdar suas riquezas: estes eram os fins únicos e exclusivos do casal monogâmico”[2]. Todas as imagens românticas do amor verdadeiro, que desde então contribuíram a idealizar o casamento na sociedade contemporânea, não podem mudar o fato de que o casamento é essencialmente uma relação de propriedade. A monogamia oferece os meios pelos quais a propriedade pode ser herdada individualmente, enquanto a passagem para a linhagem paterna garante que a propriedade e as riquezas permaneçam na nova família e não transferidos para o clã materno como no passado.

A análise de Engels é simples e óbvia: a divisão sexual do trabalho que existia nas sociedades pré-classistas cujo modo de produção dominante era a produção para o uso, não tinha as implicações da desigualdade de gênero. As mulheres podiam combinar seus papéis reprodutivos e produtivos para que ambos os sexos pudessem realizar um trabalho produtivo. Mas com o surgimento da sociedade de classes, quando começa a produção para troca e pela dominação, a divisão sexual do trabalho contribui para corroer a igualdade entre os sexos. A produção e o comércio ocorrem cada vez mais fora de casa, de modo que o lar se torna um ambiente estritamente reprodutivo. Assim, a origem da opressão da mulher deriva principalmente de seu papel na vida reprodutiva dentro da família e do papel da família como unidade econômica na sociedade.

A contribuição de Marx

A origem da família, a propriedade privada e o Estado foi publicado em 1884 com a assinatura de Engels. A ausência do nome de Marx como autor do texto, foi utilizada estruturalmente por numerosos detratores do marxismo para sublinhar o desinteresse do “Mouro” nas questões da opressão da mulher.

À parte o fato de que, na época da publicação, Marx havia morrido há mais de um ano, é preciso dizer que, segundo admite o próprio Engels, a obra resume uma vida de investigação de ambos e se baseia em grande parte nas notas reunidas por Marx: sua própria filha Eleanor, que foi assistente de seu pai enquanto ele viveu e editora de suas publicações após sua morte, é assiduamente consultada por Engels tanto na redação como na revisão da obra. Portanto, acusar Marx de desinteresse pela condição feminina não é apenas intelectualmente incorreto, mas ainda mais, conceitualmente. Este trabalho único, que inclusive hoje as feministas não podem ignorar (na maioria dos casos para criticá-lo), e que se baseia em dois conceitos chaves – que as primeiras sociedades humanas eram sem classes e igualitárias, e que a opressão das mulheres acompanha o nascimento das classes – constitui a culminação de uma elaboração teórica e um compromisso militante que tanto Marx como Engels difundiram ao longo de suas vidas.

Na Questão Judaica, publicado por Marx quando ele tinha 25 anos, lê-se: «A mesma relação sexual, a relação entre homem e mulher, etc., torna-se objeto de comércio!» Na Em A Sagrada Família, escrito mais tarde em 1844, Marx parafraseia de modo aproximado a Fourier, tocando um tema ao que ele retorna com frequência pelo resto de sua vida: «O grau de emancipação da mulher é a medida natural da emancipação geral». No Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1848, primeiro documento programático escrito para uma organização política, sustenta que a classe dominante oprime as mulheres: «O burguês vê na esposa um simples instrumento de produção. Escuta dizer que os instrumentos de produção serão explorados em comum e, evidente, não pode chegar à outra conclusão senão a de que acontecerá o mesmo com as mulheres. Ele nem sequer suspeita que a verdadeira questão é abolir o status das mulheres como meros instrumentos de produção».

Poderíamos continuar, mas é suficiente dizer que, desde os primeiros anos de seu ativismo, tanto Marx como Engels escreveram sobre a questão da opressão da mulher pensando sobre o que significava sua participação ativa para a classe operária e pela luta por uma sociedade melhor. Essa análise sobre os escritos de Marx, repleta de considerações sobre a questão da opressão da mulher, é deliberadamente ignorada e, em vez disso, a referência é feita exclusivamente em A origem da família, a propriedade privada e o Estado, de Engels. Mas já em seus primeiros trabalhos, e depois no Capital, a questão da condição da mulher é um tema recorrente. Mesmo com as limitações de sua época, Marx encontrava-se entre os mais avançados na questão da opressão da mulher: tinha clareza dos problemas que as mulheres teriam que enfrentar e o tratamento por parte dos homens.

E na prática, Marx também estava à frente de todos. Imediatamente após ajudar a fundar a Primeira Internacional, sugere que a companheira de Engels, Lizzie Burns, participasse imediatamente, e sua correspondência mostra que ele incentivava as mulheres a se unirem independentemente de seus maridos. Marx foi o mais consciente de todos os membros do Conselho da Internacional em colocar o tema da mulher na agenda do dia: lutando contra os anarquistas cuja seção francesa era francamente hostil às mulheres que trabalhavam na indústria, alinhada com a infame proclamação de Proudhon de que a mulher é dona-de-casa ou cortesã; propõe regularmente pontos na agenda dos Congressos da Internacional sobre a condição da mulher e da criança; é quem impulsiona o debate da questão da mulher nas reuniões da Internacional, mesmo quando não podia comparecer. No Congresso de 1867, Marx apresentou uma proposta para uma discussão aprofundada sobre «os meios práticos de ação para as classes trabalhadoras, mulheres e homens, na luta por sua total emancipação do domínio do capital». A partir desse momento, a cada declaração que escreve ou edita se refere a mulheres e homens trabalhadores. Depois da Comuna de Paris, ao apontar o importante papel das mulheres, propôs em setembro de 1871 que a Internacional criasse seções femininas: isso não para eliminar as seções mistas, mas pela evidente necessidade das mulheres organizarem o crescente número de trabalhadoras envolvidas.

Marx pensava na opressão das mulheres e levou a sério sua participação política. Não só abordou o tema teoricamente, mas o considerou ativamente em sua atividade política sempre que se apresentava uma oportunidade. No entanto, o apoio constante de Marx aos direitos das mulheres é pouco conhecido ou inclusive mistificado. Shulamith Firestone, por exemplo, em seu livro A dialética do sexo aniquila Marx como [sendo] «pior» do que Engels porque, em sua opinião, existe um preconceito por parte de Marx contra as mulheres, já que sua análise da opressão feminina seria apenas resultado de intuições acidentais.

As críticas e as diferenças

A obra de Engels foi considerada, durante muito tempo e até poucos anos atrás, um lixo por vários cientistas sociais porque continha a ideia de que os seres humanos viviam no que Engels e alguns antropólogos como Morgan haviam chamado «comunismo primitivo». A existência do «comunismo primitivo» nas primeiras sociedades humanas foi, de fato, um elemento chave, perigoso e minado pelos opositores do marxismo: se os seres humanos tivessem realmente vivido em sociedades coletivas igualitárias como as descritas por Engels e outros, então isso poderia ser possível também no futuro. Derrotar essa tese de que as mulheres nem sempre viveram em uma posição subordinada que hoje é tida como certa, significaria desconfiar do argumento básico de que a humanidade começou sua vida social de um modo não hierárquico e igualitário. Com as mudanças nos debates, inicialmente influenciados pelo radicalismo dos anos sessenta e setenta [do século XX], agora é amplamente aceito que existiam sociedades sem classes. Os estudiosos, mesmo os não marxistas, demonstraram indiscutivelmente que os seres humanos viviam em pequenos grupos antes do nascimento do Estado e a consolidação da desigualdade social. Nessas sociedades havia propriedade comum de terra e recursos, reciprocidade generalizada na distribuição de alimentos, e relações políticas relativamente igualitárias.

A análise marxista define o momento histórico em que se consolida a opressão da mulher, subvertendo assim a teoria, muito difundida, de que as mulheres sempre foram oprimidas, fundamentalmente por sua diferença biológica com os homens. Essa teoria contém, em si, dois preconceitos: o primeiro relativo à imutabilidade da condição de opressão da mulher, o segundo sobre a suposta inferioridade biológica da mulher, vinculada em particular à sua capacidade reprodutiva.

Em relação ao primeiro preconceito, estudos antropológicos, incluídos os recentes, desmentiram a teoria de que o controle dos homens sobre as mulheres sempre tenha existido e, em vez disso, confirmaram a existência de um sistema matrilinear ou, como definido incorretamente na época de Engels, um período de matriarcado: nas sociedades primitivas, a única forma segura de traçar a linha de descendência era partir da mãe, ponto de partida indiscutível para saber com certeza quem descendia de quem. Não existia outro meio científico do que se referir à maternidade, a única descendência que podia ser provada com certeza. A partir desta necessidade, gerou-se o chamado «direito materno» que atribuiu à mulher um papel muito importante nas comunidades da época. O que Engels define como «a derrota histórica universal do sexo feminino» ou «a derrubada do matriarcado» ocorre quando se concretiza a dominação exclusiva do homem, que não apenas se ocupa da atividade produtiva, mas também assume o comando da casa, subordinando sua esposa e filhos. Essa passagem se configura com o nascimento de uma forma intermediária de família, a patriarcal, e também torna necessária a mudança do direito: «assim foram revogados o cálculo da descendência pela linha feminina e o direito hereditário matriarcal e introduzido a descendência pela linha masculina e o direito hereditário masculino». E como diz Engels algumas linhas acima, a passagem foi indolor: «Bastou simplesmente decidir».[3]

Em relação à suposta inferioridade biológica da mulher, em particular no que diz respeito à capacidade reprodutiva, deve-se dizer que estudos antropológicos recentes demonstraram que nas sociedades primitivas a função reprodutiva era tida em alta estima e, portanto, não explica como essa diferença biológica entre a mulher e o homem possa ser a causa de sua opressão. Evidências arqueológicas e antropológicas de sociedades de caçadores-coletores existentes na época das invasões imperialistas; pesquisas sobre as relações de gênero em sociedades indígenas na Austrália antes da invasão colonial; estudos de feministas como Karen Sachs, Christine Gailey e Ernestine Friedl revelam sociedades nas quais as mulheres não sofriam discriminação nem opressão sistemática e, de fato, testemunham a enorme autonomia das mulheres da época no gerenciamento de sua sexualidade e fertilidade: agora, é verdade que as mulheres no Paleolítico, por exemplo, adotavam formas de controle da natalidade e muitas vezes, para evitar uma gravidez muito próxima, prolongavam o período de lactação dos recém-nascidos. A procriação não era um impedimento nas comunidades primitivas; assim foi com o nascimento e o surgimento da família patriarcal, então monogâmica. O nascimento da propriedade privada e a afirmação do sistema capitalista – o estágio final do desenvolvimento da sociedade de classes – não transformaram as relações entre homens e mulheres apenas dentro de casa, e sim mudou radicalmente as relações políticas e econômicas na sociedade de modo geral, criando as condições para a opressão das mulheres mesmo fora do contexto doméstico: as mulheres, portanto, foram condenadas a sua condição de oprimidas pelas mesmas forças e relações sociais que levaram à opressão de uma classe por outra, de uma etnia por outra e de uma nação por outra.

Nos debates e nos movimentos pela libertação das mulheres, ouve-se cada vez mais frequente que o patriarcado – e não o capitalismo – é a verdadeira causa da opressão da mulher: o patriarcado configura-se assim como um sistema estrutural da sociedade, paralelo e historicamente anterior ao capitalismo, construído ao longo do tempo sobre a diferença de gênero entre homens e mulheres, e sobre o poder dos homens sobre as mulheres. Derrubar o patriarcado, portanto, se converteria em uma prioridade para as mulheres, através de uma luta comum de todas as mulheres contra todos os homens, e até substituiria a necessidade de derrubar o capitalismo. Daí a ideia – sustentada por essas correntes do feminismo pequeno-burguês – de que as mulheres devem se organizar, em um vínculo de irmandade que identifica o homem como o verdadeiro inimigo a derrotar, ou indo ao extremo desse vínculo, ou seja, que as mulheres constituem uma classe que deve colidir com uma contra classe, a masculina, para obter sua própria libertação. Ambas as interpretações têm limitações para os marxistas.

A ideia por trás de ambas, de que todas as mulheres em termos de sexo têm mais em comum do que os membros da mesma classe entre si é falsa: as mulheres de classe média têm laços muito fortes com seus maridos, compartilham seus interesses econômicos, sociais e políticos, se unem a eles na defesa da propriedade privada, o lucro, o militarismo, o racismo e a exploração de outras mulheres. É verdade que todas as formas de sociedade de classes foram dominadas pelos homens e que os homens estão treinados desde o nascimento para ser machistas, mas não é verdade que os homens, como tais, sejam o principal inimigo das mulheres. De fato, isto eliminaria a multidão de homens oprimidos e explorados, eles próprios oprimidos pelo principal inimigo das mulheres, que é o sistema capitalista. Estes homens também têm interesse na luta pela libertação das mulheres; podem e devem se tornar aliados das mulheres na luta por um novo sistema social, econômico e político que permita a ambos uma realização livre e igualitária.

Com base nessa coexistência de dois sistemas, patriarcado e capitalismo, o primeiro mais prejudicial que o segundo para a mulher, a obra de Engels foi mal entendida e difamada por várias teóricas feministas por ter, segundo elas, «reduzido» a questão da mulher de um alcance geral a outro mais limitado, o econômico: nada poderia estar mais distante da abordagem de Engels, que sempre polemizou com as interpretações mecânicas do materialismo histórico (justamente aquelas que reduzem mecanicamente todos os aspectos da vida social, cultural e ideológica ao «fator econômico»). Nos anos seguintes, isso foi agravado pela acusação de que os marxistas não colocavam o patriarcado e o capitalismo na relação correta: como é possível que o patriarcado seja produto do capital se historicamente o precede? É indiscutível que quando falamos da opressão da mulher não podemos utilizar apenas categorias econômicas: a opressão é um conjunto de fatores psicológicos, emocionais, culturais, ideológicos que constituem a superestrutura ideológica e cuja relação com a estrutura econômica da sociedade é muito complexa e variou em diferentes períodos históricos. Não há correspondência direta; entretanto, em última instância (embora não mecanicamente) as leis econômicas condicionam as leis ideológicas. Em seu «Prefacio» à primeira edição de 1884, é o próprio Engels quem nos dá uma explicação mais nítida desta relação: «Segundo a concepção materialista, o momento determinante da história, em última instância, é a produção e a reprodução da vida imediata. Mas isso, por sua vez, é de dois tipos. De um lado, a produção de meios de subsistência, de alimentos, roupas, moradia e ferramentas necessárias para essas coisas; de outro, a produção dos próprios homens: a reprodução da espécie. As instituições sociais em que vivem os homens de uma determinada época histórica e de um determinado país estão condicionadas por ambos os tipos de produção; da fase de desenvolvimento do trabalho, por um lado, e da família, pelo outro». [4]

O capitalismo, o sistema econômico que a sociedade se deu no tempo, utiliza o patriarcado de maneira instrumental e torna funcional a opressão da mulher para sua própria sobrevivência: não foi um processo mecânico, mas apenas uma consequência da capacidade do capitalismo de assumir para si instituições e costumes anteriores ao seu surgimento – na forma plena em que a conhecemos – onde eles podem ser úteis para obter benefícios ou para manter estável a ordem social (ou para se livrar deles quando já não os necessita mais ou são muito difíceis ou caros de manter). Valores culturais como fidelidade e monogamia não têm de fato uma origem de caráter moral, mas estão intimamente ligados à ideia de funcionalidade: Engels, de fato, mostra que o desenvolvimento da família baseado em uma rigorosa monogamia nada tem a ver com moral. Segundo ele, o ideal da família monogâmica se baseia em uma hipocrisia fundamental, ou seja, o valor da monogamia apenas para a mulher, mas não para o homem, de modo a poder controlar a descendência. Assim, junto com o desenvolvimento dos casamentos monogâmicos, surgiu a primeira comercialização do sexo na forma de prostituição – ambos produtos da sociedade de classes -. A monogamia e a prostituição são duas faces da mesma moeda, o que Engels chama «contradições inseparáveis» do Estado social. Dependendo de sua origem e natureza, essas contradições não podem ser erradicadas mediante uma revolução apenas ética ou de costumes, e sim material, econômica. Marx e Engels argumentavam que a independência econômica das mulheres era um passo crucial para alcançar os direitos políticos e a igualdade: entendiam que, embora fosse progressivo para as mulheres ter um trabalho remunerado, isso também significava problemas na família quanto ao cuidado das crianças e do trabalho doméstico. Mas não achavam, como afirmam algumas teóricas feministas, que isso por si só conduziria à libertação das mulheres, o que só poderia acontecer com a derrubada completa das relações sociais do capitalismo.

Por tanto, os marxistas não querem «reduzir» a complexa e central questão da opressão feminina unicamente ao componente econômico, mas sim à constatação de que o status jurídico da desigualdade entre homens e mulheres não é a causa da opressão das mulheres, mas a consequência da afirmação da sociedade de classes. A verdadeira questão que Engels levanta não está na variação das relações de parentesco ou filiação, mas na mudança do papel social da família, mudança provocada por fatores puramente econômicos. «Os capitalistas têm muitas razões para glorificar a família nuclear. Sua pequena família é uma mina de ouro para todos os tipos de vendedores ambulantes, desde agentes imobiliários até fabricantes de detergentes e cosméticos. Assim como os automóveis são produzidos para uso individual em vez do desenvolvimento de meios adequados de transporte de massa, as grandes empresas podem ganhar mais vendendo pequenas casas em lotes privados para equipá-las com máquinas de lavar, geladeiras e outros artigos similares. Para eles é mais rentável do que a construir moradias populares em larga escala com aluguéis baixos ou desenvolver serviços comunitários e creches. Em segundo lugar, o isolamento das mulheres, cada uma fechada em uma casa particular e vinculada à mesma tarefa de cozinha e creche, impede que se unam e se tornem uma força social forte ou uma séria ameaça política para o establishment» [5].

Essa descrição implacável do papel da família em sua relação com o sistema capitalista levanta outro problema de longa data: que solução é possível neste sistema para livrar as mulheres do trabalho de cuidado e assistência ao qual inevitavelmente estão escravizadas? Os marxistas certamente são a favor da participação igualitária dos homens nas tarefas domésticas, mas convencer aos homens a assumirem parte das tarefas domésticas não é a resposta nem a solução à opressão das mulheres, pois a reprodução continuará sendo privatizada. É uma solução que interessaria apenas às famílias da classe operária. De fato, isso não traria consequência alguma para as famílias burguesas que dispõem de meios para garantir o serviço doméstico através da exploração de outras mulheres. O que era verdade na época de Engels é ainda mais verdade hoje: a sociedade tem riqueza mais do que suficiente para transformar o trabalho doméstico e aspectos mais pesados como a educação dos filhos ou o cuidado dos idosos e deficientes em uma indústria social. Mas isso não pode acontecer enquanto a produção existir apenas para fins de lucro. Com a transferência dos meios de produção à propriedade comum, a família deixará de ser a única unidade econômica da sociedade. O trabalho doméstico privado se transformará em uma indústria social. O cuidado e a educação das crianças se tornarão um assunto público, a sociedade cuidará de todas as crianças igualmente.

Por que Engels tinha razão?

Alguns enunciados de Engels tiveram que ser revisados, em virtude de todas as informações que não eram acessíveis em sua época. No entanto, isso não diminui sua contribuição: ele desenvolveu uma análise histórica que não apenas identifica a raiz da opressão das mulheres, mas a localiza cronologicamente dentro de um curso evolutivo social mais complexo. E, ao mesmo tempo, ao integrá-lo no contexto mais amplo da luta de classes, fornece a estratégia para acabar com essa opressão.

«Como marxistas […] negamos que a inferioridade da mulher foi predestinada por sua constituição biológica ou sempre existiu. Longe de ser eterna, a submissão da mulher e a amarga hostilidade entre os sexos têm alguns milhares de anos. Foram produzidas pelas mudanças sociais drásticas provocadas pela existência da família, a propriedade privada e o Estado. Esta visão da história destaca a necessidade de uma revolução não menos profunda nas relações socioeconômicas para erradicar as causas da desigualdade e alcançar a plena emancipação de nosso sexo. Este é o objetivo e a promessa do programa socialista e, por isto estamos lutando». [6]

No entanto, embora a libertação total da mulher não possa ser alcançada sem a revolução socialista, isso não significa que a luta deva ser adiada até então: as mulheres marxistas lutam em todas as ações organizadas por objetivos específicos, e assumem a liderança das lutas procurando envolver toda a classe trabalhadora no caminho para a revolução socialista.

Notas:

[1] Além da obra de Engels, A origem da família, a propriedade privada e o Estado, os seguintes textos foram fundamentais para a redação do artigo: C. Toledo, Gênero e Classe, Edições Marxismo vivo, 2016; F. Oppen, “O feminismo radical e o surgimento das teorias do patriarcado – Um ponto de vista marxista”, em Marxismo Vivo, n. 7, pags. 175-198 disponível em:

http://phl.bibliotecaleontrotsky.org/arquivo/mv07neept/mv07neept-19o.pdf

[2] F. Engels, L’origine della famiglia, della proprietà privata e dello Stato, Editori Riuniti, Roma, 2019, p. 102.

[3] Idem, p. 92.

[4] Idem, p. 36

[5] E. Reed, “Women: caste, class or oppressed sex”, in International socialist review, September 1970, Vol. 31, N° 3, pp. 15-17 and 40-41. Disponível em inglês, em:

https://www.marxists.org/archive/reed-evelyn/1970/caste-class-sex.htm

[6] Ibídem.

Artigo original publicado na revista de teoria e práxis marxista Trotskismo Oggi n.° 17, do Partido de Alternativa Comunista da Itália, dezembro de 2020.

Traduçãoitaliano/espanhol: Natalia Estrada

Tradução espanhol/português: Roasangela Botelho

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